Tinham decorrido dois meses depois do casamento de Besita.

Eram nove horas da noite. A moça beijando a mão do pai, se recolhera à alcova; e depois de rezar, cismava em sua vida, lembrando-se com saudade dos sonhos de ventura que fizera outrora e que tão depressa se tinham desvanecido.

Encostada à rótula da janela, com os olhos engolfados no azul, bebendo a cintilação das estrelas como um orvalho de luz, sentia-se arrastada para aquele passado recente, e deleitava-se com as reminiscências das carícias de Luís e dos seus ternos protestos, que ela sabia mentidos, mas que não obstante a embeveciam.

Já todos dormiam na casa, quando ela, deixando a janela, deitou-se. Nesse instante ouviu sobressaltada bater à porta. Quem seria, àquela hora?

Soaram os passos de Zana no corredor e logo depois a voz da preta a trocar perguntas e respostas com a pessoa que batia. Afinal rangeu a chave na fechadura.

— Nhazinha, é sinhô!

Ia Besita levantar-se precipitadamente para receber o marido, quando sentiu no escuro que dois braços a cingiam e uma carícia atalhava-lhe a palavra nos lábios.

Ao bruxulear da madrugada, Zana acudindo ao chamado da moça foi achá-la debulhada em pranto, na maior consternação.

— Tu me perdeste, Zana! Não era meu marido!

— Quem era então, Nhazinha? perguntou a preta espantada.

— Olha! disse a moça mostrando-lhe o vulto de Luís Galvão que se afastava.

— Meu Jesus do céu! exclamou Zana caindo de joelhos aos pés da senhora.

Felizmente o velho não ouvira bater; e nunca soube da desgraça da filha. Morreu meses depois crente de que a deixava no mundo feliz e amparada.

Uma pessoa, porém, suspeitou do que havia ocorrido. Foi Jão Bugre, que na sua indignação quis matar Luís Galvão; e o teria feito, se Besita não o proibisse.

Entretanto o Ribeiro não dava cópia de si; corriam os meses sem que em Santa Bárbara houvesse novas dele, e do rumo que levara. Somente sabia-se que não estava em Itu, ou qualquer outra vila próxima. Esse abandono, que o marido parecia ter feito dela, foi o que deu coragem a Besita para resistir à desgraça que a acabrunhara, sobretudo quando lhe conheceu todo o alcance.

Mais de um ano, depois que a abandonara o Ribeiro, teve Besita uma filha, cujo nascimento foi inteiramente ignorado em Santa Bárbara, pelo isolamento a que se condenara a moça desde a morte do pai. Só o soube, fora Zana, Jão Bugre, cuja dedicação apurava-se com o infortúnio daquela por quem sacrificaria a vida, se pudesse por este preço resgata-la aos dissabores.

Um dias às ocultas, levou o capanga nos braços a criancinha a Campinas, a fim de a batizar o vigário dessa vila, pondo-lhe o nome de Berta, que tinha sua mãe. Havia ajuntamento na igreja para assistir a um casamento: era o de Luís Galvão com D. Ermelinda.

Custou ao Bugre conter-se, que no seu exaspero não insultasse ali em face de toda gente aquele homem de quem fora amigo, e por quem tinha agora a maior aversão. Reprimiu-lhe o primeiro ímpeto a lembrança de Besita e da mágoa que lhe podia causar o escândalo.

Voltou sombrio e sinistro:

— É preciso que eu mate esse homem! disse ele à moça entregando-lhe o filho.

— Não quero que lhe faças o menor mal! respondeu Besita com império.

— Mecê sofreria se eu o matasse?

— Muito!...

— Basta, Nhazinha! atalhou Jão.

Algum tempo viveu Besita com sua filhinha no mesmo isolamento sem outra companhia além de Zana, que lhe dera de mamar, e o capanga, o qual a servia como um escravo humilde e fiel da casa. Convencida de que realmente seu marido a abandonara de vez, habituara-se com o correr do tempo à placidez e serenidade daquela existência recôndita, que embeleciam as efusões do amor materno. No seio dessa tranqüila solidão, cercada de afeições sinceras, sentia-se quase feliz.

Seu prazer, nos momentos que lhe deixava a criação, era enfeitar a filha, e fazer bonito o seu Bebê, arranjando-lhe ora toucas de rendas, ora roupas. Lembrou-se um dia de bordar-lhe um cinto com signo-saimão, zodíacos, figas e outras figurinhas de prata, como se usava então para livrar do quebranto.

Não havendo por perto ourives capaz de lavrar os emblemas, mandou Besita o Bugre a Itu, a fim de os encomendar. Com repugnância, e um inexplicável constrangimento, ausentou-se Jão por alguns dias dessa casa onde vivia quanto amava neste mundo e sobre a qual velava como um cão fiel e dedicado.

Foi isto em uma terça-feira. Na quinta seriam oito horas da manhã, e Besita fazia saltar sobre os joelhos o seu lindo Bebê, sentada na alcova, com uma rótula aberta a meio. Eis que derramando a vista pelo arvoredo, ficou transida, como se lhe surgisse em face um espectro.

Enxergara o rosto de Ribeiro, que se ocultou entre a folhagem. Seria apenas uma alucinação de seu espírito, ou a tremenda realidade, cuja idéia tantas vezes a enchera de terror, nas longas noites não dormidas?

A tremer chamou a preta, que estava na cozinha cuidando do almoço:

— Meu marido, Zana!...

Aterrou-se a ama, ouvindo da senhora os pormenores da aparição, que anunciava tamanhas desgraças; e esteve algum tempo a espiar por entre a rótula a ver se lobrigava ainda o vulto do Ribeiro, mas nada viu.

Acudiu-lhe então uma lembrança engenhosa, com a qual esperou e por entre a rótula quase cerrada, não podia o Ribeiro distinguir o semblante da criança. Tomou-a Zana dos braços desfalecidos da senhora, e levando-a a seu cubículo, tisnou-lhe o corpo de carvão.

Feito isto arranjou outra vez as fraldas e a touca; e saiu ao terreiro para acalentar a criança, andando de uma para outra banda, e entoando a costumada cantiga, mas então alterada por esta forma:

Cala a boca, anda, negrinha,

Ai-uê-lêlê!

Senão olha canhambola,

Ai-uê-lêlê!

Vem cá mesmo Pai Surrão

Toma, papa este tição.

Compreendeu Besita o ardil da preta, e no desamparo em que se achava, confiou nessa frágil esperança.

Passou o resto da manhã sem o menor acidente. Assim desvaneceu-se o primeiro sobressalto, e a moça inclinada a crer que apenas fora vítima de uma ilusão cruel, cobrou ânimo, embora não se pudesse esquivar à inquietação que lhe deixara o terrível susto.

Veio a tarde: o céu estava sereno, e coava-se no espaço uma aragem tão doce que Besita encostou-se ao peitoril da janela. Com a fronte descansada à ombreira, deixando cair para fora as longas tranças de seus lindos cabelos negros, que a brisa fazia ondular, embebia-se em contemplar a estrela vespertina, que cintilava no horizonte. Súbito, no esquecimento dessa cisma, uma estranha idéia despontou-lhe no espírito. Pareceu-lhe que, através da cintilação da luz, desenhava-se a imagem de sua mãe, a sorrir-lhe lá do céu e a chamá-la.

Então ouviu Zana um grito de terror, que se extinguiu em um gemido de angústia. Fora de si correu à alcova da senhora, onde a esperava um quadro horrível.

No meio do aposento, o Ribeiro, pálido e medonho como um espectro, agarrando a mulher pelo pescoço, estrangulava-a com as longas tranças de cabelos.