Traços Biographicos da Heroina Brasileira Jovita Alves Feitosa

TRAÇOS BIOGRAPHICOS


DE


JOVITA


VOLUNTÁRIA DA PATRIA



RIO DE JANEIRO

1863
 
TRAÇOS BIOGRAPHICOS
DA
HEROINA BRASILEIRA


JOVITA ALVES FEITOSA


ex-sargento do 2.° corpo de voluntários do Piauhy
NATURAL DO CEARÁ
por um Fluminense




RIO DE JANEIRO
TYP IMPARCIAL DE BRITO & IRMÃO
1865
Antes de começar


Levantem-se embora os ESPIRITOS MOFADORES condemnando estas paginas, inspiradas pelo sentimento nacional; nós unicamente nos contentamos de ter seguido os grandes exemplos, e de não ter lançado no olvido o nome de uma Brasileira, cujo patriotismo expontaneamente gerado em seu peito, e amaldiçoado pelos INDIFFERENTES, foi concentrar-se em sua alma para reviver em melhores tempos.

A geração futura nos fará justiça.

Do Author.

I

Ergueu-se o altar da Patria mais alto do que nunca.

O sentimento nacional, offendido pelos ultrages desse despota do Paraguay, se manifestou de uma maneira estrondosa.

Os lamentos dolorósos dessas victímas, sacrificadas ás ambições de um povo estupido e sanguinario, fizerão reunir juncto do Throno Imperial todos os corações verdadeiramente Brazileiros.

O espirito de patriotismo, que parecia adormecido, levantou-se grande e sublime.

Milhares de voluntarios moços, e de um futuro esperançoso surgirão como que por encanto de todos os angulos do Imperio.

Operou-se um desses prodigios, que eternisão e cobrem de gloria os bellos feitos de uma nacionalidade briosa.

Todos se apresentão trasendo suas offerendas, seu ouro, seus serviços, e mais que tudo—seus proprios filhos !

Bellas recordações dos tempos idos ! Exemplos sublimes para o futuro !

O altar da Patria, cuberto de prendas preciosas, illustrado por actos de civismo, offerece um desses espectaculos fascinadores, que esperta a imaginação, infundindo o genio marcial no peito de seus cidadãos.

A indignação publica tendo se tornado extrema foi attingir cruelmente o coração ardente de uma filha obscura do pôvo.

— Uma menina de 18 annos incompletos, tomando toda a coragem diante desses accontecimento vertiginosos, que ião arrastando os animos para um martyrio, que já se prolongava, apresentou-se pobre, e singela, tendo n'alma o sentimento generoso das mulheres Espartanas, ajoelhou-se ante o altar da Patria, e ahi prestou um juramento solemne de amor e dedicação eterna !

Tal era o poder da vontade, que ella procurava sobrepujar o melindre da sua natureza fraca, querendo atirar-se aos perigos de guerra entre os gritos dos combatentes ; e deste modo assistir ao derradeiro expirar de uma Republica ingrata !

Fêz votos de tomar as armas para bater os inimigos, e de nunca abandonal-as senão nessa hora extrema em que ella tambem soltasse o ultimo alento de vida.

E ella se compenetrou de todo esse sentimento.

Teve coragem bastante para o sacrificio !
II.


Jovita Alves Feitosa! — Eis a heroina Brazileira, segundo a consagração popular.

Nasceo no dia 8 de Março de 1848, debaixo da athmosphera purissima desse lindo céo do Ceará, em Inhamuns, n'uma casinha pobre, situada lá na povoação chamada « Brejo Secco ».

Ahi se creou juncto de sua Mãi D. Maria Rodrigues do Oliveira, e de seu Pai Simeão Bispo de Oliveira, filho de Simões Dias, natural da Bahia.[1]

Sua vida passou-se esquecida nesses brincos da infancia junto dos sorrisos de seus irmãos, dos quaes conserva vivas saudades.

Bem cedo essas alegrias da infancia forão perturbadas pelo pranto!

Em 1860 perdeo sua Mãi, morta pela Cholera morbus ; e assim como —o anjo da revolução, achou-se lógo privada das caricias maternas.

Havia por tanto um vacuo no seu coração, que mais tarde precisava ser preenchido.

Corrião os successos nessa lucta entre o Brazil e o Paraguay.

Deixando o lar paterno veio para casa de um Tio, chamado Rogerio, mestre de musica, em Jaicós, com destino de se dedicar a essa arte.

A repercussão dos soffrimentos da Patria forão dispertal-a n'esse estreito horisonte, onde ella vivia longe do sól da Côrte.

O desespêro publico, a narração triste e sanguinolenta das devastações, pilhagens, e atrocidades commettidas pelas forças invasoras do Paraguay, impressionou-a fortemente.

Um dia ao cair do crepusculo pelo infinito, seu espirito magoado concentrou-se nesse quadro elegiaco, que mais se apura no silencio dos sertões, e sua imaginação foi assaltada pelas scenas de sangue e de miseria, inflingidas pelo despota do Paraguay.

Nem as flores, nem o romper das alvoradas, nem mesmo o sorriso da familia, nada deleitava o seu espirito. — Era preciso abandonar a pobre cabana de seu velho pai, thesouro precioso dos melhores tempos da vida. — Era forçoso que ella se revestisse de toda a coragem para deixar a doce habitação de seus dias de infancia, — esses sitios, onde cada flor lhe marcava uma lembrança querida, e diser adeus aos passaros da campina, aos crepusculos da montanha, a tudo enfim diser adeus!

Dicidiu-se sempre e tomou uma resolução firme.

Tinha diante de si 70 leguas para caminhar !

— Era preciso muita coragem para affrontar os perigos dos campos, o silencio das estradas, o terror das noites, e garantir a sua fragilidade de todos os ataques da torpesa, e do vicio.

Admiravel sacrificio !

Não lhe faltarão as forças para realisar essa marcha tão tormentosa.

Logo que chegou a Theresina, capital do Piauhy, tomou trajes grosseiros de homem, cortou os cabellos com uma faca, tomou um chapéo de couro, e assim vestida dirigio-se ao Palacio da Presidencia, pedindo para ser alistada voluntario da Patria.—

A este respeito ouçamos o que diz a Imprensa de Theresina:

« Apresentou-se nesta cidade uma interessante rapariga de 18 annos de idade, de typo indío, natural de Inhamuns, vinda de Jaicós, desta provincia, trajando vestes de homem rude, e offereceu-se ao Exm. presidente como « voluntario da patria. » Acceito como tal, é pouco depois, na rua ou na casa do mercado, descoberto o seu sexo; é levado á policia e interrogado. Confessa o seu disfarce, e envergonhada—chora, porque teme não poder mais seguir seu intento, e pede encarecidamente que a acceitem como voluntario. Seu maior desejo, diz ella, é bater-se com monstros que tantas offensas têem feito ás suas irmãs de Matto Grosso; é vingar-lhes as injurias ou morrer nas mãos desses tigres sedentos. Fazendo-se-lhe sentir a fraqueza de seu sexo, só lamenta não ser acceita,

« S. Ex. accedeu a tão ardentes desejos.

« Hoje a vimos de saiote e farda com as insignias de 1.º sargento.

« Mostra-se satisfeita e resoluta sempre. Não lhe causam emoção os perigos da guerra.

« Talvez que a nossa voluntaria faça actos de bravura, e qual outra Maria Quiteria de Jezus, da guerra da independencia na Babia, venha a merecer, como aquella mereceu do primeiro reinado, uma banda de official e a venera de uma ordem honorifica. »

Sobre o mesmo assumpto lê-se na Liga e Progresso da mesma cidade :

« A voluntaria da patria.—Em um destes ultimos dias appareceu no palacio da presidencia, pedindo para ser alistado voluntario da patria, um joven de 17 annos de idade, pouco mais ou menos, estatura regular, vestido simplesmente de camisa e calça, e trazendo na mão um chapéo de couro, S. Ex. o Sr. Dr. Francklin Doria, aceitando-o como tal, lhe ordenára que no dia seguinte se apresentasse para ser aquartelado. Algumas pessoas, porém, notarão e ficarão prevenidas sobre os signaes caracteristicos desse joven voluntario, que mais lhes indicavão ser uma mulher do que um homem, e não o perderão mais de vista.

« A's 5 horas da tarde do dia designado para o aquartelamento do joven voluntario, uma multidão immensa o acompanhava para a casa do Sr. Dr. chefe de policia, onde chegando declararão algumas pessoas que esse individuo, que se dizia voluntario da patria, era uma mulher disfarçada em homem. O Sr. Dr. Freitas mandou entrar o supposto voluntario, e procedeu-lhe ao interrogatorio que aqui damos publicidade.

« INTERROGATORIO

« Auto de perguntas a um voluntario da patria, que foi conhecido ser mulher.

« Aos nove dias do mez de Julho do anno do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oito centos e sessenta e cinco, nesta cidade de Theresina em casa da morada do meritissimo Dr. chefe de policia José Manoel de Freitas, comigo escrivão do seu cargo, abaixo nomeado, ahi achando-se presente Antonio Alves Feitosa, livre de ferro e sem coacção, por elle Dr. chefe de policia da provincia, ex-officio, lhe forão feitas as seguintes perguntas:

« Perguntado qual o seu nome, idade, estado, naturalidade, filiação, meios de vida e residencia. Responder chamar-se Antonia Alves Feitosa, conhecida desde menina pelo appellido de Jovita, com desesete annos de idade, solteira, natural dos Inhamuns, da provincia do Ceará, ser filha de Simeão Bispo de Oliveira e de Maria Rodrigues de Oliveira, viver de suas costuras, ser moradora no Brejo Secco, no Inhamuns, e somente de ha sete mezes para cá na villa de Jaicós, desta provincia.

« Perguntado quando sahio da villa de Jaicós para esta capital, que destino tinha? Respondeu que sahio a vinte do mez passado, directamente para esta capital, com o unico fim de ver se podia ser acceita para a guerra no Paraguay.

« Perguntado em companhia de quem veio ? Respondeu que veio para aqui com os voluntarios que trouxe o Sr. capitão Cordeiro, tendo declarado aos mesmos qual sua intenção.

« Perguntado se não era amazia de algum dos voluntarios com quem veio? Respondeu que não tinha relações com esses homens, e que os acompanhou sómente porque vinhão tambem para a capital, tendo por muitas vezes declarado-lhes, quando indagarão da sua viagem—que se ia apresentar como voluntaria da patria.

« Perguntado porque tomou roupa de homem, mudando assim o seu traje, natural? Respondeu que tomou roupa de homem, porque as pessoas a quem declarava sua intenção, dizião-lhe—que, como mulher não poderia ser aceita no exercito. E então como fosse grande o desejo, que tem de seguir para a guerra cortou seus cabellos com, uma faca, pedindo depois a uma mulher que os aparasse bem rente, e tomou roupas de homem; foi assim apresentar-se ao Exm. Sr. presidente da provincia, e rogou-lhe que a mandasse alistar como voluntaria da patria.

« Perguntado como descobrio-se ser mulher ? Respondeu que estando na casa da feira, hoje pelas quatro horas da tarde, uma mulher vendo-a com as orelhas furadas, dirigio-se á ella respondente e apalpando-lhe os peitos, apezar de sua opposição, e de ter atados os seios com uma cinta, a referida mulher pôde conhecer o seu sexo, e immediatamente descobrio-a, dando parte ao inspector do quarteirão, que mandou-a conduzir á policia por dous soldados.

« Perguntado porque chorava quando se viu na presença da autoridade? Respondeu que chorava porque se via em trajes de homem em presença de muitas pessoas, e teve vergonha disso ; e mais chorava tambem porque suppunha que sendo descoberta não seria aceita para a guerra.

« Perguntado se sabia atirar, e se tem disposição para soffrer os trabalhos da guerra? Respondeu que não sabia carregar a arma, mas que sabe atirar, e tinha disposição para aprender o necessario e tambem para supportar os trabalhos da guerra, e até para matar o inimigo.

« Perguntado se o governo a não aceitasse como soldado, se está disposta a seguir sempre para o sul, afim de occupar-se em trabalhos proprios do seu sexo? Respondeu que em ultimo caso aceitará isso, porem que o seu desejo era seguir como soldado, e tomar parte nos combates, como voluntaria da patria.

« Perguntado se seus paes são vivos ou mortos, e se conhece alguns de seus parentes, e quem sejão elles? Respondeu que não tem mais mãi; que seu irmão mais velho de nome Jesuino Rodrigues da Silva já seguio para o sul; que seu pae ainda vive, tendo comsigo irmãos menores della respondente, no lugar Brejo Secco, já referido.

« Perguntado se sabía lêr e escrever? Respondeu que sabe, mas tudo mal.

« E nada mais respondeu e nem lhe foi perguntado: deu-se por findo este auto de perguntas, depois de lido e o achando conforme, assigna com o juiz, e rubricado pelo mesmo; do que dou fé. Eu Raymundo Dias de Macedo, escrivão, o escrevi e assigno.—Antonia Alves Feitosa.

« E' sobre modo notavel que no sexo feminino, onde naturalmente se aninhão o medo e o pavor, appareça esta excepção á regra geral, encarando com verdadeiro denodo e coragem os rigores de uma guerra!

« Do interrogatorio que se acaba de ver e diversas interpellações que particularmente se tem feito á esta brava joven, ainda se não pôde colligir que outro designio, a não ser o nobre fim de pugnar pela defeza da patria, a tivesse trazido da villa de Jaicós a 70 leguas distantes desta cidade.

« E' um heroismo a toda a prova. »

Este mesmo depoimento nos foi feito por Jovita em uma das salas do Quartel do Campo da Acclamação, no Rio de Janeiro, onde ella se achava.

Só um devotamento supremo podia ter tocado o coração desta mulher cuja resolução inabalavel perde-se nos véos de um mysterio, que não nos é dado perscrutar, e que só o futuro nos poderá esclarecer.

Na frase de um grande escriptor, talvez que o demonio da solidão a inspirasse !

III

Ahi em Therezina encontrou-se com seu Pai, que vinha de Caxias, o qual, com difficuldade acquiescendo aos desejos patrioticos de sua filha, deitou-lhe sua benção, e seguio....

Jovita já não era uma mulher !—Era um voluntario da Patria, graduado com o posto de sargento!

No dia 10 de Agosto embarcou Jovita com 460 praças com destino a Parnahyba. D'ahi embarcou uo Gurupy para o Maranhão, e do Maranhão veio no Tocantins para o Rio de Janeiro, onde chegou no dia 9 de Setembro.

Immediatamente dispertou-se a curiosidade publica.

Todos corrião para vêl-a.

As photographias se reprodusião todos os dias, é raro quem não possúa um retrato da voluntaria do Piauhy.

Vimol-a tambem :—E' um typo Indio. Tem uma estatura mediana, maneiras simples, e sem affectação, despida d'aquella gravidade, que impõe um respeito profundo, bem proporcionada, rosto redondo, uma cutis amarellada, cabellos curtos, crespos, e de um negro, acaboclado, mãos de homem e seccas, pés grandes.

Seus olhos negros, cheios de luz, tornão-a sympathica, seus labios fechados com alguma graça occultão dentes alvos, limados e ponte agudos.

Uma serenidade d'alma estende-se pelo seu todo, e mesmo lhe assegura uma confiança, que a tranquilisa.

D'onde se vê que devia zombar das seducções que a rodeião.

Sua vóz cantada, e de um timbre agradavel conserva sempre uma firmeza imperturbavel.

Procurando-a no seu aquartelamento tivemos por fim estudal-a ; e mesmo vêr se conseguiamos o segredo que a moveu nessa resolução inabalavel.

Surprehendeu-nos a sua singelesa e a tranquilidade que conservava vivendo entre soldados.

Nessa occasião trajava calças brancas, com uma blusa de chita mal afogada, n'um desalinho desgostoso, deixando vêr, atravez do colarinho de homem, um rozario de contas escuras, e uma corrente de ouro, cingidos ao pescoço.

Encostada a uma meza com a cabeça apoiada sobre a mão esquerda, respondia-nos, brincando com bonecas, e uma caixinha de brinquedos de criança.

Como se conciliar esta naturesa enigmatica?

Enigma talvez para ella mesmo, enigma ficou para nós !

Seria fraquesa?...—Não !—O Heliotropo tambem se volta para o sól.

Entre as muitas perguntas que lhe fizemos respondeo-nos contrariada do seguinte modo:

— Eu tenho muita raiva dos Paraguayos, queria ir para a guerra para matar essa gente; mas não me querem — ingeitarão-me.

—Como assim? retorquimos nós.

—O governo não permitte que eu siga. Já me destituirão do posto.

—Mas, dissemos nós, a Sra. mesmo não podia ir por ser mulher; porque rasão não segue prestando os serviços proprios do seu sexo?

—Não, nesse caso não vinha, podia ficar na minha terra, onde faria tudo isso, e de mais,— continuou ella n'um tom apaixonado-O Imperador tambem já foi para a guerra....

—A Sra. estima o nosso Monarcha !

—Se eu não estimal-o, a quem mais devo estimar? Respondeo-nos com uma inflexão de vóz decisiva.

De facto ; notava-se que um sentimento de contrariedade dominava toda a sua figura.

Já não possuia aquella magestade dos seus dias de triumpho popular. Tinha no olhar uma indifferença sarcastica para todos que se approximavão.

Havia seu fundamento:

Jovita, uma vez prestado o juramento de fidelidade á sua Patria, e depois alistada no exercito com as honras de 2º sargento de Voluntarios, nunca suspeitou que mais tarde a destituissem do seu posto.

Uma ordem, porém, baixou da Secretaria d'Estado dos Negocios da Guerra, em data de 16 de Setembro, concebida nestes termos:

« Illm. Sr.

« Não havendo disposição alguma nas Leis e Regulamentos militares que permitta á mulheres terem praça nos Corpos do Exercito, nem nos da Guarda Nacional, ou de Voluntarios da Patria ; não pode acompanhar o corpo sob o commando de V. S. com o qual veio da Provincia do Piauhy a voluntaria Jovita Alves Feitosa na qualidade de praça do mesmo corpo, mas sim como qualquer outra mulher das que se admittem a prestar juncto aos corpos em campanha os serviços compativeis com a naturesa do seu sexo, serviços cuja impartancia podem tornar a referida voluntaria tão digna de consideração, como de louvores o tem sido pelo seu patriotico offerecimento : a que declaro a V. S. para seu conhecimento e governo.

« Deos guarde &c»

Jovita, entretanto appellou para os sentimentos generosos do nobre Ministro da Guerra, sollicitando para que revogasse a ordem do Quartel General.

Era bem difficil o que ella pedia. O Exm. Ministro, cujos desejos erão ardentes em conferir-lhe essa graça, de módo nenhum podia acquiescer, visto como a lei é muito expressa a tal respeito. Não obstante—dignou-se responder-lhe em uma carta que lhe dirigio, concebida nos termos os mais doceis e convincentes, mostrando-lhe o preceito da lei. Ahi revelou o seu pesar, manifestando que a sua compleição e o seu sexo era rasão para não poder supportar as fadigas de uma campanha, e que o seu sacrificio em bem do Paiz seria inutil, visto haverem numerosos deffensores. Com tudo, não deixava de apreciar e louvar a viva prova que dava do seu patriotismo, offerecendo-lhe os meios de que necessitasse para que, recolhendo-se a sua familia, tivesse a felicidade de que é digna.

IV

Se, como Joanna d'Arc, Jovita tivesse em outros tempos encontrado uma rainha Yolande d'Anjou, por certo não teria deposto os galões de sargento, que com tanto patriotismo e renome forão conferidos pelo illustrado Presidente da Provincia do Piauhy o Exm. Sr. Dr. Francklin Doria, cujo coração eminentemente Brazileiro, maravilhado por tamanho heroismo, acceitou-a por um rasgo de imaginação patriotica.

—Hoje, porém, nenhuma vontade está acima da lei.

Nem seria um facto novo que se abria nos fastos, quer da nossa historia, quer da humanidade soffredora.

Ha exemplos de uma coragem admiravel entre as mulheres de todos os tempos; principalmente quando uma paixão, ou uma idéa as illumina, porque então sentem-se inflammadas, e levantão-se apaixonadas n'aquelle enthusiasmo sublime dos tempos heroicos.

No Brazil, alem dos nomes celebres d'as mulheres heroinas dos tempos coloniaes,[2] existe ainda bem rica na memoria do povo essa figura magestosa da mineira que na revolução de 42 sagrava com seu osculo de mãi a fronte de seus filhos rebeldes, e com elles caminhava aos campos da Batalha!

Olimpia de Gouge fundando o direito das mulheres bem o disse: « Elles ont bien le droit de monter à la tribune, puis qu'elles ont cellui de monter a l'echafaud. »

Parodiando suas palavras nós diremos « As mulheres têm o direito de se iniciarem nos destinos da patria, visto como tem o dever de contribuir com seus filhos para a guerra. »

Assim nós vemos entre os bustos venerandos de toda essa Assembeléa Francesa, nos tempos sanguinolentos da grande Epopéa social, que reformou o mundo pelo exemplo e pela palavra, surgirem vultos de mulheres, notaveis pela grande influencia que exercerão pelo seu devotamento, e pela sua fé gloriosa.

Carlota Corday pela inspiração patriotica sóbe a guilhotina—foi-lhe a morte sublime nesse martyrologio sagrado de uma nova religião!

Madame Roland, cuja coragem concorreo para erguer o altar do futuro, é recebida pelos Jacobinos como um dos seus membros illustres.

Theroigne de Mirecourt—a Joanna d'Arc impura da praça publica—como a chrismou Lamartine, vindo a Paris attrahida pela Revolução Francesa, ahi mostrou prodigios de valor—foi a primeira que subio á torre no assalto da Bastilha !

Não era pois de admirar que Jovita como desinteresse com que se atirava ás luctas d'uma campanha, produzisse actos de valor na qualidade de sargento.—Houve tambem na Bastilha uma mulher que seguio para a guerra como capitão de artilharia.

No momento em que escrevemos estas paginas biographicas folgamos de registrar mais um commettimento digno de gloria para a nossa galeria historica.

« D. Marianna Amalia do Rego Barreto, moça de 18 annos de idade, de educação fina e cuidadosa acaba de offerecer-se para o 5.º corpo do Batalhão de voluntarios da patria.

O Sangue de D. Clara, e de outras Pernambucanas illustres, que tanto se distinguirão nessa luta titanica que nossos avós sustentarão heroicamente com os Holandeses ate expellil-os do territorio, não pôde por mais tempo sopitar-lhe o desejo de ir encorporar-se aos defensores da Patria.

0 Presidente acceitando o seu offerecimento feito sem reserva nem condições, destinou-a para o hospital de sangue e permitio-lhe o uzo das insignas de 1.º cadete em attenção á sua hyerarchia. »

Filha dessa Veneza Brasileira tão notavel entre as estrellas do diadema Imperial merece toda a nossa admiração !

V


Jovita Alves Feitosa podia muito bem glorificar os feitos de nossas armas nos muros de Humaitá !

A palavra liberdade domina-lhe tanto o espirito quanto lhe horrorisa a palavra captiveiro, e ella ama sua patria assim como a Princesa de Lamballe amava na Rainha Maria Antonieta uma amiga devotada.

Não forão as ovações das massas populares que attrahirão Jovita, mas sim o soffrimento de sua patria, os infortunios de seus irmãos !

E' certo que, Jovita voltará para o seio de sua familia, já que não pôde realisar os seus sonhos desejados.

Pouco lhe faltava tambem para completar a sua gloria !

Tamanhas forão as ovações que lhe fiserão.

Nas diversas provincias em que passou o Tocantins recebeo Jovita as maiores próvas de enthusiasmo e gratidão nacional.

A tal respeito diz o Diario de Pernambuco.

« A este batalhão vem encorporada a heroina brazileira, segundo a consagração popular, Jovita Alves Feitosa, de 18 annos, natural de Inha-muns, provincia do Ceará, e ha um anno residente em Jaicós, provincia do Piauhy, onde deixa dous irmãos menores, e a pai, que com difficuldade acquiesceu aos desejos patrioticos, de sua heroina filha.

« Dominada de grande patriotismo, que se lhe desenvolveu com as infamias dos Paraguayos, ás do seu sexo, foi Jovita á capital do Piauhy, e ahi alistou-se no 2.º corpo de voluntarios dessa provincia, declarando logo que não queria ser enfermeira e sim militante.

O presidente da provincia,depois de se convencer de que a sua resolução, não era filha de uma loucura nem pretexto para encobrir um illicito amor, a mandou alistar com a graduação de 2.° sargento, em cujo posto com facilidade se exercitou, e dizem ser o sargento do corpo que está mais pratico nos manejos das armas.

« Traja calça e saiote, fardeta e boné do corpo e tem o cabello cortado á escovinha.

« Os Maranhenses fizerão a esta patriota, que mais tarde será uma heroina, as maiores ovações.

« Na sua chegada alli, ia ser hospedada em casa do Dr. juiz de direito da 2.ª vara Antonio Francisco de Salles, onde se hospedou o commandante; porém o ajudante d'ordens da presidencia, tenente Campos, que primeiro foi a bordo, a levou para o seio de sua Exima. familia, onde recebeu a heroica menina distincto agasalho e foi comprimentada por innumeras pessoas.

« O emprezario do S. Luiz, Vicente Pontes de Oliveira, mal fundeou o vapor, annunciou para o mesmo dia um espectaculo em honra della; e tamanho foi o enthusiasmo que em pouco menos de tres horas forão vendidos todos os camarotes e cadeiras, sendo a concurrencia ao espectaculo espantosa. A elle assistio Jovita em trajos militares e de um camarote adornado com a bandeira nacional.

« A distincta artista D. Manoela, vestida de guerreira e empunhando o estandarte nacional, recitou a patriotica poesia do Sr. Moniz Barreto, e em seguida cantou ella, acompanhada péla orchestra, com todos os artistas da companhia, fardados a voluntarios, o hymno da composição do maestro Francisco Libanio Colás e letras do poeta Juvenal Galeno.

« Por essa occasião o povo pedio o comparecimento em scena da heroina, o que ella satisfez. Vivas, bravos, e flores partirão de todos os angulos do theatro.

« D. Manoela, abraçando-a, e dando-lhe um osculo, tira-lhe o boné, colloca-lhe na cabeça uma corôa de louros, e lança-lhe ao pescoço um cordão e um crucifixo de ouro; e, findo que foi o espectaculo, é ella, conduzida á casa pelo povo ao som de vivas e musica.

O negociante portuguez Boaventura Coimbra de Sampaio mandou-lhe preparar e offertar um completo fardamento de panno fino. O Maranhão soube distinguir a tão patriotica joven; e o Sr. Dr. Salles deu-lhe um jantar, a que assistio toda a officialidade do seu corpo e innumeras pessoas.

« Ao passar pela Parahyba, recebeu ella ainda uma nova prova do apreço que merece a seus concidadãos.

« Uma commissão foi a bordo do vapor, e ahi fez-lhe offerta de um custoso annél de brilhantes, como recordação de seus patricios Parahybanos, que sabem como todos os Brazileiros honrar as virtudes civicas. »

Sua passagem em Pernambuco foi trimphante.

O Presidente da Provincia recebeo-a no Theatro em seu camarote, dando-lhe um lugar distincto.

E nem podia esse povo ser indifferente—São Pernambucanos !..

Nessa occasião deslumbrou os espectadores uma linda poesia, apropriada ao assumpto, e que não podemos furtar-nos ao praser de transcrevel-a.

—São os sentimentos do povo Pernambucano nos labios do Poeta:



Á Heroina Brazileira Jovita Alves Feitosa.

Na onda do movimento
Do paiz em convulsão,
Fero, pujante, sedento,
Terrivel como o vulcão,
Destaca-se á luz do dia
Um typo de valentia,
Enchendo de sympathia
O mais revel coração.

Não me admira o denôdo
Da multidão varonil
Do povo que ergue-se todo
Bradando louco, febril :
« Cuidado ! gente insensata !
« Cuidado ! Cohorte ingrata
« Da Republica do Prata !
« Tem muita gente o Brazil ! »






Não me admira a coragem
Dos filhos que unidos dão
A' pobre Mai na voragem
Nobre, solicita, mão !
Um lhe diz: « Eu vou, eu corro! »
Outro ! « Esperai meu soccorro »
E ella diz: Meus filhos morro »
«Se não me daes protecção! »

Bato palmas á nobreza
De quem conhece o dever ;
Applaudo a ardente braveza
Do homem que o sabe ser ;
E teço tambem um canto
A quem sobe, tanto, tanto,
Mas não me leva ao espanto
natural proceder !



O que me espanta é a força
De um fenimil coração,
E' vêr n'um peito de corça
Brío, valôr de leão !
E sob a forma delgada
De uma mulher delicada
Vêr um'alma alimentada
Do fogo de uma explosão !

Isto, sim, isto é sublime !
Vale arcos triumphaes !
E' grande arrostar o vime
Nortadas e vendavaes !
E' cousa que maravilha
Partir risonha á guerrilha
Ingentra, modesta filha
Qual desinvolto rapaz !



Percorro os sagrados templos
Do mundo dos Pantheons,
E vejo de taes exemplos
Raros nas outras Nações ;
Só no livro desta terra
Em tempos assim de guerra
Eu leio que a historia encerra
Esses portentos de acções !

A tudo quanto me ouça
A todos que estão aqui
Peço palmas para a moça
Que occupa um lugar ali,
Ella vale uma epopéa,
Erguei-vos nobre platea
Essa Amazona applaudi !


VI


Entretanto, pobre mulher ! Não deixarão de apparecer seus preconceitos !

Muitos, ignorando qual o verdadeiro lugar que nestes accontecimentos te devião dar, não quiserão accreditar que um ajuntamento de causas naturaes, combinadas pela mão da Providencia,produsisse tamanho civismo ! Procurarão inverter as altas aspirações que te impellirão para o centro dos perigos.

Quiserão negar-te essa alma generosa, depurada n'um sentimento grandioso !

Mas, debalde! — A alma que te illumina é como a luz que bróta expontanea das regiões occultas do infinito para infundir-se deslumbrante pelo espaço além.

O que te faltava pois?

E's moça, tens a alma dos 18 annos, o vigor do sangue, e a imaginação ardente da mulher do Norte, que concebe e realiza por paixão.

Serias uma louca ?

Tambem Joanna d´Arc, foi considerada como uma louca pelo Sr. de Beaudricourt quando seu tio Durand a apresentou communicando a sua resolução.

Qual pois o movel que te guiou?

Seria o amor ultrajado?

Tiroagne de Mirecourt tambem commetteo actos de uma bravura historica, movida pela paixão, e pelo vicio de que ella se envergonhava.

Como quer que seja, se algum motivo extranho te inoculou tamanha coragem, ainda assim és digna de toda a admiração da posteridade.

Suspendamos, porem, o nosso juizo, neste ponto, e perdoemos aos levianos.

—E' que elles se maravilhárão com a grandesa da acção, e, covardes, atordoarão-se por assim diser com este heroismo de uma moça de 18 annos, e com a severidade com que ella affrontou sempre tamanhas difficuldades.

Felizmente acabarão-se as clausuras, e os tempos do Mahometismo.—Já as mulheres não são vitimas do furor estupido dos homens.

O Christianismo com o seu verbo sublime espancou esses névoeiros pesados da antiguidade.





Typ. Imparcial, rua de Santo Antonio n. 26 A

  1. No interrogatorio a que procedemos particularmente dice-nos que era filha de Maximiano Bispo de Oliveira, e de D. Maria Alves Feitosa.
    Nós nos cingimos ao depoimento feito perante o Dr. Chefe de Policia do Piauhy.
  2. Guerra dos Hollandezes.