Quando Paulo tornou ao quarto a moribunda arquejava em agonia maior, respirando a espaços, ficava longo tempo imóvel, como se já houvesse acabado; de repente, porém, abria-se-lhe a boca imensa e o ar entrava de raspão como se fosse rompendo passagem. Ritinha chegou-se ao leito e ficou contemplando a velha, cuja fisionomia cavava-se com a angústia.

Apalpou-a, sentiu-a fria até o ventre - era a morte que começava a subir. Súbito abriram-se-lhe dilatadamente as olhos vítreos, assombrados e fitos. Os dois recuaram, um estremecimento sacudiu-a toda. Os braços enrijaram-se, a cabeça soergueu-se de leve, um gargarejo rolou no fundo da garganta, as pálpebras tremeram.

Ritinha pôs-lhe a vela na mão. Paulo ajoelhou-se soluçando. Fecharam-se-lhe os olhos e ficou imóvel. Ele ainda esperou ouvir o estertor angustioso, mas a morte passara - aquele fora o último olhar à vida, cheio de agonia, cheio de saudade, talvez de queixas, antes de apagar-se para todo o sempre na eterna sombra da morte.

— Então, Ritinha?

— Acabou. Deus a tenha!

— Coitada de minha mãe!

A mulata apalpou o peito procurando sentir o coração - todo o movimento cessara.

— Paciência, disse: Está no céu.

Ele saiu do quarto soluçando, atirou-se à rede e ali ficou, sem coragem, numa prostração invencível, recordando, com remorso, as cenas das últimas noites: "Coitada! Quem sabe se não foi o desgosto que a acabou mais depressa? Fiz mal! Devia ter esperado um pouco. Ela era tão boa, coitada!" Sentiu, então, um grande vazio, achou-se só, sem um afeto sincero, nas ruínas da casa. Foi, dia novo, ao quarto e, sentando-se na cama, a olhar a morta, pensou que não fizera o bastante para salvá-la. Esquecera-a, deixara-a acabar sem os necessários cuidados. Pobre velha! Tomou-lhe a mão, beijou-a repetidas vezes e baixinho, pedia perdão, desculpava-se: "Minha pobre mãe! Minha mãezinha... tão boa...!" Quando Mamede chegou perguntando se o médico já viera, Ritinha deu-lhe a notícia.

— Coitada da velha! A menina disse que só pode vir mais tarde. Estava lá de troça com uns moços. E nhozinho?

A mulata fê-lo entrar. Paulo recebeu-o soluçando, abraçaram-se

— Tenha coragem, nhozinho. Vosmecê é homem. Descansou, coitada. Coragem! Eu fico aqui para ajudar no que for preciso. Sou seu amigo, nhozinho. Tenha paciência. Conforme-se com a vontade de Deus.

A vizinha, sabendo que a velha havia morrido, apareceu, muito enternecida, lamuriando. A mulata levou-a ao quarto. Ficaram as duas diante do cadáver, em contemplação silenciosa. Paulo chegava à porta, olhava e retrocedia chorando.

A vizinha ofereceu-se para ajudar a vestir o corpo. Foi um devassar de móveis: armários abertos, canastras revolvidas à procura de roupa; camisas, saias, um vestido decente. E os linhos puídos, remendados, tresandando a ervas, empilhavam-se aos pés da cama sobre retalhos, restos de rendas, pedaços de fitas. Paulo lembrou um velho vestido de merinó preto; acharam-no, e os dois homens passaram à sala da frente enquanto as mulheres, abrindo de par em par as portas do quarto compunham o cadáver.

Quando reapareceram, Mamede propôs trazerem o corpo para a sala. Arranjaram a mesa colocando-lhe em cima duas tábuas e foram buscar o cadáver. Mamede saiu a comprar velas, acendeu-as e reuniram-se na sala. Paulo, sucumbido, suspirava de quando em quando. Ninguém ousava falar; foi a vizinha quem quebrou o silêncio para elogiar a finada:

— Nem parecia que morava gente aqui. A não ser o falatório da preta no quintal, era um silêncio completo. Boa criatura.

E referiu-se à família que anteriormente habitara a casa - um casal e dois filhos. Eram brigas desde que amanhecia e as crianças insuportáveis, muito atrevidas, sempre esmolambadas, sujas, trepadas no muro, atirando pedras, dizendo obscenidades. Deixaram a casa como um chiqueiro.

Mamede interveio. Falou dos bons tempos da velha, da sua beleza, da sua vida feliz em companhia do marido e, pouco a pouco, estabelecendo-se intimidade, conversaram; o próprio Paulo chegou-se ao grupo e falaram de tudo - da carestia da vida, dos crimes que os jornais referiam, das moléstias que devastavam. A vizinha, sem reservas, disse à Ritinha, não tão baixo que não pudesse ser ouvida dos homens:

— Eu, por mim, prefiro ficar sem um pedaço de pão para o dia seguinte, mas gente que eu não conheça não me dorme em casa. Ninguém sabe se o homem que se recebe é uma pessoa de bem ou um assassino. Deus me livre! Eu não! Os malfeitores não trazem sinal. Eu vejo o que se passa por aí, nos pontos mais freqüentados. Mesmo de dia não há segurança, quanto mais de noite e numa rua deserta como esta. Entram, fazem o que muito bem querem e saem muito frescos.

Ritinha concordou.

Ao cair da tarde Paulo chamou Mamede, deu-lhe dinheiro, pediu que fosse a um hotel encomendar alguma coisa. O mulato saiu. Pouco a pouco a tristeza foi-se desvanecendo. Ritinha convidou a mulher a entrar e, já íntimas, conversavam sobre Violante. A mulher vira-a na noite da visita.

— É a filha da velha?

— É.

— Mas, pelos modos, é moça da vida?

— Saiu de casa. E foi isso que matou mais depressa a pobre de Deus.

— Bonita?

— Dizem que sim. Eu ainda não a vi.

— Com quem vive?

— Não sei.

— Com certeza vem hoje cá. Já sabe?

— Sabe. Mamede foi lá.

— Onde mora?

— Em Botafogo.

— Também já morei lá.

— A senhora?

— Sim. Morei lá com um doutor. Isto é: tive casa, ele vivia com a família, ia só à noite. Morreu e eu fui obrigada a cair nesta vida de receber todo o mundo. É o fim de todas.

— Infelizmente! - suspirou Ritinha.