Julho 1871.
Todos têm visto, decerto, um pequerrucho jogando a bisca com um irmão mais velho. O pequeno, se tem mau jogo, deita as cartas sobre a mesa, baralha, ri, confunde, grita:
— Desta vez não valeu, vamos a outro!
Mas se o jogo que lhe volta à mão é pior:
— Abaixo! — grita de novo. — Este também não valeu. Agora é que é sério!
E derruba um terceiro jogo, e cada vez promete maior seriedade, e cada vez espalha maior confusão, e todo o mundo sorri em redor!
Às vezes — funesto momento das revoltas humanas! — o irmão mais velho, cansado, termina por atirar furiosamente à cabeça do pequeno o baralho de cartas amarrotadas.
Pois bem, o discurso da coroa tem na política a atitude teimosa da criança que joga a bisca.
No começo de cada legislatura, o discurso da coroa declara gravemente:
— Desta vez vamos ocupar-nos com toda a seriedade da questão da fazenda, etc.
Mas durante a legislatura vem a confusão, a dissolução. O poder executivo tinha mau jogo, e deitou as cartas abaixo.
Surge outra Câmara. Volta no seu cerimonial o discurso da coroa. Diz:
— Da vez passada não valeu! Mas agora é que nós vamos aplicar-nos com o maior zelo à questão da fazenda...
E nessa legislatura, como a confusão se alarga mais, é imposta uma nova dissolução.
Reabre-se a Câmara. O discurso da coroa entra esbaforido, bradando:
— Agora é que é a valer! Agora é que é! Das outras vezes não! Mas agora com toda a certeza!
Agora é que nós vamos, positivamente e de uma vez para sempre, resolver a questão da fazenda...
E nada se resolve, trocam-se palavras vãs, especulam-se lugares rendosos, profundam-se dissidências mesquinhas, e baralha-se outra vez o jogo.
E aí vem o discurso da coroa abrir de novo as cortes, rosnando com a mão no peito:
— Pois senhores, palavra de honra, agora a todo o custo, impreterivelmente, havemos de resolver a questão da fazenda, etc.
Ora nós estamos vendo isto ao canto da sala, atentos e desinteressados, enquanto ferve o chá, e já percebemos, no irmão mais velho, um movimento de quem vai atirar com o baralho de cartas à cabeça do pequerrucho.
E francamente tem razão. A teima das crianças — como a teima das instituições — chega a irritar! Se não, que o digam o mestre régio das Mercês — e Félix Pyat.
Singular temperamento o do discurso da coroa! Todo o mundo está desiludido, só ele espera! Segundo ele o País floresce, enriquece, e o Paraíso está ainda mais perto que a Outra Banda. E tentarmos um passo, um leve esforço, e entrarmos para sempre na tranquilidade augusta da perfeição — chegando a dispensar o Sr. Melício, ele próprio! Há só um ponto negro que assusta o discurso da coroa: é a questão da fazenda. No entanto, o discurso da coroa, cada vez que aparece em público, promete resolver a questão da fazenda.
Desta vez, porém, o discurso da coroa foi sobretudo chamente noticioso. O poder executivo, num momento de adorável franqueza, confessou ao poder legislativo que S.
M. o Imperador do Brasil tinha estado em Lisboa. É talvez bastante censurável esta concorrência que o discurso da coroa faz ao Diário de Notícias; mas ele realmente não pode proceder de modo diverso. O discurso da coroa tem de dizer alguma coisa ao Pais.
Mas o quê? factos da vida política? da acção civilizadora? do pensamento público?
Como? se nada se fez, nada se civilizou, nada se pensou! O discurso da coroa, nesta falta de significativos factos da vida pública, tem de recorrer aos cancãs interessantes da vida particular. Não podendo falar como uma página de história, conversa como uma tagarelice do Chiado. O seu dever com efeito é resumir tudo o que politicamente se fez no interregno parlamentar. Mas se nesse interregno o facto mais característico da vida nacional foi o partir para o Porto a companhia do teatro do Ginásio, que remédio senão que o discurso da coroa dê parte desse sucesso constitucional?
E ainda veremos, querendo Deus, o discurso da coroa, assim concebido:
«Dignos pares e senhores deputados da Nação:
— É com o maior prazer que me acho no meio de vós. O sr. conselheiro Pestana partiu para Vizela. Vai publicar-se brevemente um novo jornal, intitulado o Brado da
Lourinhã. Chegou o brigue Carolina. Há hoje dobrada na Rua Augusta, nº108. O cambista Fonseca espera os seus fregueses. Vamos ocupar-nos com todo o afinco da questão da fazenda.
«Está aberta a sessão.»
E, como em virtude da inacção política e sonolência individual, cada vez maiores, não haverá em breve nem factos políticos a proclamar, nem notícias particulares a referir — o discurso da coroa será obrigado, para dizer alguma coisa, a recitar obras de imaginação:
«Dignos pares e senhores deputados da Nação portuguesa: — Por uma fria noite de
Inverno, um vulto misterioso caminhava, embuçado em capa alvadia, pelos desfiladeiros da serra Morena. Vergava-lhe a fronte uma grande amargura. De súbito parou; tinha ouvido, para os lados do despenhadeiro tenebroso, um assobio lúgubre... —
Continuar-se-á na próxima sessão de abertura. Passemos agora à questão da fazenda.»
E mais tarde, cada vez mais vago, o discurso da coroa murmurará:
«Dignos pares e senhores deputados da Nação portuguesa:
«Era no Outono quando a imagem tua
A luz da Lua sedutora eu vi:
Lembras-te, Elisa?...
«E aplicaremos todo o nosso zelo à intrincada questão da fazenda.
«Está aberta a sessão.»
Para quê o discurso da coroa? Para que obrigar o chefe do Estado a repetir uma velha lauda de prosa escrita em 24, e que é hoje uma negação da verdade, uma falsificação da história? O País está desorganizado: esta certeza é dada pelas discussões do parlamento, pelos relatórios dos ministros, pelas afirmações da imprensa, pelas conversações dos cidadãos. Por consequência, ou o discurso da coroa exprime rigorosamente a opinião e a consciência do chefe do poder executivo — e então que confiança nos pode inspirar este magistrado, se ele ignora inteiramente o estado do seu país? Ou não exprime opinião alguma — e então que seriedade tem o chefe do poder executivo, vindo diante do País, quando eram necessárias palavras decisivas, recitar parolas ocas e vãs?
Sabemos perfeitamente que a coroa não é culpada do discurso que lhe obrigam a recitar, como não é responsável pela desorganização em que a obrigam a viver. A desorganização é a consequência de uma política ignorante e torpe — o discurso é a fórmula de um cerimonial antigo e rococó. Mas já que os governos não têm a capacidade de tolher a desorganização, tenham ao menos o pudor de cortar o cerimonial. E seja substituído o discurso da coroa por um franco e honrado: — Bons dias, meus senhores, toca a sentar!
Porque, sabe a coroa o que logicamente devia dizer? — Isto:
«Meus senhores: — E com o maior desprazer que me acho no meio de vós, pois que estou fatigado da vossa imbecilidade, da vossa intriga e do vosso desleixo. A situação exterior é esta: somos o que somos, porque nos deixam sê-lo por misericórdia.
A interior é esta: finanças em ruína; colónias exploradas pelo estrangeiro; marinha nula; indústria entorpecida; clero ignorante e imoral; ensino caótico; vida municipal extinta; funcionalismo desbragado; pensamento emudecido; carácter corrompido; serviços públicos desorganizados; leis em confusão; agiotagem em triunfo; proletariado em miséria; etc., etc., etc. Vão, e que o Diabo os carregue, para os seus lugares. Disse.»
Assim devia falar a coroa.
Mas, assim ou de outro modo, que seja sobretudo nacional em gramática! Que significa a construção do período à inglesa — adoptada pelo discurso da coroa? Que britânico furor a tomou de colocar os adjectivos antes dos substantivos? E uma adulação
à pérfida Álbion? Quebramos nós o Tratado de Methuen — para nos irmos escravizar no tratado de gramática de Sadley? A que vêm estas expressões repetidas de pública fazenda, nacional riqueza? São influências da política inglesa?
Confiemos em que nunca tenhamos de descer à humilhação de ouvir a coroa, por atenção aos nossos fiéis aliados, abrir-se deste modo com o País:
«Dignos pares e senhores deputados da portuguesa nação: — Feliz me acho, por me sentar no meio do nacional parlamento, dando começo às nacionais lides. E necessário que zelemos a pública administração, para manter as pátrias liberdades. Sem o constitucional decoro não há públicas garantias. A nacional fazenda merecerá o maior zelo ao legislativo poder. O executivo poder esse manterá as publicadas leis. Está aberta a ordinária sessão das portuguesas câmaras. All right!»
Esperemos que a coroa, mais bem aconselhada, volte às tradições da nacional — gramática.
E o próprio Sr. Pinto Bessa aplaudirá!