O MOTIVO MAIS FORTE

Meia hora depois, ouviu Carlos o rodar da carruagem, que levava Mr. Richard e Jenny á hospedaria, em que estava alojado Mr. Smithfield.

Julgára que respirarìa satisfeito, quando tivesse emfim conseguido ficar toda aquella noite á sua propria disposição; mas cêdo reconheceu que o esperára em vão.

Ha situações na vida era que, para qualquer lado que a resolução nos encaminhe, gera-se-nos sempre no animo um remorso, mais ou menos intenso, por haver abandonado os outros.

Em uma d'estas dilemmaticas contingencias se tinha achado o espírito de Carlos.

Na vespera havia de facto promettido, não a Manoel Quentino, como á irmã dissera, mas a Cecilia, o que maior força dava ainda á promessa, que não faltaria á festa, disfarçadamente planeada por ella, para celebrar o restabelecimento do velho.

Era uma especie de innocente conspiração entre os dois; e é provavel que o leitor ou leitora não ignorem o ardor com que, de ordinario, o coração se vota a este genero de emprezas, com este genero de allianças.

Carlos não tinha coragem de faltar, nem que fosse para suspender aquellas lagrimas que vira imminentes nos olhos da irmã. Resistiu pois, como vímos.

Mas a resistencia deixou de si vestigios dolorosos; aquelle pezar, causado a Jenny, sentia-o ainda o coração de Carlos; ficára-lhe a dor intima, que até os alvoroços de prazer, excitados pela lembrança da proxima entrevista com Cecilia, pareciam exacerbar.

Porque ha d'estas contradicções nos sentimentos humanos; é por a mesma razão que, ás vezes, a negrura dos presagios mais se condensa entre os maiores fulgores da felicidade, e que se aviventa a luz de vagas esperanças nas mais tenebrosas situações da vida.

As horas porém adiantavam-se, e Carlos preparou-se para o serão festivo, que o esperava.

N'esta noite empregou na tarefa de se vestir um esmero, para que raras vezes lhe sobrava paciencia.

Parecia estar-se apromptando para um baile.

—Que importuna occasião escolheu este Mr. Smithfield para a sua visita!—pensava Carlos, emquanto ajustava ao espelho o laço da gravata de seda—Por causa d'elle é que Jenny me deixou assim pezaroso... Mas d'onde virá a exagerada apprehensão, que ella mostra d'esta vez?—E vestia o collete branco.—Não a devia tranquillisar o conhecimento que tem de Cecilia? Não devia até desejar que o meu coração se fixasse aqui, que não fosse mais longe? Só se receia de mim... Verdade é que o meu passado... Oh! mas d'esta vez...

No meio de uma turba de agradaveis pensamentos desvaneceu-se a impressão penosa, que lhe deixára a despedida da irmã.

Afagando-os a todos, terminou Carlos a sua acurada toilette e dispôz-se a partir, acompanhado por um cortejo de esperanças, tão vivas e palpitantes, que nem lhe deixavam sentir já o ligeiro remorso que, de mistura com ellas, lhe havia entrado o coração.

Ia já a transpôr o limiar da porta, quando um subito rumor de vozes, de passos apressados e gritos agudos, como arrancados por a mais dolorosa tortura, o fizeram parar.

Informou-se, cheio de inquietação, do motivo d'aquelle ruido.

—É a snr.ª Catharina, que está com um dos seus ataques—respondeu o criado, a quem elle se dirigiu.

Eram tão frequentes estes accessos na velha Kate, que, desde que Carlos soube ser essa a causa do rumor que ouvira, não lhe deu mais importancia e caminhou outra vez para a porta.

Redobrou porém a violencia dos gritos, e tanta e tão crescente angustia exprimiam, que o génio de Carlos não lhe permittiu mais tempo ouvil-os impassivel; obedecendo a generoso impulso, subiu apressado as escadas e entrou n'aquelle mesmo quarto, onde já acompanhamos Jenny.

Illuminava o aposento apenas a froixa claridade de uma lamparina, quando Carlos entrou alli.

Em volta do leito da velha ingleza agrupavam-se todas as criadas da casa.

A pobre louca estrebuxava tão violentamente com os braços, que ellas mal conseguiam segural-os.

Gesticulando com movimentos desordenados, soltando, entre gritos agudos, palavras sem nexo, reunindo syllabas sem significação, descomposta e com os cabellos em desordem, aquella desgraçada inspirava ao mesmo tempo compaixão e terror.

Carlos aproximou-se do leito.

A velha Kate, vendo chegar uma nova figura junto de si, fitou n'elle um olhar de expressão quasi selvagem e, depois de algum tempo, pôz-se a rir e a bater as palmas, com os modos infantis proprios d'aquelles estados de embecilidade.

—Olhem!... É elle!... é elle!... —dizia ao mesmo tempo, reparando cada vez mais em Carlos—Como veio para aqui?... Inda bem que vieste!... Agora sim!... Quero ver agora quem me fará mal?... Vem cá, Dick, vem cá!... Agora sim!...

E acenava-lhe para que se aproximasse do leito.

Carlos condescendeu.

—Vejam! vejam!—dizia a velha, passando as mãos pelos cabellos de Carlos—É outra vez o Dick, que eu conheci... Este sim!... Já não tem nenhuns cabellos brancos... Este sim... Eu bem dizia que havia de voltar. O outro não era verdadeiro... Agora já não receio esses malditos, que me teem aqui presa ha tanto tempo!... Que venham!... Tu não me has de deixar só com elles outra vez, Dick, não? Olha que me matam!

—Socega, Kate, socega—disse Carlos carinhosamente—Ninguem te quer fazer mal.

—É porque tu não sabes ainda o que elles me teem feito!... Olha; repara... Não vês o cadeiado que me pozeram aos pés?... Nem os posso mover... nem os sinto!... E agora... metteram-me aqui no peito um ferro... aqui... cá o sinto dentro.... Arde, como se estivesse em braza... E este laço?... não vês este laço, que me deitaram ao pescoço?... não vês como está apertado?... suffoca-me!... Ai!... ai!...

E respirando a custo, apertava com ancia, o braço de Carlos, que a segurava.

—Então, Kate, vê se descansas;—dizia elle—eu vou já mandar tirar-te tudo isso, que te afflige assim...

—Então... manda... manda! Por compaixão, Dick, manda; não deixes martyrisar assim a velha Kate!... Por amor de teus filhos, Dick! Eu não tenho forças para soffrer tanto! Estou muito velha, Dick, muito velha!... tem compaixão de mim!...

E rompia em soluços tão expressivos de dor, que até as criadas não foram superiores á commoção.

Depois encostou a cabeça ao hombro de Carlos, dizendo-lhe ao ouvido, com expressão de susto e de mysterio:

—Foram ellas que me fizeram todo este mal, não foram?

—Não; socega...

—Foram! foram, sim!—bradou, elevando a cabeça com violencia e inflammando-se-lhe outra vez o olhar, que parecia despedir faiscas, como sempre que era contrariada.

—Pois foram, foram; mas...

—Então não fiquemos aqui. Vamos outra vez para a Inglaterra, Dick. Para que me trouxeste tu para esta casa? Para quê?

—Descansa, que havemos de ir; mas é preciso que estejas socegada.

—Estou... não vês que estou?... mas... não me deixes só, não?—acrescentava, com entonação de supplica, quasi infantil.

—Então não vês aqui tanta gente?

—Não a quero. Manda-a embora; a todos... manda-os a todos embora!... Eu quero estar só comtigo...

—Mas...

—Manda-os embora, por amor de Deus, manda-os embora!

Carlos não teve coração para resistir a este pedido da louca.

Á sua ordem saíram as criadas do quarto, deixando Carlos só com ella.

—Fecha, fecha essa porta, para que não entrem outra vez, fecha.

Carlos fechou a porta.

—E agora vem cá; senta-te aqui, ao pé de mim; eu não posso dormir, se tu aqui não estás... E eu queria dormir... Tenho somno.

E tomou entre as suas as mãos de Carlos.

Carlos sentiu que as d'ella começavam a arrefecer, d'essa frialdade de gêlo, que excita em nós uma repulsão instinctiva. Pela primeira vez lhe acudiu a ideia de que podia ser aquella a ultima noite da pobre mulher.

Este pensamento fel-o olhar para ella com mais attenção.

A escassa luz da lamparina ainda lhe permittiu conhecer a profunda alteração de feições, que a pobre demente apresentava.

Deram nove e dez horas, e Carlos não saíra de junto da velha criada, que, segura ás mãos d'elle, estremecia ao menor movimento que sentisse, como receiando ser abandonada outra vez. Era tal o terror que mostrava de ficar só, que tirou o animo a Carlos de tentar sequer deixal-a.

Assim as horas, que elle contava passar na companhia de Cecilia, iam-lhe correndo junto d'esta desgraçada octogenaria, que com discursos incoherentes, de mistura com risos e com prantos igualmente expressivos de desvario, o conservou alli.

Pouco a pouco, principiou a tornar-se-lhe mais tardia e inintelligivel a pronuncia, mais sumida a voz, mais ennevoado o olhar.

—Pozeram-me estes ferros...—murmurava ella, interrompendo-lhe a ancia, a cada instante, as palavras sem nexo que dizia—pensam que eu não sou... Kate?... sou Kate, sou!... Foi á viuva do fogueiro... que eu dei... o vestido verde... O fogueiro morreu... morreu no mar... É porque não são bons christãos... Não foi o gallo que cantou, foi a coruja... Dizia que eram esmeraldas e... assim é que a irmã se perdeu... O cedro chorava... era o pae d'ella...

Carlos, pousando-lhe a mão no pulso, mal o pôde já perceber... Tentou sair, para chamar alguem que ministrasse os soccorros precisos, mas a contracção, com que a velha o segurou, o estremecimento que lhe correu pelo corpo, ao sentir a tentativa de Carlos, obrigaram-o a desistir.

—E para quê?—pensava elle—ninguem já agora arrebatará esta presa á morte. Pelo menos que seja tranquillo o passamento. Deixal-a morrer em paz.

E ficou, ficou elle só, unico espectador d'aquella scena lugubre, d'aquelle espectaculo pouco talhado para a sua juventude, para a sua indole e para os vestidos de gala, com que, para bem outros fins, esmeradamente se preparára.

Era notavel o contraste. A velha caiu em silencio profundo, apenas cortado de surdos gemidos.

Dava meia noite, quando uma respiração mais ampla, após um profundo repouso, fechou o circulo d'aquella longa existencia.

Carlos conheceu que tinha diante de si um cadaver.

Depois de por algum tempo a encarar melancolicamente, desceu-lhe, com piedoso respeito, as palpebras sobre os olhos amortecidos.

Foi n'este piedoso mister que o vieram encontrar Jenny e Mr. Richard. Voltando da visita a Mr. Smithfield e sua filha, souberam no portal que Carlos não havia saído, em consequencia do violento accesso que acommettera Kate.

Ahi mesmo se desvaneceu toda a irritação de animo em Mr. Richard.

—Então não saíu?

—Não, senhor,—disse o criado—havia-se vestido para saír, mas até agora tem estado só no quarto da snr.ª Catharina.

O velho inglez, que tinha ainda pela que fora sua ama uma verdadeira affeição, sentiu-se commovido ao ouvir isto.

Elle e Jenny correram então ao aposento de Kate.

—Expirou agora—disse Carlos, ao vel-os entrar.

O pae e a filha acercaram-se apiedados do leito.

Jenny não recusou lagrimas de saudade áquella velha mulher, que ella, tão longe, quanto lhe ia pelo passado a memoria, se recordava de ver sempre junto de si.

Mr. Richard curvou tambem a cabeça, perante aquelle tão solemne espectaculo.

Carlos ficava-lhe defronte e ao lado a irmã.

Jenny, enxugando os olhos, voltou-se para elle.

E, como se obedecesse a irresistivel impulso do coração, apertou-o nos braços, dizendo:

—É n'isto que te reconheço, Charles. Quem poderá duvidar ainda da generosidade da tua alma?

Carlos correspondeu ao abraço da irmã, beijando-a affectuosamente na fronte.

E ao descingir-se-lhe dos braços, encontrou a mão de Mr. Richard, que se estendia francamente para a sua.

—O seu proceder foi o de um homem de bem e... de coração, Charles. Honra-o—disse, com voz tremula, o inglez.

Carlos apoderou-se d'aquella mão, que se lhe estendia, e curvou-se para beijal-a.

Perante aquelle leito mortuario desvanecera-se de todo a tempestade domestica.

Foi assim que Carlos faltou á promessa que tinha feito a Cecilia, falta que horas antes pensava e dizia não haver motivo tão forte que o levasse a commetter.

Resistiu de facto aos resentimentos do pae, resistiu,—e mais custoso lhe foi—ás lagrimas da irmã; mas não teve animo para resistir á compaixão por uma pobre mulher, velha, demente e moribunda.

Ficou, para lhe fechar os olhos.

Era assim o caracter de Carlos.