Efetivamente o lenço de rendas francesas, que Rosalina amarrou no peitoril de sua janela, era um sinal e - coisa mais de pasmar - era um sinal dirigido a Miguel.

O artista não morrera; e para clareza desta narrativa seja-nos lícito voltar atrás.

No momento fatal em que Maffei precipitou dos rochedos de Lipari o inflexível amante da filha, perdeu este os sentidos, dando de encontro à pedra aprumada e foi rolando, rolando, até atufar-se de todo nas espumas rendilhadas do mar. Com tanta fortuna se houve porém neste cair, que dele apenas lhe sobreveio um ferimento na cabeça.

O mar estava crescido. Foi a salvação do moço, porque ao dar na água voltou a si com o choque, e, conhecendo quão perigosos são os rochedos de Lipari e quão selváticas as ondas contra eles, tratou de nadar ao largo em vez de demandá-los; tempo este em que a tempestade queimava nos altos seus últimos cartuchos.

Afinal, serenou de todo o tempo. Miguel, apesar de ajudado pela correnteza, costeava, dificultosamente, a ilha na direção da praia, semelhando uma visão que fugia das trevas úmidas da morte, seguida de um rastilho de sangue.

Cinco horas depois era rejeitado na praia pelo mar.

Iam pouco a pouco se desfazendo as nuvens e já em alguns pontos do céu se percebia uma modesta claridade, precursora do bom tempo. A lua, voltando do susto, foi aos poucos saindo do esconderijo, medrosa e tímida de seu natural, porque quando há qualquer desarmonia no céu é ela quem primeiro se esconde.

Por este tempo já permanecia de bruços o náufrago na praia; a areai bebera-lhe indiferente o sangue da ferida, que afinal estancara. Nesta postura, ficou ele, falecido sem ânimo e forças, uma hora, como se estivesse a dar um demorado beijo na face da mãe salvadora, a terra - pelo seu bom regresso.

Ao voltar de todo para si, volveu institivamente o olhar pisado para o céu, que, nesse momento desassombrado e azul, refletia nas águas os olhares prateados de sua argêntea e bela pupila.

Quando se deixa ou volta à vida, o que primeiro procuram os olhos é o céu. - Há consolação e amparo na alma azul do infinito; o azul é a cor da salvação, como o negro é a do aniquilamento.

E por que confiamos tanto no azul do céu, sem talvez o compreender ao menos?

Ë que ele é a única coisa verdadeiramente grande e imensamente bondosa. — O oceano é gigantesco, porém abisma; o nordeste imponente, porém destrói; a terra é mãe, porém devora; o sol é rei, porém abrasa; só o céu é infinitamente bom. As estrelas brilham como um aluvião de libras esterlinas e no entanto ele é humilde e modesto, sabe unicamente ser infinito, azul e consolador.

Jamais se queixou ninguém do mal que lhe fizesse o azul do céu!

Por isso, meditava Miguel, estendido na areia, a fitar o espaço em muda e reconhecida contemplação; finalmente tentou pôr-se de pé, levantou-se cambaleando e amarrou a ferida da cabeça com um lenço ensopado, que tirara da algibeira. Depois, sacudiu tranqüilamente a areia molhada da roupa e dos cabelos e pôs-se a andar com dificuldade.

Encaminhava-se lenta e investigadoramente para o mar, como à procura de alguma coisa, até reconhecer o mourão em que, se lhe não enganara a memória enfraquecida pela pancada e perda de sangue, tinha amarrado o barco.

De fato; mas deste só restavam dependurados da estaca, como relíquias de guerra, a corda e um fragmento da proa.

E nada mais havia do barquinho - o nordeste despedaçara-o de encontro à praia, da mesma feição que a tempestade dos nossos pensamentos despedaça contra as paredes do cérebro uma idéia fixa, que se agarra à imaginação; o remorso também pode atirar o homem preso contra as arestas do cárcere; a dor oprime o coração contra o peito e quebra-o. — É sempre a mesma lei eterna da luta entre a covardia da tempestade e a fragilidade do preso.

Miguel, acabando por se identificar com a situação e aceitando-a horrível e estéril tal qual se oferecia, começou a passear pela praia, com essa calma inexplicável do homem cônscio da sua desgraça, que procura refrear-se amargamente com os destroços da passada ventura; ora topava um pedaço de madeira enterrado na areia, ora dava com alguns destroços do leme ou do casco, e, à proporção que os ia descobrindo, atirava-os à boca aberta do mar, como um domador que, depois de dar de comer à fera, ajunta-lhe ainda as migalhas caídas por fora da jaula.

Continuando a exploração, descobriu um fragmento de madeira amarela, que lhe prendeu mais o respeito - era o braço da sua rabeca.

O artista ficou a olhá-lo amargamente com a mágoa de uma mãe que contemplasse o cadáver do filhinho; depois, num assomo de ternura frenética, levou-o repetidas vezes aos lábios, beijando-o apaixonadamente.

O incêndio levantado por Maffei veio tirá-lo desse êxtase.

Clarão vermelho e sinistro iluminava de um golpe toda a ladeira.

Miguel voltou-se para o lado do fogo, meteu cuidadosamente o pedaço da sua rabeca entre a blusa e a camisa, limpou com a manga uma lágrima que lhe pendia das pestanas e encarou firme as línguas de fogo, que singravam do teto carbonizado da casa de Maffei.

Mas o fogo é na casinha branca! Pensou rapidamente o moço, e tentou correr par o lugar do sinistro.

— E Maffei?! Bradou-lhe a consciência.

Esta observação interior fê-lo parar e cruzar involuntariamente os braços.

— E Rosalina?! interrogou por sua vez o coração; e, antes que a razão interviesse para o dissuadir, deitou a correr, o melhor que pôde, pela ladeira.

Então é que o incêndio principiava a assumir a categoria de uma monstruosidade.

Nas praias batidas, como aquela, por ventos contrários, um incêndio é sempre coisa fácil e decidida no mesmo instante.

A idéia de Rosalina em perigo restituiu ao amante naufragado as forças perdidas até ali, de sorte que em menos de um quarto de hora, correndo como um possesso, tinha ele vencido a ladeira. Com as roupas molhadas de suor, de chuva, de mar e de sangue, atravessou rapidamente a porta do fundo da casa, entrou pelos quartos incendiados, pisou brasas, percorreu com uma sombra todos os cantos acesos, e, suando, vermelho, doido, sublime, cheio de lama, gritando, gesticulando, sem chapéu, sem gravata, com as pestanas tostadas, a carne inchada com o calor, os cabelos queimados e cobertos de cinza, o corpo de faíscas, ora desaparecia entre as chamas, ora tropeçava nas vigas abrasadas, caía, levantava-se e saltava, gritando como uma fúria:

— Rosalina! Rosalina!

E o crepitar do fogo parecia rir-se dos seus apelos.

— Rosalina! Não ouves?! Ó meu Deus! Mãe Angela!

Nada

O isolamento aterrava-o mais que a imponência do incêndio e, sem dar fé que lhe chiavam as carnes assadas e que lhe escorria gordura derretida pelos membros, continuava a gritar:

Rosalina! Rosalina! Estou aqui! Onde estão vocês! Respondam!

— Estariam todos mortos ou em tão pouco tempo teriam partido?

— Rosalina! Minha Rosalina?!

E disforme, desesperado, febricitante, horrível, atravessou soluçando a sala; topou com um pente de tartaruga, abaixou-se, apanhou-o, beijou-o e guardou-o no seio em menos de um segundo e a correr saiu pela porta do fundo, como quem acabasse de atravessar o inferno, exclamando furioso:

— Ninguém! Partiram, bradou levantando o braço para o céu ameaçadoramente. No momento, porém, em que apostrofava, sentiu firmarem-se-lhe no estômago duas patas de cão.

Castor! Gritou o moço caindo de joelhos.

— Oh! disse voltando para o céu os olhos arrependidos. Ainda me resta um amigo!

E abraçou-o soluçando.