Suspiros poéticos e saudades (1865)/Uma Noite no Coliseu

A meu amigo Francisco de Sales Torres Homem

É sublime o espetáculo, que ofrecem
Da prisca Roma os pálidos destroços,
Quando da noite a plácida lanterna
Branquejando na abóbada cinzenta,
Seu fúnebre clarão, como alvas flores,
Entre eles vagamente enfia, estende.
Tudo é confuso então, tudo é mistério,
Tudo infunde pavor, melancolia!

Dos sonhos na mansão julga-se a mente,
De escarpados rochedos rodeado,
De sombras, de fantasmas, que vagueiam,
Que num arco se escondem, noutro surgem.

Os fanais que no campo amarelejam,
Circulados de auréolas moribundas,
A lembrança despertam desses fogos,
Que às vezes os cadáveres exalam
De noite, das recém-abertas campas.

Que profundos, terríveis pensamentos
A uma alma pensativa não inspiram
Estas relíquias da grandeza antiga
Da augusta mãe de heróis, que agora vemos
Como num cemitério esparsos ossos
Ao tempo branqueando. Aqui o homem
Estrangeiro não é; ele conhece
Estas ruínas, e com elas fala
Uma mística língua, que alma entende.
Mas ah! inda esta terra hoje é manchada
Com sangue humano! Ind'hoje estas colunas

Dos derrocados templos de ímpios deuses,
De ímpios Romanos os punhais ocultam.
Nem no reino da morte há segurança!
Por toda parte o crime o homem segue!

Não passeiam aqui brancos fantasmas
Entre os sombrios arcos nem as grutas
Do palácio dos Césares somente
Ao mocho gemedor asilo prestam.
Não, não; são assassinos que profanam
Deste precinto o lúgubre silêncio,
Tão propício aos filósofos, e aos vates.

À sombra das ruínas solitárias
Oh! que nefandos crimes vis sicários,
Da Humanidade opróbrio, não perpetram,
Sem temor do seu Deus, e da justiça!
Como que calejada a consciência,
Cansada de gritar, os abandona.

Como de nós tão perto a morte vimos,
Neste mesmo lugar, onde sentados
Ouvimos soluçar ave agoureira,

Que no templo de Vênus acoutada,
Sufocados gemidos arrancava
Do íntimo do peito; como um homem,
Que nas vascas da morte, em vão lutando,
Sem esperança já, socorro implora.

Oh severa ciência, tu condenas
Estes, da nossa infância, preconceitos.
Mas quem pode negar que ruins desditas
Pressagiadas são milhões de vezes?
Se a negra borboleta que esvoaça
Em torno do casal, e nele pousa;
Se o tétrico carpir de ave noturna;
Se d'alma o repentino abatimento
Certas palpitações inopinadas;
Os sonhos, as visões, nada anunciam;
Se é falsa crença de alma alucinada,
Que à infância, e à velhice o medo incute,
Ao menos na do homem própria essência,
Misteriosa essência, apoio encontra;
Que a Razão, do céu filha, não tão fácil
Se eclipsa pela opaca sombra do erro.
Não se opõe à Razão a crença nossa,

Que nem sempre à Razão o céu concede
A mina profundar inescrutável,
Onde de efeitos mil se oculta a causa.
Que mistério é maior que o gérmen do homem?
Que mistério é maior que a vida sua?
Que mistério é maior que a sua morte?
Oh mistérios sublimes! — Donde, oh homem,
A evidência te veio, que este mundo,
Que fora de ti vês, real exista?
Na terra para mim tudo é mistério,
Eu, o que sei, e tudo quanto ignoro.

Dia aziago foi todo este dia,
Desde o surgir do sol, té seu ocaso
O coração pejado de tristeza
Procura a solidão, ama o mistério.

Bela era a noite, mais que o dia bela!
Alvinitente a lua rutilava,
Como um rosto de virgem pudibunda,
Que em seu jardim passeia solitária.
Ao Capitólio fui, e foi comigo
O Amigo fiel; juntos passamos

De Tito o arco, e ao pé do Palatino
De um mocho ouvimos hórridos gemidos,
Que os ares magoavam, ressoando
Do Coliseu nos longos corredores.
Um pouco repousamos sobre o muro
Do cesáreo palácio esboroado.
O mocho carpidor gemeu três vezes;
Os nossos corações se apavoraram,
E ambos involuntários suspiramos.
Tristes versos, que a mente ali ditou-nos,
Com lutuosas vozes repetimos.
Depois de meditar sobre os presságios,
Marchamos para o Flávio anfiteatro.

Co'um archote na mão, de estância em estância,
Cobertos de compridas, brancas vestes,
Como fantasmas gravemente andando,
Mais e mais o horror destes recessos
Destarte nossos vultos aumentavam.
Oh! quem pode narrar cenas tão fúnebres?
Do archote a luz o teto avermelhava,
Co'a fria luz da lua contrastando;
Cinéreo fumo, deslizando em ondas,

Fugitivos duendes simulando;
E para mais pavor, do fundo peito,
Deixávamos sair longos suspiros,
Que em toda a galeria reboavam.

Cansados de gozar de mil maneiras
Essas cenas sublimes, regressamos
Para o nosso aposento, atrás deixando
O arco triunfal de Constantino.
Tudo estava em silêncio, imóvel tudo;
Só ressoava o som dos nossos passos,
E ante nós nossa sombra caminhava.

Eis que chegando ao sítio onde sentados
Ave sinistra soluçar ouvimos,
Três, de punhais armados, negros vultos,
Como da terra erguidos, nos investem
Qual nosso susto foi! Nos feros rostos,
Nos cintilantes olhos desses monstros
De suas almas vis o intento lemos.
Nas lâminas luzentes co'os reflexos
Do claro astro da noite, e que apontadas
Sobre os peitos estavam, nossa morte

Com cor sanguínea víamos pintada.
Só pelo Amigo cada qual temia.
E qual foi, oh minha alma, nesse ensejo
O pensamento teu?... A Pátria! A Pátria!
Não mais vê-la: — Morrer tão longe dela;
Sem por ela ter feito um sacrifício!
Distante de meus pais... Oh Providência!
Ouviste o coração que te invoca,
E tu salvaste o Amigo, e me salvaste
Das cruas garras dos sedentos tigres.
Mais que o áureo metal é cara a vida;
Para louvar a Deus vivos estamos.

Roma, 11 de abril de1835