Capítulo I editar

Na cidade de..., n’uma chacara retirada, habitava uma família, cujo chefe chamava-se Manoel Correia. Ex-empregado publico, obtivera a aposentadoria e ahi vivia longe do borborinho da cidade.

Homem vaidoso, o seu unico anhelo era casar uma filha que tinha com algum fidalgo, que enthusiasmasse-se pela belleza d’ella.

Com effeito, Elvira (tal era o seu nome) era a moça mais linda que imaginar se póde. Morena, de estatura regular, cabellos e olhos pretos, labios rosados e pequenos, que, quando entre-abriam-se, deixavam ver duas linhas de dentes claros como o marfim; era mais pelas suas maneiras agradaveis do que por esses attributos, que ella cativava a todos aquelles que tinham a dita de conhecel-a.

Capítulo II editar

Alfredo Torres, estudante do quarto anno de medicina, tinha vindo passar, n’essa mesma cidade, as férias em casa de sua família, que só á custa de muitos sacrifícios fazia-o proseguir os estudos.

Ahi pela primeira vez vio Elvira e logo consagrou-lhe amor: não esse amor vulgar, porém um amor sincero, vehemente, arrebatado, capaz de affrontar todos os obstaculos, que, segundo, um escriptor contemporaneo, são os maiores incentivos d’elle.

Elvira tambem, cumpre dizel-o, logo sentio no seu peito uma emoção, um não sei que indefinivel por Alfredo; mas ao mesmo tempo o seu coração presago augurava-lhe infortunios. É que Alfredo alem de não ser fidalgo, era pobre, e o seu amor havia de encontrar opposição da parte do seu velho pae, que aspirava ter um parente nobre, que ilustrasse a família.

Todavia amáram-se.

Capítulo III editar

Estavam prestes a extinguir-se as suas férias e Alfredo preparou-se para tornar á Corte.

Sempre, n’essa occasião, elle partia alegre, pois ia dar mais um passo para chegar ao fim de sua carreira. D’esta vez porém, foi preciso que a familia designasse-lhe o dia em que devia partir.

Nem era de esperar outra cousa: quem póde abandonar sem pena o seu coração?

E o coração de Alfredo ficava.

Na véspera da partida foi despedir-se da familia de Elvira. Oh! Deixem os leitores que eu passe em silencio este ponto de sua vida: era mister outra penna que não a minha para descrever a dor d’esses dois corações cheios da seiva da juventude, obrigados ainda a occultal-a, a reprimil-a.

Capítulo IV editar

Havia já tres mezes que Alfredo partíra para continuar os seus estudos que Elvira vivia adormecida nos braços da esperança, quando um dia o seu aristocrático pae introduzio no seio de sua familia, com muitas recommendações, um fidalgo recém-chegado á terra. Era de origem hespanhola, dizia elle, chamava-se D. José Sanchez e tinha o titulo de barão da Felicidade.

Após dois mezes de assídua frequencia á casa, pedio ao Sr. Manoel Correia em casamento a sua encantadora filha. Imagine-se a alegria d’este, vendo realisada a sua unica ambição. Promptamente concedeu-lhe o que queria, sem ao menos consultar a vontade da filha. – Ela é docil, pensava, e por força há de fazer o que lhe ordenar.

Mas, se Elvira era docil, d’esta vez enganou-se elle. Não só declarou-lhe que não votava a menor sympathia a esse homem, cujo passado não era conhecido, como até declarou-lhe que já tinha disposto de seu coração.

Correia ficou furioso e disse-lhe que nunca permitir-lhe-ia que se casasse senão com Exmº barão da Felicidade, ou com outro de sua hierarchia; que Alfredo era um miseravel; e que, quanto ao passado do barão, não importava a ninguem.

Para elle o titular não era responsavel pelos máos actos que praticára anteriormente, quando usava de seu nome de baptismo.

Infeliz Elvira!

Capítulo V editar

Vejamos agora quem era o homem destinado para esposo d’esse cherubim.

Filho natural d’um taverneiro portuguez, nascêra elle n’uma das cidades d’este vasto imperio.

Tendo o seu pae, por meio de muitos roubos e baixezas, bem como pela miséria em que viviam, ajuntado muitos cabedaes, morrendo, deixou-lhe toda a sua fortuna.

Digno filho de tal pae, D. José Sanchez, que n’esse tempo era conhecido por José Medeiros, continuando a accumular dinheiro do mesmo modo, e só empregando-o em negocios ilicitos, fez afinal uma viagem a Hespanha e a Portugal, d’onde voltou com o titulo de dom, outro nome e um baronato.

Eis quem era D. José Sanchez, barão da Felicidade.

Capítulo VI editar

Dois mezes se tinham passado depois do infausto dia em que o futuro de Elvira tinha sido anuviado por seu pae. Durante esse tempo, nunca se passou um só dia em que ella não ouvisse, directa ou indirectamente, allusões a si, como filha desobediente e de sentimentos baixos, ameaças de maldição paterna e por consequencia de castigos na outra vida.

Finalmente uma manhã apresentou-lhe o seu progenitor um ultimatum: por bem, ou por mal havia de cumprir as suas ordens.

A pobre moça, tendo perdido esperança de casar-se com Alfredo, e temendo as ameaças de seu pae, pois era uma filha modelo, disse-lhe que estava ao seu dispor, que fizesse o que intendesse, não obstante desprezar o noivo que se lhe ímpunha.

Mal ouvio isto dirigio-se logo Correia ao palacio do barão, relatou-lhe o occorrido e pedio-lhe que determinasse com presteza o dia em que se devera effectuar o seu consorcio.

Capítulo VII editar

Faltavam oito dias para Elvira perder o seu nome, tornar-se baroneza da Felicidade, ella – a victima da desgraça. O Sr. Manoel Correia exultava, crendo ter conseguido a execução de seu maior anhélo – afidalgar sua familia. O barão ainda mais contente estava por ter comprado com a sua infâmia a posse de uma divindade terrestre.

Só Elvira era triste, apezar das felicitações que de toda a parte e a cada instante recebia. Pallida, magra, sempre pensativa, dir-se-ia que era presa de alguma enfermidade.

E na realidade bem proximo estava o dia de sua morte. Presintendo-o, escreveu a Alfredo a seguinte carta, cinco dias antes do destinado para a realisação do seu hymeneu.

“Alfredo,
Perdôa-me o golpe que subitamente vou dar-te; mas se não dei-te antes foi esperando que a desgraça se compadecesse de mim e de ti.

Cinco mezes depois de sua partida, meu pae offereceu-me como esposo um fidalgo improvisado, um tal barão da Felicidade, recem-vindo do estrangeiro.

Recusei: disse-lhe que só a ti consagrava amor, que detestava esse homem.

Julgava ter vencido a ferrea vontade de meu pae; mas eis que ha poucos dias ordenou-me que lhe obedecesse, isto é, que casasse-me com o seu escolhido, sob pena de, caso de novo rejeitasse, merecer a sua maldição.

Sem lhe dizer que sim, respondi que fizesse o que entendesse. Tu és bom, meu querido Alfredo, podias approvar a desobediência de uma filha?

Ajustáram meu pae e o meu futuro marido que a celebração do meu matrimonio terá lugar d’aqui a cinco dias. Mas creio que o céo se compadeceu de mim; parece-me que estou bem doente, que está proximo o dia de minha morte.

“Adeus; Alfredo; sou e continuarei a ser,
Tua fiel amante
Elvira” .

Capítulo VIII editar

No dia seguinte áquelle em que escrevêra a carta acima, Elvira foi accommettida d’uma febre tão violenta, que os medicos logo a desenganáram.

Nos momentos de delirio, o nome de Alfredo, acompanhado de palavras inintelligiveis, nunca lhe sahio dos labios.

A morte zombou da sciencia: no dia em que devia cingir a capella de noiva, cingio a da immortalidade, deu a alma ao creador.

Pobre victima da ambição e do orgulho, foi no céo receber entre os anjos, seus irmãos, o premio de seu martyrio.

Quando Alfredo, já afflicto pela lectura da carta que ella lhe dirigio, recebeu a noticia de sua morte, despedaçou o craneo com um tiro de revolver.

Capítulo IX editar

No dia 2 de novembro de 1860, um velho chorava sobre uma sepultura e arrancava os cabellos, com visiveis signaes de loucura.

A sepultara encerrava os despojos mortaes de Elvira e o velho era Manoel Correia, que murmurava febrilmente:

- Elvira . . . Alfredo . . . perdoai ao vosso assassino.