Continuação da historia das coisas mais memoraveis, acontecidas no Maranhão em 1613 e 1614.
 

PRIMEIRO TRATADO.

 

CAPITULO I

Da construcção das capellas de S. Francisco e S. Luiz do Maranhão.[NCH 3]
 

O cantico segundo, (representando allegoricamente a origem da Igreja, em terra nova, ainda não illuminada pelo conhecimento do verdadeiro Deos) diz: Vox turturis audita est in terra nostra: ficus protulit grossos suos: vineæ florentes dederunt odorem suum: «foi ouvida a voz da rolla em nossa terra: produzio a figueira seos figos verdes, e as vinhas em florescencia derramaram seo aroma.»

Interpretando estas palavras Rabbi Jonathas, diz em sua Paraphrase chaldaica, que a vóz da rolla significa a vóz do Espirito Santo annunciando a Redempção promettida a Abraham, pae de todos os crentes: eis suas proprias palavras: — Vox spiritus sancti et redemptiones quam dixi Abrahæ Patri vestro: «a vóz do Espirito Santo e da Redempção, que prometti a Abraham, vosso Pae.»

Diz mais, que pela figueira deve entender-se a Igreja, e que pelos figos novos se representa a confissão da fé, que devem os crentes fazer diante de Deos, e finalmente que pelas vinhas em flor exhalando bom cheiro são indicados os levados no grande mar do baptismo, e offerecidos á face do Sancta Sanctorum.

Os primeiros sacrificios, que Deos recebeo do povo de Israel, em procura da terra da promissão, d’onde expellio a infidelidade, foram sob as tendas e pavilhões do Tabernaculo, porem depois edificou-se o templo, e ahi continuaram os mesmos sacrificios.

Coisa similhante nos aconteceo quando fomos a esse paiz, cheio de infidelidade e ignorancia de Deos, carregado de demonios, insolentes tyrannos d’essas pobres almas captivas, levar a luz do Evangelho, banir as falsas crenças, expellir os demonios, plantar e construir a Igreja de Deos: durante mais de quatro mezes celebramos os santos sacrificios n’uma bonita tenda, no meio de arvores verdejantes: partindo depois alguns da nossa comitiva para a França em busca de auxilio, e ficando o resto para fundar a Colonia; fizemos edificar a Capella de São Francisco do Maranhão em um bello e agradavel lugar, junto do mar, proximo de uma bella e inexgotavel fonte, e ahi escolhi minha moradia, que um dia tinha de servir de Convento aos Religiosos, que eu esperava para me ajudarem.

Acabou-se esta Capella na vespera de Natal e muito a proposito pela devoção, que sempre teve o Seraphico Padre São Francisco, a quem era dedicada.

Alem de todas as festas do anno celebrava a noite, estrellada e sem trevas, do nascimento do verdadeiro Sol, Jesus-Christo, e tinha este santo Padre o costume de fazer um presepio, a cujo lado passava toda a noite contemplando o profundo mysterio da Encarnação, e da vinda tão estranha do Altissimo á terra.

Na verdade enchia-me de immenso prazer vendo n’esta capellinha, feita de madeira, coberta de folhas de palmeiras, mais similhante ao presepio de Belem do que esses grandes e preciosos templos da Europa, os nossos compatriotas francezes cantarem os psalmos e matinas d’esta noite, e depois de purificados pelo Sacramento da penitencia receberem o mesmo Filho de Deos no presepio dos seos corações, envolvido nas faixas do Santissimo Sacramento do altar.

Festejamos tambem o dia de natal; a noite prégamos, o que sempre fizemos depois das festas e nos domingos, e com prazer, embora muito soffressemos no principio: em quanto durou esta devoção corria o tempo tão depressa, que o dia parecia ter somente duas horas; e assim achando-se o nosso espirito preoccupado com obras piedosas sentia a morte vir tão depressa.

Não fui eu só que senti isto, muitas outras pessoas depois me disseram o mesmo, e em quanto me permittio a saude, observou-se, e sem enfado, este uso.

Augmentou-se ainda mais esta devoção quando se edificou no Forte a Capella de São Luiz,[NCH 4] á imitação das Igrejas dos nossos Conventos, com madeira, cercada e cuberta de ramos fortes, cortados das arvores chamadas Acaiukantin.

Ahi celebrei missas, cantei vesperas, préguei e baptisei os cathecumenos.

A tarde tocava o sino, todos se reuniam n’esta capella, onde se cantava a saudação angelica, implorava-se a graça divina, e depois cada um ia para onde queria.

 

Notas Criticas e Historicas sobre a viagem do padre Ivo de Evreux por Mr. Ferdinand Diniz editar

3

A capital do Maranhão occupa ainda hoje o mesmo lugar escolhido por seos antigos fundadores. Está situada a 2° 30′ e 44″ lat. austral e 1° 6′ e 24″ de long. oriental do meridiano do Forte de Villegagnon, na bahia do Rio de Janeiro.

La Ravardiere e Rasilly escolheram para edifical-a a ponta de terra O d’uma pequena peninsula, ligada á ilha do Maranhão pela calçada do Caminho grande.

Os rios Anil e Bacanga, vindos de diversos pontos da ilha confundem suas agoas na mesma embocadura e formam vasta bahia. A elevação, que se apresenta ao S do Anil, á E e ao N. do Bacanga (lugar onde se confundem as agoas d’estes dois pequenos rios) é o lugar primitivo onde se levantou a cidade nascente collocada sob o patrocinio de Sam Luiz.

A cidade de Sam Luiz, elevada em 1676 á dignidade episcopal por uma Bulla de Innocencio XI, conta nunca menos de 30 mil habitantes, e está situada em terreno docemente ondulado, sempre, em todas as estações, carregado de rica vegetação, e assim offerecendo aos viajantes panorama encantador. (Vide Corographia Brasilica, Will. Hadfield, Milliet de St. Adolphe, e principalmente os Apontamentos estatisticos da provincia do Maranhão, annexos ao Almanack de 1860 publicado por B. de Mattos.)

Esta linda cidade é naturalmente dividida pela espinha dorsal da peninsula, que separa as duas bacias dos rios na direcção de E. O.

Seo ponto mais elevado é o Campo d’Ourique, onde apresenta 32m 692c de elevação acima do nivel medio do mar.

É dividida em tres parochias: N. S. da Victoria, S. João, e N. S. da Conceição, tem 72 ruas, 19 becos, 10 praças, 55 edificios publicos, e 2,764 casas, das quaes 450 tem um só pavimento.

Para utilidade dos habitantes podem ser maiores e mais regulares as praças, e embora sejam as ruas cortadas em angulo recto, podiam ser mais largas e melhor dispostas sendo observadas as regras da hygiene.

Não são más suas calçadas, e tem declive bastante em relação aos dois rios que banham a cidade. Em resumo é a Capital do Maranhão saudavel e limpa.

«O navio que demandar o porto, toma por marca o Palacio do governo, assentado n’uma eminencia que domina o porto.

Este edificio tem a seos pés o Forte de Sam Luiz, e de suas janellas percorrendo-se com os olhos uma extensa bahia avista-se ao longe as costas e a cidade de Alcantara: mais perto da barra está o pequeno Forte da Ponta d’areia, e dentro do porto na margem opposta do Bacanga a pequena ermida do Bomfim, muito arruinada, e na frente do Anil a Ponta de Sam Francisco, onde segundo a noticia que nos dirige, entregou la Ravardiere ao commandante portuguez a cidade nascente e a fortalesa de Sam Luiz, nunca se podendo assas louvar n’essa occasião o procedimento inteiramente nobre do commandante francez e de Alexandre de Moura por parte da Hespanha.

O joven cirurgião de Pariz que foi com tanto zelo pensar os feridos dos dois partidos, e que recebeo tão penhorador acolhimento no campo inimigo poude d’elle dar somente uma ideia, por sua narração sincera e franca, da cordialidade, que appareceu entre os francezes e os portuguezes depois do combate. (Vide Archivos das viagens publicadas por M. Ternaux Compans.)

Em distancia de alguns metros pelo Anil acima está o convento e Igreja de Santo Antonio, construidos no proprio lugar onde em 1612 Ivo d’Evreux, ajudado pelos padres Arsenio e Claudio d’Abbeville, edificou seo conventosinho sob a invocação de Sam Francisco. Soffreo depois d’isto varios concertos e augmentos este mosteiro dos Capuchinhos francezes, achando-se hoje uma parte do edificio moderno occupado pelo Seminario Episcopal, e a Igreja, hoje em construcção, levanta-se com architectura gothica simples.» Pelo que nos dizem será a igreja mais bonita do Maranhão.

Não é esta a unica construcção digna de mencionar-se na cidade, porem é a unica que nos interessa directamente.

Mencionamos apenas o Caes da Sagração, assim chamado em memoria da coroação e sagração do Sr. D. Pedro 2.º, e da vasta bahia, onde agora se escava para poder n’ella fundear uma fragata a vapor da primeira ordem, e apenas citamos a dóca que se projecta fazer nas enseiadas das Pedras.[1]

Contam-se muitas construcções monumentaes, como sejam a igreja do Carmo, a Cathedral, o quartel do Campo de Ourique, o Theatro, e mais outras que força é omittir, pois apenas n’uma ligeira nota desejamos mostrar englobadamente o que em 250 annos se tornou isto fundação francesa.

William Hadfield, um dos mais modernos viajantes, que tratou d’este paiz, observou que é na cidade de Sam Luiz, onde no Brasil se falla o portuguez com mais pureza. É a patria de dois escriptores mui estimados no Imperio, Odorico Mendes e João Francisco Lisboa, fallecido ha pouco.

Depois de haver traduzido com superioridade de estylo, que causaria inveja aos contemporaneos de Camões, occupa-se actualmente Odorico Mendes na traducção em verso das obras de Homero, onde a sciencia do rythmo disputa com a inspiração.

Quanto ao poeta das legendas nacionaes, cujos cantos são geralmente repetidos no Brasil (queremos fallar de Gonçalves Dias) pertence tambem á provincia do Maranhão, por elle explorada como sabio e como viajante intrepido, porem nasceu em Caxias.

As obras d’esses tres escriptores honram ao paiz, são tambem a honra da bibliotheca publica; porem este estabelecimento, creado n’uma cidade eminentemente litteraria, não está em relação com as necessidades crescentes de outras instituições suas, relativas á instrucção publica. Ha tres annos contava apenas 1031 volumes.

Prasa aos Ceos, que o livro, que agora réproduzimos, o primeiro que, com o de Claudio d’Abbeville, foi escripto na Cidade nascente, marque o principio de uma era nova para estabelecimento tão indispensavel n’uma Capital, já florescente. Muitas outras instituições supprem esta deficiencia, publica-se na Capital diversos jornaes, taes como o Publicador Maranhense, a Imprensa, o Jornal do Commercio etc. etc., e tambem ha uma Associação typographica, um Gabinete de leitura, e a sociedade litteraria Atheneo Maranhense.

Tudo isto na verdade é mui differente do tempo, em que o Padre Arsenio de Pariz com muita difficuldade achava apenas uma folha de papel para escrevêr á seos Superiores.

4

A Cathedral de São Luiz ou do Maranhão, (assim com estes dois nomes se designa a Cidade) deixou a invocação de São Luiz de França. É a antiga Igreja do Convento dos Jesuitas a actual cathedral sob a invocação de N. S. da Victoria. (Vide Ayres do Cazal — Corographia Brazilica. Rio de Janeiro 1817. T. 1.º pag. 166).

Parece-nos, que nas grandes construcções, que actualmente se estão trabalhando para o augmento do Convento de S. Antonio, respeitou-se a pequena Capella feita pelos francezes. São tres os frades d’esta Ordem, Frei Vicente de Jesus, guardião; Frei Ricardo do Sepulchro e Frei Joaquim de S. Francisco, todos sacerdotes.

Notas de rodapé editar

  1. Outro engano. Aqui não se conhece esta dóca. — Do traductor.