CAPITULO L

Do acolhimento, que fazem os selvagens aos francezes recem-chegados, e como convem proceder para com elles.


Si ha nação no mundo, que goste de fazer bom acolhimento aos seos amigos recem-chegados, e que os receba em suas casas para tratal-os bem o quanto é possivel, sem duvida alguma os Tupinambás occupam o primeiro lugar á vista do que fizeram aos francezes.

Logo que fundeou o navio, que trasiam os francezes, surgiram de todos os lados selvagens em suas canôas, bem enfeitados de pennas e preparados segundo sua classe como si fossem para uma grande festa.

Apenas descobrem ao longe navios que demandam a terra corre logo este boato por todas as aldeias Aurt vgar uaçú Karaibe, ou Aurt Navire suay «ahi vem os grandes navios de França.»

Immediatamente tomam os seos vestidos bonitos, si os tem, e principiam a fallar uns aos outros por esta forma: «ahi vem navios de França, e eu vou ter um bom compadre, elle me dará machados, foices, facas, espadas, e roupa: eu lhe darei minha filha, irei pescar e caçar para elle, plantarei muito algodão, dar-lhe-hei gaviões e ambar, e ficarei rico, porque hei de escolher um bom compadre, que tenha muitas mercadorias.»

Dizendo isto batem nas pernas e nos peitos em signal de alegria.

As mulheres e os rapazes fabricam farinha fresca e nova, e os homens vão pescar e caçar, e quando a casa está provida de carnes de diversas qualidades, raizes, peixes, caça, e farinha, vão todos aos navios.

Os mais impacientes vão em suas canôas á bordo do navio, ancorado na enseiada, endagar se vieram os seos velhos Chetuassaps, e qual é o francez que traz mais generos para lhe offerecer seo compadresco, sua casa e sua filha.

Apenas salta o francez é logo rodeiado por elles: homens e mulheres mostram-se prasenteiros, presenteam-nos com viveres, convidam-nos para compadre, offerecem-se para levar-lhes sua bagagem, em fim fazem o que podem para contental-os e agradal-os.

Não tem inveja por estar um francez em casa de outro: o que primeiro se apresenta é que leva o hospede, sem a menor questão, e nem por isso se insultam.

Fazem mais ainda: quando um francez muda de compadre, não questionam por isto, despresam-no, e tem-no por homem mau, e assim raciocinam.

«Si não poude viver com aquelle, como viverá commigo?»

Si o selvagem é genioso, avarento e preguiçoso, quando o francez o deixa não se zangam os outros, antes dizem «É bem feito ser elle despresado, é um homem difficil de ser aturado, avarento e preguiçoso.»

Escolhendo o francez um compadre, segue-o e vae para a aldeia,[NCH 89] e então o hospede com certa gravidade, como si nunca o houvesse visto, lhe estende a mão e lhe diz: «Ereiup Chetuassap?» «Chegaste meu compadre,»[NCH 90] coisa digna de vêr-se e de contemplar-se.

Direis ao vel-os, que sahem á maneira dos imperadores de um gabinete bem fechado, onde estavam empenhados em grandes negocios.

Si querem fazer grande acolhimento a um francez e lhe mostrar que muito o estimam, antes que o pae de familia lhe diga Ereiup, as mulheres e as filhas o lamentam e depois dam-lhe bons dias.

Responde-lhe o francez , «sim?» resposta que quer dizer «sim de todo o coração: eu te escolhi para morar comtigo, e para ser meo compadre, e do numero de tua familia: te dei a preferencia porque te estimo e por me pareceres bom homem.»

Diz-lhe o selvagem — Auge-y-po «muito bem, estou muito contente, honras-me muito, sêde bem vindo e aqui serás tão bem acolhido como em parte alguma.»

Por isto reconhecereis a candura e a simplicidade da naturesa, que consiste em poucas palavras e muitas obras. O contrario acontece á corrupção, pois inventa muitos discursos, muitas palavras adocicadas, cortejo sobre cortejo muitas vezes só com o chapéo, e não com o coração.

D’estas duas recepções qual será a melhor e a mais consentanea com a lei de Deos, e com a simplicidade do christianismo?

Após aquellas palavras, elle vos diz — Marapé derere? «Como te chamas? qual é o teu nome? como queres que te chamemos? que nome queres que se te dê?»

Convem notar, que si não escolherdes um nome pelo qual sereis conhecido em toda a parte, elles vos darão um escolhido entre as coisas naturaes, existentes no seo paiz, e o mais apropriado á vossa physionomia, genio, ou maneira de viver, que por ventura descobrirem em vossa pessoa.

Por exemplo, entre os francezes, um foi chamado beiço de sargo, porque tinha o beiço inferior puchado para diante como os peixes chamados sargos.

Tiveram outros o apellido de garganta grande porque nada o fartava, de sapo-boi,[NCH 91] por estar sempre entumecido, de cão pirento pela sua cor má, de piriquito porque levava só a fallar, de lança grande por ser alto e esguio, e assim por diante, e ordinariamente fazem estas coisas em suas casas grandes, e por esta fórma pouco mais ou menos. «Que nome se ha de dar a teo compadre?»

— Não sei, é preciso estudar.

Indica cada um a sua opinião, e o nome que encontra mais apropriado, e si é bem recebido pela assembléa lhe é imposto com seo consentimento, si é homem de posição: si é do vulgo, queira ou não queira, ha de ter o nome, que lhe der a assembléa.

Tem tambem outra maneira de impôr nomes: quando elles vos estimam, e vos dam muito apreço, elles vos dam o seo proprio nome.

Depois de saber vosso nome pensam na cozinha dizendo — Demursusen Chetuasap, ou então Deambuassuk Chetuasap? «Tem fome, meo compadre? quer comer alguma coisa?»

A hospede vos escuta e vos attende prompta a servir-vos si disserdes sim ou não, porque tomarão vossa resposta, como dinheiro contado, visto que n’essas terras nem se deve ser vergonhoso, e nem guardar silencio.

Si tendes fome, direis Pá, chemursusain, Pá, cheambuassuk, «sim, tenho fome, quero comer.»

Perguntam elles Maé-pereipotar, «que queres tu comer? que desejas tu que eu te traga?»

São mui liberaes no principio, diligentes na caça e na pesca, afim de contentar-vos e ganhar vossa affeição para obter generos; mas cuidado, não lhe dês tudo no principio, conservae-o sempre na esperança, dando-lhe cada mez alguma coisinha.

Á sua pergunta dizei, si quereis carne, peixe, passaros, raizes, ou outra qualquer coisa, e então vossos hospedes, o marido e a mulher trazem para vós a caça, o Mingau, que tiverem, podeis comer a vontade e dar a quem quizerdes.

Apenas tiverdes comido, arma a sua rede ao pé da vossa, principia a conversar comvosco, offerece-vos um caximbo cheio de fumo, que accende, chupa tres fumaças, que expelle pelas ventas, e depois vos entrega como coisa muito bôa, e que faz muita estima, como na França se pratica com as bebidas.

Accende tambem seo caximbo, e depois de haver tomado cinco ou seis fumaças diz — Ereia Kasse pipo: «deixaste teo paiz para vir ver-nos, visitar-nos e trazer-nos generos?»

Respondei-lhe — «sim, deixei tudo, despresei meos amigos, e meo paiz para vir aqui vêr-te.»

Levantando então a cabeça como que admirado, diz Yandé repiac aut, «compadeceo-se de mim, olhou-nos com piedade: lembraram-se os francezes de nós, não se esqueceram de nós.»

Deixaram sua terra para nos vir ver — Y Katu Karaibe: «são bons os francezes e muito nossos amigos.»

Depois pergunta ao francez Mabuype deruuichaue Yrom? «Comvosco quantos superiores, guerreiros, capitães e principaes vieram?»

Responde-lhe elle Seta, «muitos.»

Replica o selvagem — De Muruuichaue? «Não és d’esse numero? Não és um dos principaes?»

Bem podeis pensar, que não ha ninguem, por mais mediocre, que seja a sua condicção, que de si não diga bem, e por isso responde o francez Ché Muruuichaue «sim, sou um dos principaes.»

Diz o selvagem Teh Augeypo «muito bem, estou muito contente: basta, fallemos de outra coisa.» Ereru patua? Ereru de caramemo seta? «Trouxestes muitas caixas e cestas, cheias de mercadorias?»

São as melhores noticias, que se lhes pode dar, para as quaes tem sempre dispostos o animo e o coração, de sorte, que tudo quanto dizem é somente como que um preambulo para chegar a este ponto.

Depois que o francez responde-lhe affirmativamente diz o selvagem — Mea porerut decarameno pupé? «O que trouxestes em vossas caixas e coffres de joias? que mercadorias?» dizem elles com vóz doce e agradavel, pois são muito curiosos de saber o que trazem comsigo os francezes.

Deve estar prevenido o francez para não dizer e nem mostrar o que elles desejam, afim de trasel-os sempre na expectativa, si dos seos serviços quer aproveitar-se.

Deve responder-lhe — Y Katu paué «trouxe tantas coisas, cujos nomes nem mesmo sei, são bellas e magnificas.»

Esta resposta é como agoa lançada na fornalha ardente do ferreiro, a qual redobra o calor, e activa a chama, e assim desperta a curiosidade do selvagem, até por meios adulatorios, expressados por gestos, dizendo Eimonbeu opap-Katu «eu te peço, não me occultes nada, dize-me.» Yassoi-auok de Karamemo assepiak demae: «Abre-me tuas caixas, teos cestos, deixa-me vêr tuas mercadorias, tuas riquezas.»

Deve responder o francez Aimosanen ressepiak ou Kayren deué «agora não posso, deixa-me descançar, logo te mostrarei:» Begoyé sepiak «não duvides, um dia verás á tua vontade.»

O selvagem entende o que isto quer dizer, e vendo que perde seo tempo, diz a si mesmo, levantando os hombros, e como que se lastimando — Augé katut tegné, «pois bem, esperarei.»

Bem sei que não serei ouvido, porem, diz elle ao francez Dererupé xeapare amon? «Não trouxestes muitas fouces e machadinhos de cabo de ferro?»

Dererupé urá sossea-mon? «Trouxestes machados de cabo de pau?» Ererupé ytaxéamo? «Não trouxestes facas d’aço?» Ererupé ytaapen? «Trouxestes espadas d’aço?» Ererupé tatau? «Trouxeste arcabuzes?» Ererupé tatapuy seta? «Trouxeste muita polvora?»

Responde o francez a tudo isto Aru seta yagatupé giapareté «Sim, trouxe muita coisa boa e bonita.» Diz o selvagem Augé-y-pó «Muito bem.»

Ercipotar turumi? Ercipotar keré? «queres dormir? queres deitar-te?» Responde o francez Pa che potar «sim, quero dormir, deixa-me.»

Da-lhe então o selvagem as boas tardes, ou boas noites, dizendo — Nein tyande karuk tyande petom «boa tarde, boa noite, descançae á vontade.»

Deixemol-os em descanço, e passemos á segunda parte d’esta historia.