CAPITULO II

Do baptismo de muitos infermos e velhos, que falleceram depois de christãos.


Entre os mais bellos enigmas sagrados, que recita Job no seo livro, está no Cap. XIV a parabola do loureiro dizendo. Si senuerit in terra radix ejus, et in pulvere mortuus fuerit truncus illius, ad odorem aquæ germinabit, et faciet comam quasi cùm primo plantatum est: «Si a raiz do loureiro se mergulha na terra, e seo tronco morrer no pó, apenas sentir o cheiro da agoa germinará e produzirá nova copa de folhas, como si fosse recentemente plantado.»

Os Setenta assim inverteram esta passagem: Si in petra mortuus fuerit truncus ejus, ab odore aquæ florebit, et faciet messem, sicut nova plantata: «si o tronco do Loureiro morrer na pedra, com o cheiro d’agoa florescerá, e como planta nova mostrará em breve sua copa.»

Outra versão ha ainda mais bella: Attracto humore aquæo iterum germinat, exibet quæ fructus decerpendos, ut plantæ solent «o Loureiro morto chupando a agoa germina de novo, e como as outras plantas offerece sazonados fructos.»

N’estes trez trechos descobrireis muitas coisas, que servem litteralmente ao nosso fim.

1.º A raiz do Loureiro dentro da terra.

2.º Seo tronco morto no pó ou na pedra.

3.º O cheiro d’agoa, que dá a vida perdida á raiz e ao tronco fazendo produzir folhas, flores e fructos.

O Loureiro representa as Nações infieis, conforme a ficção dos antigos da nympha Daphné, a qual perseguida pelos demonios com o nome de Appollo foi convertida em Loureiro.

Sua raiz sepultada no pó ou na rocha representa longa serie de annos, nos quaes estas Nações barbaras jazeram entregues aos seos barbaros e inveterados costumes.

O tronco ja morto representa o fim e terminação d’esta ignorancia.

Deos querendo presentemente visitar esta Nação escolheo os enfermos, os velhos, os caducos e moribundos para fazel-os renascer em Jesus Christo, levando as folhas verdes da graça, as flores dos dons do Espirito Santo, e os fructos dos meritos da paixão de Jesus Christo, e com isto tudo o cheiro e o atractivo da agoa do baptismo.

Sentiamos muito consolo quando baptisavamos os doentes e os velhos, cuja morte era esperada com certeza, por que receiavamos que por falta de soccorros, nos vissemos obrigados a deixar e abandonar todos os meninos recentemente baptisados e os adultos, que constantemente si apresentavam.

Tinhamos ao menos certeza, que baptisando os que se achavam proximos da morte, abria-se o Paraizo, e perdia-se a occasião que lhes faria perder talvez a graça obtida, ficando sós e longe dos Ministros da Igreja para nutril-os na graça recebida.

Alem d’isto o baptismo d’estes velhos fazia muita impressão no coração das testemunhas vendo a devoção, com que ordinariamente recebiam o baptismo.

Vou dar-vos alguns exemplos.

Na ilha cahiram doentes duas raparigas, uma livre e outra escrava, sendo aquella casada com um Tupinambá, muito bom moço, o qual depois da morte de sua mulher, constantemente nos perseguia para ser baptisado, aprendendo com muito boa vontade a doutrina christã.

Esta rapariga, proxima da morte, pedio que lhe dessem o baptismo, confessando por palavras nascidas do coração a verdade da nossa religião, mostrando por signaes exteriores o toque do Espirito Santo no seo coração, banhando-se de lagrymas de amor e de reconhecimento ao grande Tupan, que lhe fazia tão assignalada graça de a ter feito nascer neste seculo para tiral-a do meio de tantas almas perdidas de sua nação e conceder-lhe o goso do paraizo.

Fitava com attenção o Ceo, e com palavras doceis e tremulas recitava o que sabia á respeito da crença de Deos, repellindo para bem longe Geropary e seos antigos enganos.

No meio d’este discurso, precursor da morte, lamentava a condemnação de seos antepassados.

Fazia exposições muito bellas a seo marido e o animava a receber quanto antes a purificação de seos peccados.

Devo dizer d’ella um facto muito particular, qual o de haver conhecido um só homem, o seo marido, o que é não pequeno milagre n’aquelle paiz, por causa do mau costume introdusido pelo diabo no coração das moças, de se honrarem pela deshonra, e de não apreciarem a castidade ou a virgindade.

Bem vêdes por isto, que em todos os escolhidos de Deos ha sempre alguma virtude natural, que provoque, não por merecimento e sim pela occasião, a graça de Deos, que similhante ao sol, com indifferença, está a entrar n’alma de todos, si houver para isso disposição.

A Tapuia, ou escrava, atacada por violenta febre, que a atormentava muito, achava-se em sua rede só e por todos abandonada, conforme o uso e costumes d’elles, que consideram grande deshonra cuidar d’uma escrava quando está a morrer, isto antes da nossa chegada a ilha, quando então lhes mostrámos o quanto era desagradavel á Deos a crueldade com que atiravam por terra o escravo moribundo e lhe quebravam a cabeça como ja disse.

Esta desgraçada mulher, prisioneira de Satan, e victima das desgraças communs da natureza, que são as enfermidades e as doçuras dolorosas e insuportaveis, sem pessoa alguma junto de si foi então olhada com piedade, e visitada por seo Creador, animando-a a pedir o baptismo. Oh! juiso de Deos! Oh! providencia eterna!

Quem poderá comprehender teos conselhos na vida do homem!

Esta pobre creatura, dardejada vivamente no coração pelas flechas das primeiras graças do seo senhor, não merecidas por alguma obra boa anterior, que houvesse feito, lançava suas vistas por todo o quarto procurando ver, si alguem lhe apparecia para mandar chamar os Padres, afim de ser lavada com as agoas do baptismo, e felizmente lhe appareceu um francez, a quem expoz seos desejos, e veio elle logo dizel-os ao padre, indicando a casa d’ella, que era perto, e elle foi logo visital-a, instruil-a e baptisal-a.

O francez, que cuidou d’ella, e o padre que a baptisou, me contaram coisas admiraveis.

Esta infeliz creatura quanto ao corpo, porem muito feliz quanto á alma, principiou a experimentar os penhores do Ceo, e o merecimento do sangue de Jesus Christo que recebeo pelo baptismo. Tinha sempre os olhos fixos no Ceo, derramava abundantes lagrymas, e dizia de momento a momento, estas palavras — Y Katu Tupan, ché arobiar Tupan. Oh! quanto Deos é bom! Oh! quanto Deos é bom! eu creio n’elle. Depois por meio de signaes mostrava aos francezes, que Jiropary, o diabo, andava ao redor de sua rede, e então dizia Ko Jiropary, Ko y pochu Jiropary: «está ali o diabo, atirai sobre elle a agoa de Tupan, isto é, agoa benta para elle fugir.» Fazia-lhe o francez a vontade e dizia ella que o diabo fugia a toda a pressa, e por isso constantemente pedia ao francez que derramasse em roda d’ella e de sua rede muita agoa benta o que fazia, bem como o padre quando ahi se achava.

Apenas lhe apparecia uma dor de cabeça, que muito a encommodava, pedia para que lavassem a testa, as fontes e a cabeça com agoa benta, com que alliviava muito, a ponto de não sentir mais doença alguma: pouco depois entregou sua alma ao Creador.

Amortalharam e sepultaram seo corpo á maneira dos christãos: aconteceo porem, que alguns malvados, filhos de Giropary, que nunca foram descobertos, senão seriam punidos, foram á noite desenterral-a, quebraram-lhe a cabeça e roubaram o panno de algodão de sua mortalha: pela manhã foi outra vez sepultada.

Ninguem se admire d’isto, pois o diabo reserva sempre para si alguns bons servos, mesmo nos reinos os mais bem policiados, afim de executar suas mais detestaveis intenções.

Sabeis sem duvida, que os Tupinambás aborrecem naturalmente os que abrem as sepulturas dos mortos e não podem por isso tolerar, que os francezes abram as covas, onde foram enterrados seos parentes para lhes tirar os objectos, que elles cheios de superstição ali deixam.

Ahi estava a morrer um velho Tabajare, tão magro, que os ossos lhe furavam a pelle, sem voz, e sem movimentos na sua rede.

Julgando-se mais proximo da morte do que da vida, inspirado por Deos, pedio o baptismo.

Fomos visital-o e cathequisal-o pedindo-lhe sua opinião a respeito de todos os pontos e artigos, que lhe propuzemos.

Com as mãos postas nos disse que acreditava no que lhe diziamos.

Demorando-nos nos artigos relativos á crença da Santissima Trindade, da Incarnação, Morte, e Paixão do Filho de Deos, do Baptismo, e do Mysterio da Santa Eucharistia, por que estava proximo da morte, procuramos fazer-lhe entender estas materias tão altas e profundas por comparações familiares, a que prestou muita attenção, e dezejando com todo o fervor o baptismo nós lhe promettemos, que no cazo de ficar bom elle receberia as ceremonias do baptismo na capella de S. Luiz, e aprenderia com gosto a doutrina christan, que ensinavamos aos catecumenos antes de baptisal-os.

Respondeo-nos, que não era tão longe a Capella de Sam Luiz, que não podesse ser levado até lá afim de, antes de morrer, ser baptisado, consolação que muito desejava afim de ir direito para o Ceo.

Vendo este fervor e devoção ficamos satisfeitos e concordamos ser elle carregado n’uma rede até a igreja de Sam Luiz, e ahi baptisado com toda a solemnidade.

Alguns dias depois morreo tranquillamente.

N’esse mesmo tempo cahio doente uma mulher Tabajare, e tão gravemente, que todos julgavam-na em breve morta: fomos vel-a e lhe offerecemos o baptismo que aceitou de muito boa vontade, e com muita attenção escutava o que diziamos, por intermedio dos interpretes, a respeito das glorias do Paraizo, das penas do inferno, do que ella devia crer, antes de receber o baptismo no caso de Deos lhe dar saude, e que podesse aprender a religião christan, e então na igreja receberia as ceremonias do baptismo, no que concordou e foi baptisada: recobrando sua saude, julgou do seu dever cumprir sua palavra, embaraçando-a porem o facto de ser mulher de um Tabajare, que tinha mais duas, não podendo ella continuar a viver com elle casada segundo as leis do christianismo.

Removemos este obstaculo seguindo o conselho de Sam Paulo: si qua mulier fidelis habet virum infidelem et hic consentit habitare cum illa, non dimitat virum etc quod si infidelis discedit, discedat: «si alguma mulher fiel estiver casada com um homem infiel, e que este queira morar com ella, ella que não o deixe, si o homem infiel a deixar, ella o deixe tambem.»

Em virtude d’isto fizemos saber a seo marido, que se quizesse ter por unica esta mulher christan, deixando as outras, que ella não o abandonaria, mas que si quizesse viver como d’antes na qualidade de concubina, que nós e os grandes dos francezes lhe afiançavamos, que elle seria despresado como incompativel com o christianismo.

A principio mostrou repugnancia porem afinal concordou, vivendo como mulher christan e unica com seo marido.

Faziamos o mesmo aos meninos pequenos, proximos á morte, observando porem estas formalidades: pediamos o consentimento dos paes e mães antes de baptisal-os, embora não os deixassemos de baptisar, quando os viamos moribundos: apesar de estarmos certos da boa vontade geral dos selvagens de apresentarem seos filhos ao baptismo, nós lhes prestavamos esta homenagem com o fim de attrahil-os á se converterem.

Não vem a proposito referir aqui alguns exemplos, porque nada acho n’isto de extraordinario.