Poesias (Bernardo Guimarães, 1865)/Cantos da solidão/Visita à sepultura de meu irmão
A noite sempiterna,
Que tu tão cedo viste,
Cruel, acerba e triste,
Sequer da lua idade não te dera
Que lograsses a fresca primavera?
(Camões.)
Não vês n’essa collina solitaria
Aquella ermida, que sózinha alveja
O esguio campanario aos céos erguendo,
Como garça, que em meio das campinas
Alça o collo de neve?
E junto a ella um tosco muro cinge
A pousada dos mortos nua e triste,
Onde, plantada em meio, a cruz se eleva,
A cruz, bussola santa e veneravel,
Que nas tormentas e vaivens da vida
O porto indica da celeste patria....
Nem moimento, nem piedosa lettra
Vem aqui illudir a lei do olvido;
Nem arvore funerea ahi susurra,
Prestando pia sombra ao chão dos mortos;
Nada quebra no lugubre recinto
A paz sinistra que rodêa os tumulos:
Alli reina sózinha
Na hedionda nudez calcando as campas
A implacavel rainha dos sepulcros;
E só de quando em quando
Vento da soidão passa gemendo,
E levanta a poeira dos jazigos.
Aqui tristes lembranças dentro d’alma
Eu sinto que se acordão, como cinza,
Que o vento de entre os tumulos revolve;
Meu infeliz irmão, aqui me surges,
Como a imagem de um sonho esvaecido,
E no meu coração sinto echoando,
Qual debil som de suspirosa aragem,
Tua voz querida a murmurar meu nome.
Pobre amigo! — no albor dos annos tenros,
Quando a esperança com donoso riso
Nos braços te afagava,
E desdobrava com brilhantes côres
O painel do futuro ante os teus olhos,
Eis que sob teus passos se abre subito
O abysmo do sepulcro....
E aquella fronte juvenil e pura,
Tão prenhe de futuro e d’esperança,
Aquella fronte que talvez sonhava
Ir no outro dia, — ó irrisão amarga!
Repousar docemente em niveo seio,
Entre os risos de amor adormecida,
Vergada pela ferrea mão da morte,
Cahio livida e fria
No duro chão, em que repousa agora.
E hoje que venho no aposento lugubre
Verter piedoso orvalho de saudade
Na planta emmurchecida,
Ah! nem ao menos n’esse chão funereo
Os vestigios da morte encontrar posso!
Tudo aqui é silencio, tudo olvido,
Tudo apagou-se sob os pés do tempo!....
Oh! que é consolo ver ondear a coma
D’uma arvore funerea sobre a lousa,
Que escondeu para sempre a nossos olhos
D’um ente amado inanimados restos.
Cremos que a anima o espirito do morto;
Nos mysticos rumores da folhagem
Cuidamos escutar-lhe a voz dorida
Alta noite gemendo, e em sons confusos
Mysterios murmurando d’além-mundo.
Desgrenhado chorão, cypreste esguio,
Funereas plantas dos jardins da morte,
Monumentos de dôr, em que a saudade
Em nenia perennal vive gemendo,
Parece que com lugubre susurro
Ao nosso dó piedosos se associão,
E erguendo ao ar os verdenegros ramos
Apontão para o céo, sagrado asylo,
Refugio extremo a corações viuvos,
Que collados á pedra funeraria,
Tão fria, tão esteril de consolos,
O seu dorido luto em vãos lamentos
Arrastão pelo pó das sepulturas.
Mas — nem um goivo, nem funerea lettra
Amiga mão plantou n’este jazigo;
Ah! ninguem disse á arvore dos tumulos
— Aqui sobre esta campa
Cresce, ó cypreste, e geme sobre ella,
Qual minha dôr, em murmurio eterno! —
Sob essa grama pallida e enfesada
Entre os outros aqui perdido jazes
Dormindo o teu eterno e fundo somno....
Sim, pobre flôr, sem vida aqui ficaste,
Envolta em pó, dos homens esquecida.
«Dá-me tua mão, amigo,
«Marchemos juntos n’esta vida esteril,
«Vereda escura, que conduz ao tumulo;
«O anjo da amizade desde o berço
«Nossos dias urdio na mesma têa;
«Elle é quem doura os nossos horizontes,
«E a nossos pés alguma flôr esparge....
«Quaes dous regatos, que ao cahir das urnas
«Se encontrão na vallada, e n’um só leito
«Se abração, se confundem,
«E quer volvão serenos, reflectindo
«O azul do céo e as florejantes ribas,
«Quer furiosos ronquem
«Em boqueirões sombrios despenhados,
«Sempre unidos n’um só vão serpeando
«Té se perderem na amplidão dos mares,
«Taes volvão nossos dias;
«A mesma taça no festim da vida
«Para ambos sirva, seja fel ou nectar:
«E quando emfim, completo o nosso estadio,
«Formos pedir um leito de repouso
«No asylo dos finados,
«A mesma pedra nossos ossos cubra!»
É assim que tu fallavas
Ao amigo, que aos candidos accentos
De teu fallar suave attento ouvido
Inclinava sorrindo:
E hoje o que é feito d’esse sonho ameno,
Que nos dourava a ardente fantasia?
D’essas palavras de magia cheias,
Que em melliflua torrente deslisavão
De teus labios sublimes?
São vagos sons, que me murmurão n’alma,
Qual reboa gemendo no alaúde
A corda que estalára.
Ledo arroio que vinhas da montanha
Descendo alvo e sonoro,
O sol abraseado do deserto
N’um dia te seccou as ondas limpidas,
E eu fiquei só, trilhando a escura senda,
Sem tuas puras aguas
Para orvalhar-me os ressequidos labios,
Sem mais ouvir o trepido murmurio,
Que em tão placidos sonhos m’embalava....
Mas — cessem nossas queixas, e curvemo-nos
Aos pés d’aquella cruz, que alli se exalça,
Symbolo sacrosanto do martyrio,
Fanal de redempção,
Que na hora do extremo passamento
Por entre a escura sombra do sepulcro
Mostra ao christão as portas radiantes
Da celeste Solima, — eil-a que fulge
Como luz de esperança ao caminhante,
Que transviou-se em noite de tormenta;
E alçada sobre as campas
Parece estar dizendo á humanidade:
Não choreis sobre aquelles que aqui dormem;
Não mais turbeis com vossos vãos lamentos
O somno dos finados.
Elles forão gozar bens ineffaveis
Na pura esphera, onde d’aurora os raios
Seu brilho perennal jámais extinguem,
Deixando sobre a margem do jazigo
A cruz dos soffrimentos.
Adeos, portanto, funebre recinto!
E tu, amigo, que tão cedo vieste
Pedir pousada na mansão dos mortos,
Adeos! — foste feliz, — que a senda é rude,
O céo é tormentoso, e o pouso incerto.