40 anos no interior do Brasil/Senhor Manducca

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Senhor Manducca


O velho fazendeiro João de Oliveira Muniz Manducca estava em pé escorado em um poste do portão de seu pátio e olhava distraidamente rua abaixo, banhada de sol. Ele ainda era um homem da velha escola, segundo a qual no Brasil ainda reinava o respeito e a cortesia entra as pessoas; não como hoje, que os jovens imaginam poder permitir-se tudo.

Seu olhar aguçado observava um ponto que lentamente se aproximava. Era um homem a cavalo. Manducca reconheceu primeiro a marcha do cavalo, ainda antes de poder distinguir bem o próprio cavalo, então reconhece as cores e estatura, e por fim, ele viu também a criatura secundária que estava sentada em cima. O cavalo tinha uma “marcha trotteada” muito boa, era um tobiano, os arreios guarnecidos com alpaca e o homem a cavalo parece vindo de uma das cidades; pois seu traje era tão elegante, seu rosto tão pálido, seu olhar tão sem interesse e voltado para a frente que o mesmo não pareceu nenhuma vez observar o senhor Manducca que continuava alto e magro escorado no portão de seu pátio. “Desculpa senhor”, falou Manducca e ficou parado a três passos e meio em frente ao cavalo; “teria a grande bondade de me deixar experimentar um momento?” o forasteiro puxou as rédeas e olhou admirado para o rosto curtido pelo sol do interlocutor; mas ele deve ter lido algo no olhar fixo, de modo que pareceu-lhe aconselhável atender seu pedido de livre e espontânea vontade; também a bela pistola de caça de cano duplo que o solicitante carregava no cinto fez parecer conveniente não causar transtornos. Lentamente o homem desceu do cavalo e deu as rédeas ao velho. Este num instante sentou na sela e sob sua mão hábil o cavalo saracoteou ao longo da estrada. O cavaleiro apeado lentamente tirou um pequeno revólver do bolso de trás da calça e meteu no bolso lateral de seu casaco. O senhor Manducca fez o cavalo virar depois de cem passos, passou pelo seu dono troteando ligeiro, gentilmente levantou seu chapéu e gritou: “Bon dia, senhor Manducca!”, então virou o cavalo novamente e outra vez acentuou o seu “Bon dia, senhor Manducca!” e assim três, quatro vezes. Então se deteve ao lado do forasteiro, saltou da sela, entregou os arreios com um rápido agradecimento e, mirou o homem desafiadoramente e disse: “Agora você sabe como deve se comportar quando vier cavalgar por aqui? E eu lhe digo como amigo que eu vou lhe matar a tiros como a um cachorro louco se o senhor se atrever a cavalgar por aqui de novo sem cumprimentar!”. O forasteiro pensou em seu pequeno revólver no bolso do casaco, na enorme pistola no cinto de Manducca, na firmeza com que o velho saltou da sela e tirou cordialmente seu chapéu, ofereceu desculpas ao senhor Manducca e tocou adiante sem uma única vez olhar para trás.

Uma outra vez, trovejava e relampeava. A chuva batia no telhado. Manducca estava sentado ao fogo. Um chamado ressoou: “Ó, dono da casa!” Um homem a cavalo estava parado em frente ao portão e perguntava se poderia ficar para passar a noite. Ele foi atendido. Entrou encharcado e meio encarangado. “Minha casa é a sua casa!” falou Manducca com uma hospitalidade tipicamente brasileira e conduziu o forasteiro ao fogo acolhedor para que pudesse se aquecer. Então uma toalha branca foi estendida sobre a baixa mesa: feijão preto, arroz, farinha de mandioca, abóbora, leite, carne de porco, enfim, tudo o que a casa podia oferecer foi silenciosamente trazido pelas mulheres. O forasteiro sentou-se à mesa e remexeu em volta da comida; pegou só um pouco, pois estava fatigado e não tinha apetite. Manducca oferecia ainda a ele uma coisa e outra, mas o forasteiro agradecia. O olhar de Manducca ficou cada vez mais sombrio. O forasteiro limpou a boca na toalha da mesa e encostou-se para trás. Manducca levantou-se silenciosamente, puxou a sua pistola dupla da parede, colocou-a em frente a si sobre a mesa e com uma calma inquietante disse: “A minha comida não lhe apeteceu muito?” O forasteiro olhou apavorado a arma e garantiu que havia apetecido excelentemente.

“E agora por que o senhor não come se lhe apeteceu tanto?”

O forasteiro garantiu que não tinha fome. “Pois eu não acredito nisso!” interrompeu agora Manducca. “O Senhor insulta a minha casa, se não presta honra a ela! E agora vou lhe ensinar a se comportar, agora coma tudo o que está em cima da mesa; senão vou descarregar o chumbo na sua barriga e vamos ver como ela digere isso”. O forasteiro implorou e lamentou-se, mas tudo em vão. O olhar rígido de seu algoz não o largava; ele começou a comer novamente, e comia, e comia e se esforçava por fazer descer tudo. E quando os pratos começaram a ficar vazios, Manducca se tornou amigável, então bateu afetuosamente no ombro de sua vítima e opinou: “Eu sabia que o senhor estava só fingindo! Vê agora como ela lhe apeteceu? E a mais corriqueira cordialidade exige que se coma o que hospitaleiramente é oferecido de bom coração por alguém”.

No dia seguinte de manhã cedo quando o forasteiro seguiu caminho, ainda trocou algumas palavras cordiais com o seu querido estalajadeiro, mas, quando chegou na próxima cidadezinha, quase caiu do cavalo em função das dores, precisou ficar de cama, chamar o médico e só depois de três semanas ele estava restabelecido para que pudesse continuar sua viagem.

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