Quando a seiva do espírito público entra a derramar-se no gérmen de uma reforma, é porque a Providência já a abençoou.

Nas épocas de incubação política como a atual, em que a vontade popular vacila entre a antiguidade de um abuso arreigado nas instituições e a santidade de uma idéia venerável, ungida pelo prestígio da verdade eterna, cada receio que se destrói é uma promessa, cada conversão que se efetua uma vitória, cada ensaio que se tenta uma conquista.

Os princípios são invioláveis e imortais. Invioláveis, porque têm como asilo a consciência, e enquanto eles se ajuntam, gota a gota, no espírito dos homens para transformar-se na vaga enorme das revoluções, não há lei que os reprima, nem inquisição que os alcance.

Imortais, porque encerram em si, contra a ação corrosiva dos preconceitos humanos, o caráter, a substância e a energia de uma lei invariável, absoluta e universal.

O que, porém, determina principalmente a sua inegável supremacia perante as concepções do interesse e da força, nas grandes lutas sociais, o que deve desanimar sobretudo aos propugnadores do passado, é o contágio irresistível de sua influência, a virtude reprodutora de seus resultados e a inalienabilidade maravilhosa de suas aquisições.

Enquanto a semente divina dorme no sulco, podeis lançar-lhe o sal da maldição, podeis plantarlhe em derredor a parasita insaciável, podeis abafá-la com escolhos, negar-lhe o ar e a luz, o orvalho do céu e as carícias da estação, os recursos da arte e os desvelos do lavrador.

É simplesmente um embuste, porque a reação há de ultrapassar os obstáculos, e a verdade germinará sempre, mas é um embuste proveitoso para os interessados.

Tem sua razão de ser.

Os pobres de espírito que não percebem o desenvolvimento subterrâneo da reforma, não acreditam sua existência*. É uma veia abundante para os exploradores hábeis.

Ai deles, porém, ai dos refratários, quando uma só vergôntea atravessar esses empecilhos!

Neste caso a resistência fecunda, a oposição consolida e o contraste fortifica.

É a hidra invencível da fábula.

É a história da emancipação da escravatura entre nós.

Outrora a escravidão pareceria fadada a perpetuidade neste país. Falar em extingui-la seria uma blasfêmia. Fizeram-na esposar a lavoura, cuidando uni-las para sempre. A nação tinha edificado a sua fortuna sobre um crime, consagrando-o nos seus códigos como uma necessidade social.

Hoje o princípio emancipador, difundido pela civilização, lavrou por toda a parte.

Na Europa e na América desapareceu a escravidão.

Só nós alimentamos no seio esta ignomínia.

A pressão formidável das idéias cresce de dia para dia em volta de nós como um oceano prenhe de tempestades.

No meio de tudo isto o que fez o Governo? Nada; absolutamente nada!

A fala do trono de 1869 é uma vergonha indelével. O Sr. D. Pedro II, que em 1867 e em 1868 havia proclamado solenemente a urgência da reforma abolicionista, que tinha celebrado compromissos públicos com o país e com a Europa, que alardeava de todo modo tendências humanitárias, vem rasgar aos olhos do mundo o único título meritório com que até hoje podia ufanar-se o despotismo de sua autoridade retratando com o silêncio todas as suas promessas para envolver-se numa abstenção misteriosa e injustificável.

E ainda há quem diga que a emancipação neste país não é questão de partidos!

Sim, não devia sê-lo.

Mas a índole mesquinha de nossa política tem convertido esse reclamo da consciência nacional em arma de hostilidades.

Algum dia, quando a liberdade não for mais o privilégio dos brancos no Brasil, quando a posteridade examinar os nossos feitos com o facho da História na mão, a justiça dos vindouros há de gravar na memória do Partido Conservador o estigma da reprovação eterna, porque ele sacrificou aos interesses momentâneos do poder, o interesse imorredouro da verdade; aos cálculos estéreis do egoísmo, as necessidades imperiosas do futuro, e à pequenhez das considerações pessoais os direitos inalienáveis de uma raça escravizada.

Não protesteis! Se a emancipação em 1867 e em 1868 era tão urgente, que o imperador a mandava estudar pelo conselho d’Estado, e a consignava nos discursos da coroa como a necessidade capital do país, invocando para ela a reflexão do parlamento, como é que de um ano para o outro esta necessidade urgente e imediata torna-se tão secundária, tão indiferente, tão remota que nem sequer merece ser mencionada na fala do trono?

Felizmente, porém, há um preceito e um fato de observação que nos animam.

O primeiro é que desde que a verdade chega a amadurecer com os acontecimentos, cada embaraço com que trabalhamos por contrariá-la, é um acréscimo de força para a sua multiplicação.

O segundo é o imponente movimento do espírito nacional que vai-se formando lentamente no país.

A servidão em que temos vivido até hoje, a ausência completa de animação política do país, tem-nos habituado a desdenhar esses fatos, que, sob a modéstia de suas feições, ocultam graves sistemas de regeneração pública.

Ao nobre exemplo das províncias do Piauí, de Santa Catarina e de Pernambuco, acaba de responder brilhantemente a província de São Paulo decretando uma verba de vinte contos de réis para a redenção de crianças cativas.

Honra lhe seja!

Bem haja a assembléia provincial, que, neste ponto, soube entender a sua missão! Bem haja ela, que assim acaba de penhorar a gratidão de seus constituintes! Bem haja ela, porque assim amou a justiça e serviu a causa da verdade!

Nós a saudamos em nome de nossos pais, cuja memória clama em nossas almas pela redenção dessa iniqüidade tremenda a que os arrastaram, em nome do país, que reclama constantemente o desagravo dessa afronta, em nome do futuro, que se encaminha para nós, e que será implacável se lhe deixarmos este legado de opróbrio, em nome das idéias radicais, em nome da felicidade de nossos filhos, em nome do evangelho que é a grande constituição dos povos livres!

Nós a saudamos, em nome de Deus!... Num país descentralizado este fato seria uma expansão natural das províncias, um acontecimento regular sem significação precisa, sem alcance político, sem resultados ulteriores.

Entre nós, porém, onde o Governo constitui-se pai, tutor, administrador da província, do município, do cidadão, este fato encerra um protesto expressivo contra essa minoridade perpétua que nos aniquila.

“A centralização administrativa é o laço mais eficaz das nações pouco adiantadas, exclama o poder; o que falta ao povo deve salvar no Governo, para manter o equilíbrio vital. Trabalhemos pela unidade administrativa: é a condição fundamental da nossa existência.”

Bem: mas onde estão os efeitos benéficos deste sistema? Nas finanças? Estamos exaustos. Na guerra? Não se pode conceber direção mais infeliz. No funcionalismo? É o nosso maior flagelo. Nas relações exteriores? Somos o ludíbrio de todos os governos.

Que é da fecundidade tão preconizada com que legitimais a centralização?

Que reformas se promovem? Que melhoramentos se estabelecem? Que abusos se extirpam?

O que diz, o que faz o Governo diante da grande revolução social que nos está iminente, a supressão do trabalho servil?

Emudece.

O Governo deserta a causa da emancipação! Ele, que se inculca como o civilizador, o mestre, o magistrado do país, acaba de renegar a justiça, a verdade e a civilização!

E as províncias, eternas pupilas de seus administradores, é que hasteiam a bandeira libertadora, a bela, e venerada bandeira da consciência e da honestidade nacional.

Diante desta escandalosa contradição que homem de bem, que alma patriótica será capaz de negar o influxo pernicioso da unidade administrativa?

Convençam-se todos de que só há para o Brasil um meio de reabilitação: é o sistema federativo, é a iniciativa provincial. As assembléias de Santa Catarina, Piauí, Pernambuco e S. Paulo demonstram, com o seu procedimento, a exatidão deste asserto.

Governe cada um a si mesmo: é a norma dos estados representativos e dos Estados Unidos, da Inglaterra, da Bélgica, da Holanda, da Suíça.

Ao lado, porém, desta reforma erga outra que esses mesmos acontecimentos proclamam com a eloqüência respeitável dos fatos.

É o interesse urgente da emancipação. O Brasil, segundo a expressão de Laboulaye no Congresso Abolicionista de 1867, o Brasil está bloqueado pelo mundo.

O poder cruza os braços? Pior para ele; a torrente o destruirá.

A abolição da escravidão, quer o Governo queira quer não queira, há de ser efetuada num futuro próximo.

Tal é a realidade.