— Vem ao seu almoço, não?

— São horas; traga-me hoje duas torradas.

— E o café com leite?

— Que pergunta!

Passava-se este diálogo no Carceller, em uma manhã do ano de 1860, entre um dos caixeiros da casa e um constante freguês que ali se demorava perto de duas horas almoçando e lendo os jornais. O caixeiro não se demorou em servir o freguês; veio a clássica bandeja com o açucareiro, a cafeteira, a leiteira, a xícara, as torradas, os palitos e o guardanapo.

— Agora o Jornal do Commercio.

— Está ocupado.

— E o Diário?

— Também está ocupado.

— Onde está o Jornal?

— Tem-no aquele sujeito de gravata amarela.

O freguês resignou-se e começou a almoçar dividindo a sua atenção entre as torradas e o sujeito da gravata amarela. Posto que muitas vezes se desse aquele inconveniente de já estar ocupado o Jornal do Commercio, o nosso homem parecia extremamente irritado, e a um observador fino não seria difícil conhecer que ele tinha um sistema nervoso de fácil irritação.

Com a irritação de um contrastava a tranqüilidade do outro. O leitor da gravata amarela tinha a calma natural que a posse inspira ao homem. Já havia engolido o almoço, tinha entre os dentes um alvíssimo palito cuja ponta mastigava, cruzara as pernas, encostara-se à parede e lia voluptuosamente os a pedido da folha. Era um destes homens que lêem tudo e não lêem nada; percorria os primeiros períodos de um artigo, ia ler os últimos, voltava aos primeiros, passava a outro artigo, virava e revirava a folha, como se não houvesse para ele nenhuma outra ocupação. Algumas vezes parecia disposto a deitar a folha sobre a mesa, e o outro que o espreitava, ia-se levantando para a ir buscar com medo que outro pretendente adiantasse a mão. Engano! O sujeito da gravata amarela não concluía o gesto e continuava a ler tranqüilamente, como se fosse o único assinante daquele exemplar.

Durante esta longa leitura, entremeada de negaças sem intenção, concluiu o outro o almoço, pediu um charuto, acendeu-o e esperou pelo Jornal. Representava ter quarenta anos; era um pouco calvo, meão na altura, olhos amortecidos, barba cerrada; vestia um paletó verde-garrafa, abotoado até o pescoço, deixando aparecer uma gravata preta algum tanto amarrotada pelo uso. Não era fácil adivinhar o estado da fortuna deste sujeito; a roupa tinha certa decência, posto que não fosse absolutamente nova; a camisa estava lavada, e a barba penteada com certo apuro. Podia-se, entretanto, aventurar a suposição de que os seus ganhos eram pequenos, mas que ele fazia das fraquezas forças para continuar hábitos de limpeza e alinho contraídos em tempos melhores.

O caixeiro compadeceu-se da angústia do nosso homem, e lançando mão de um pequeno jornal que havia sobre uma mesa, foi propor uma troca ao leitor da gravata amarela.

— Que é? perguntou este levantando a cabeça do Jornal.

— Quer trocar por este?

O leitor da gravata amarela olhou com indiferença para a folha que o caixeiro lhe apresentava, deu duas voltas ao Jornal do Commercio, e o entregou ao caixeiro, dizendo:

— Já acabei.

Pagou depois o almoço, saiu até à porta, olhou para um e outro lado, e saiu vagarosamente como um homem que não tem nenhuma ocupação debaixo do sol.

— Aqui está o Jornal, sr. Mendonça, disse o caixeiro entregando a folha ao impaciente freguês.

— Já era tempo! disse este recebendo a folha, e preparando-se para fazer o mesmo que o leitor da gravata amarela.

Mendonça começou a ler o Jornal. Era outro gênero de leitor; não deixava passar uma linha desde a primeira até à última, inclusive os anúncios teatrais, posto que não freqüentasse espetáculos.

Já ele percorria vagarosamente a terceira página, quando lhe surgiu aos olhos um anúncio singular. Começava então a florescer naquele tempo certo costume transatlântico de tratar na imprensa negócios de coração ou de arranjos domésticos. O costume não me parece bom, nem mau. Alguns têm colhido vantagens dele; não é raro que um senhor solteiro ou viúvo precise de uma moça para lhe cuidar da casa, e ache uma excelente pessoa que lhe cuide da casa e do coração.

Desta vez não se tratava de um senhor, tratava-se de uma senhora que declarava ter alguma coisa de seu, e desejava casar com um homem de 40 anos para cima. Pedia que deixasse carta na tipografia com as iniciais P. P. P. Qualquer homem menos aventuroso refletiria logo que uma senhora, com alguma coisa de seu, não deixaria de achar marido sem recorrer ao anúncio. O dinheiro é uma espécie de molho que faz passar na goela as mais insípidas viandas deste mundo. Portanto, ou o anúncio era uma pulha solene, ou a anunciante tinha muito pouco de seu, tão pouco, que não valeria a pena de escrever uma carta.

Mendonça pensou nisto, mas rapidamente; era homem dado ao mistério, e entrevia naquele anúncio um aceno da sorte a seu favor. Demais que perderia ele em arriscar uma carta? Suas relações eram poucas; se fosse pulha não teria nunca uma publicidade que lhe fizesse mal.

Feita esta reflexão acabou de ler o Jornal, pagou o almoço e saiu com a intenção firme de ir deixar uma carta na tipografia. Daí a uma hora estava a carta no lugar indicado, e Mendonça aguardou os acontecimentos com a confiança de um homem que faz depender o seu destino do acaso.

No dia seguinte de manhã, não se arriscou a ir ler o Jornal no Carceller; foi à padaria que lhe ficava defronte de casa na Rua da Assembléia, e leu um anúncio em que se convidava o correspondente A. A. A. a ir a tal rua, número tantos.

Correu Mendonça ao almoço e, uma hora depois, seguia para a casa da misteriosa anunciante, não sem que lhe palpitasse o coração entre a esperança e o natural receio que acompanha esta virtude, ainda nos corações mais animosos.

— Quem é? perguntou uma preta do patamar.

— Sou a pessoa que escreveu uma carta...

— Ah, faça o favor de entrar...

Mendonça subiu os degraus que lhe faltavam, e foi introduzido numa sala onde a preta lhe disse que esperasse um pouco.

A sala estava mobiliada com algum apuro e gosto. Indicava certa abastança. Tinha o chão forrado de palhinha, e cortinas brancas nas janelas. Das paredes pendiam algumas gravuras de preço, cópias de quadros célebres. Havia um piano aberto tendo na estante um livro de sonatas alemãs. Mendonça percorreu todos estes objetos, sem reparar muito neles, cheio como estava do desejo de conhecer a sua noiva.

Mas não aparecia a dita noiva e Mendonça estava cada vez mais impaciente. Entrou a conjecturar quem seria:

— É naturalmente alguma velha decrépita, pensou ele; alguma mulher corcunda e coxa, algum milagre de fealdade que a sorte me guarda. E logo depois desta reflexão melancólica vinha outra mais risonha.

— E por que será assim? continuava ele. O destino tem segredos que ninguém pode devassar; o melhor é esperar tranqüilamente e não ir adiante do tempo.

Nestas alternativas do pensamento decorreram largos minutos. Só no fim de meia hora ouviu Mendonça uns ruge-ruge de seda que lhe anunciaram a chegada da pessoa. Lançou um rápido olhar para o espelho e esperou. Abriu-se a porta e entrou a anunciante.

Era uma mulher bonita, representando ter 25 anos de idade, vestida com esmero e graça. Andava com a mesma placidez do cisne que atravessa um tanque, e tinha na voz e no olhar a mesma placidez do andar.

Entrou e estendeu a mão a Mendonça, que se levantara e dera um passo para ela. A mão era macia e branca; Mendonça apertou-lha trêmulo e deslumbrado.

Não sendo comuns situações iguais a esta, não sei como imaginará o leitor o sentimento de Mendonça em frente da moça. Era de rigor e natural um largo silêncio, durante o qual ambos se sentaram e olharam um para o outro. Mendonça já estava arrependido do passo que dera; como podia aquela moça, bonita, elegante, abastada, recorrer ao Jornal do Commercio para obter um marido? Mendonça imaginou que era vítima de algum logro. No entanto era necessário sair do embaraço e dar algum desfecho razoável à situação. Não acusem o escritor de algumas contradições que aí se revelam no espírito de Mendonça; o autor não quer desnaturar o caráter do personagem, quer expô-lo.

— Vi um anúncio, minha senhora, disse Mendonça, e escrevi uma carta a qual me foi respondida hoje com outro anúncio. Dizia-me que viesse aqui ter; obedeci. Vejo porém que ambos nós nos enganamos...

— Por quê? perguntou ela.

— A senhora esperava outro homem; eu esperava outra mulher.

— Explique-se.

— Não posso crer que tanta beleza e mocidade estivessem guardadas para mim por um acaso tão fortuito; e por outro lado, recorrendo a um meio tão romântico, a senhora esperava que a fortuna apresentasse outro homem que não este que está falando.

A moça não pôde reprimir um sorriso. Olhou firmemente para Mendonça e ficou silenciosa alguns minutos.

Depois disse:

— Fez mal em raciocinar assim com o destino; é o meio mais seguro de lhe perder as boas graças; eu pedia um homem maior de 40 anos; o senhor tem a idade precisa; não discuto mais. Se eu quisesse outras condições não as teria exposto no anúncio? Exigi apenas a idade da reflexão e da experiência...

— Oh! isso... interrompeu Mendonça, não é certo que o tenha todo o homem de 40 anos. A senhora não me conhece; sabe acaso se eu não sou um leviano, apesar dos meus direitos ao senado?

Outro sorriso da moça.

— O senhor raciocina demais, disse ela. Também o senhor não me conhece, e entretanto veio disposto a aceitar-me por esposa.

A conversa tinha colocado Mendonça em má posição. Tratou ele de melhorá-la passando a falar das graças pessoais da misteriosa anunciante. Ela ouviu os elogios com pronunciada indiferença, e nenhuma palavra respondeu ao pretendente, que punha em ação todos os seus meios de retórica natural.

— Em resumo, disse ela quando ele acabou, quando realizaremos o nosso intento?

Mendonça olhou para ela antes de lhe responder. Queria medir o abismo do desconhecido antes de se atirar nele. Convertera-se-lhe a coragem em covardia, a confiança em receio.

Ela olhava para ele, não admirada nem imperiosa, mas indiferente. Mendonça disse resolutamente:

— Quando quiser.

— Bem, respondeu ela, quanto antes.

Tudo isto que levo aqui narrado parecerá tão estranho que eu receio estar enfadando às leitoras. Mas se a palavra honrada de um escritor merece respeito, afirmarei que nada disto é invenção, antes puríssima verdade. Não componho um romance; redijo uma notícia mais extensa que as dos jornais. Este Mendonça não é criação de fantasia; é homem de carne e osso. A moça declarou que se chamava Branca, nome de poema romântico, nome que traz consigo umas idéias e encantamentos assaz adequados ao caso. Mendonça também disse como se chamava, e referiu à misteriosa senhora as principais circunstâncias de sua vida. Confessou que recebera de seus pais algum pecúlio, e que o perdera com alguns amigos, amigos da boa mesa e pródigos dos bens dos outros. Não lhe negou que esta circunstância lhe inspirara tal ou qual misantropia. Seus atuais rendimentos consistiam nos honorários que lhe dava um advogado principiante, mas generoso, como escrevente que era dele.

— Bem vê, concluiu Mendonça, que a minha posição é humilde, e não sei se isto me fará desmerecer a seus olhos.

Branca estendeu-lhe a mão, dizendo:

— Eu não exigia posição nem fortuna; pedia um homem de 40 anos e estava disposta a aceitar o primeiro que me aparecesse. Apareceu-me um apenas; mais razão tenho para não regatear o marido.

— Mas... objetou Mendonça.

— Hesita? perguntou Branca, levantando-se.

— Não hesito; mas não me dirá também alguma coisa de sua vida?

Branca pareceu refletir alguns instantes. Mendonça estava de pé em frente da moça.

— Se o senhor tirasse a sorte grande, perguntou ela, indagaria a procedência das notas que lhe dessem, ou por que mãos haveriam passado?

— Oh! a comparação é mal cabida.

— Nem mais uma palavra a este respeito, disse Branca, pondo o dedo na boca.

E dirigiu-se ao piano onde começou a tocar distraidamente, sem dar a menor atenção ao pobre homem que ali ficou de pé, oscilando entre o receio e a ambição.

Branca tocou muito tempo sem dizer palavra, e Mendonça julgou melhor não reatar a conversa, até porque não sabia o que lhe havia de dizer. Contemplava-a entretanto; e não podia arrancar os olhos das belas espáduas da noiva, mal disfarçadas por um tenuíssimo véu de filó. Ao mesmo tempo perguntava se não era aquilo um sonho, e se aquela mulher, bonita, elegante, jovem e rica como parecia ser, estava destinada a um pobre amanuense já no outono da vida, sem presença que o recomendasse a um espírito de mulher.

No fim de meia hora, Branca volveu o rosto e perguntou ao noivo se achava bonito aquilo que acabava de tocar.

Mendonça nada ouvira; mas respondeu-lhe que era excelente e pediu que continuasse.

— Não, disse ela, por hoje basta.

Levantou-se e dirigiu-se para o sofá, onde começou a revistar as unhas com uma indiferença pouco de acordo com a fantasia romântica do anúncio.

Mendonça sentia ferver em si o fogo da mocidade, não extinto apesar dos anos e dos dissabores.

— Branca! murmurou ele.

A moça ergueu-se rapidamente, franziu a testa, e atravessando a sala com a majestade de uma rainha, desapareceu.

Se a torre da Candelária, deixando o seu natural alicerce, fosse por si mesma colocar-se no Campo de Sant’Ana, não admiraria mais o desastrado amanuense do que a inesperada saída da moça.

Durante cinco minutos Mendonça não pôde fazer o menor raciocínio. Ficou com os olhos pregados na porta por onde Branca desaparecera, e assim esteve até compreender que o gesto da moça era uma ordem formal de despejo. Zangou-se consigo mesmo por ter sido tão desastrado, e pegando no chapéu encaminhou-se para a porta da saída.

Mas ainda não havia deixado a sala quando lhe apareceu um moleque e disse:

— Acompanhe-me.

— Onde está a senhora? perguntou Mendonça.

— Acompanhe-me, repetiu o moleque.

Mendonça foi conduzido a outra sala menor que a primeira, e mobiliada mais ou menos do mesmo modo. Não tinha piano; tinha mais uma mesa e uma estante com livros. As gravuras da parede eram todas de assuntos bíblicos. O moleque desapareceu; Mendonça não se sentou, estava curioso de saber em que daria aquilo tudo; e ao mesmo tempo ansioso por pedir perdão à irritada senhora a quem, sem intenção, ofendera.

Não tardou que ela aparecesse, não já irritada, mas triste. Mendonça correu para ela e pediu-lhe humildemente perdão da ofensa. Branca levou-o para o sofá e disse:

— Está perdoado; refleti que a ofensa não era intencional. Demais, eu mesma tive culpa disso; e agora vejo que não andei bem recorrendo a um meio tão singular de encontrar marido. Que pensará o sr. comigo? Que eu era uma mulher como tantas e que minha tenção era apagar com um ato sagrado, algum erro ou muitíssimos erros. Naturalmente pensou isso, e aceitou todas as conseqüências com os olhos na fortuna; e para ter certeza de que eu era o que supunha, deu-me um nome que só a intimidade podia permitir.

— Isso é ofender-me também, observou Mendonça; eu não pensei semelhante coisa. Falei daquele modo, porque não é fácil ao pé de uma mulher formosa, já considerada noiva, obstar a que os lábios deixem sair uma palavra de ternura.

Branca fechou os olhos.

— Mas, continuou Mendonça, temos um meio de arranjar tudo; retirar-me-ei como vim, e não pensarei mais no assunto em que me ocupo há tantas horas.

A moça abriu os olhos mas não disse palavra.

Mendonça era sincero no que dizia; já aquela aventura lhe pesava, e ele queria sair dali dando ao diabo a mulher e a fortuna.

Insistiu no pedido; a moça murmurou:

— Se o ofendi, perdoe-me. Quanto a sair daqui depois das esperanças que me deu, acho que é crueldade sem nome.

— Crueldade?

— Sim.

— Por quê?

Branca murmurou consigo:

— Não me compreende, não me compreende?

Houve um silêncio. A moça olhava para o chão; Mendonça olhava para ela.

— Não me explicará uma coisa? disse ele.

— O que é?

— Qual a circunstância da sua vida que a impede de achar um marido por simpatia e afeição? Ninguém compreenderá que uma moça formosa e abastada, precise recorrer aos jornais para casar. Há de concordar que pelo menos é inverossímil.

— Contar-lhe-ei tudo quando formos casados.

Nada pôde vencer a obstinação. Mendonça contentou-se com a promessa. Conversaram ainda longo tempo de coisas indiferentes, até que um escravo veio anunciar o jantar.

— Podia convidá-lo para jantar comigo, disse Branca, mas o senhor não poderá sentar-se à minha mesa senão depois que for meu marido.

Mendonça curvou a cabeça.

— Quando deseja que eu volte cá? perguntou ele.

— Todos os dias, disse a moça. E quando começa a tratar dos papéis?

— Imediatamente, murmurou Mendonça.

Saiu o nosso homem aturdido com esta aventura. Durante uma hora vagou à toa pelas ruas, sem saber que resolução tomaria. A riqueza e a beleza de Branca o arrastavam; mas o mistério que havia em tudo aquilo parecia aconselhar prudente abstenção. Vontade de comer não tinha; todavia, quando deram trindades, sentiu o homem que alguma coisa devia mandar ao estômago, e entrou no primeiro hotel que achou à mão.

Comeu pouco e distraído; foi logo para casa, de onde saiu pouco depois. Em nenhuma parte se achava bem. O que ele precisava era um conselheiro que o guiasse naquela extravagante posição. Mas a quem recorreria? Nenhum amigo lhe ficara dos muitos que houve em tempos melhores; lembrou-se do advogado a quem servia; mas teria o rapaz a reflexão necessária para lhe dar um bom conselho?

Nestas dúvidas passou a noite e o dia seguinte. O advogado achou-o extremamente preocupado.

— Que tem o senhor hoje? perguntou-lhe.

— Nada; uma pequena dor de cabeça.

— Vá para casa.

— Não precisa.

O advogado insistiu; Mendonça não cedeu.

Às três horas foi jantar. Durante o jantar pensou muito no acontecimento e procurou sinceramente uma solução ao caso. Não a achou. Estava na sobremesa quando apareceu um conhecido de poucos meses, que lhe parecia ser homem de prudência e bom juízo. Ocorreu-lhe a idéia de lhe pedir conselho; mas ao mesmo tempo refletiu na inconveniência de o fazer diretamente.

Achou o meio já velho de aludir à terceira pessoa. Começou a falar de um amigo, a quem acontecera uma singular aventura, etc. Não lhe ocultou nada.

Como sempre acontece, o ouvinte não se deixou iludir pela forma da oração. Sorriu velhacamente, e não hesitou em dizer que a verdadeira resolução era não voltar à casa da misteriosa moça.

— Para mim é claro que essa moça é uma doida, concluiu o prudente conselheiro.

— Será, retorquiu Mendonça, mas não tem ares disso.

— Não tem ares disso? perguntou o prudente conselheiro; não tem ares de outra coisa; pois que outra coisa é o anúncio, a proposta, o arrufo, o segredo, a hesitação? Diga ao seu amigo que não seja tolo. Não volte lá.

Conversaram neste sentido até à boca da noite; Mendonça ficou convencido de que a moça realmente tinha uma aduela de menos (ou de mais). Não voltou lá nesse dia; mas no dia seguinte continuava a sua preocupação, porque a idéia do dinheiro e da beleza de Branca o não havia deixado durante a noite.

— Se for com efeito alguma doida, pensava ele no dia seguinte de manhã na ocasião em que abotoava o colete, bem pode acontecer que pelo tempo adiante venha a recuperar o juízo. E nesse caso...

Foi distraído para o escritório. Tinha de copiar nesse dia uns embargos e começou uma fórmula de libelo. O advogado sorriu quando viu o engano, sentou-se ao pé dele e disse-lhe:

— Diga-me cá, meu caro Mendonça, que tem o senhor há dois dias? Anda perturbado e distraído. É alguma questão de dinheiro? Fale, que eu sempre valho para alguma coisa.

A franqueza do advogado convidou a franqueza do escrevente. Contou este toda a história do anúncio e da moça.

— E que faz o senhor? perguntou o advogado.

Mendonça deu-lhe as razões de dúvida que tinha a respeito da moça.

— Não seja tolo, disse o advogado; esta moça é simplesmente uma moça romântica. Não perca assim a fortuna que lhe entra por casa; vá ter com ela e arranje o casamento.

— Dá-me este conselho?

— Não lhe dou outro, porque sou seu amigo.

Nessa mesma tarde Mendonça foi à casa de Branca. Achou-a arrufada.

— Por que não veio ontem? perguntou ela.

— Estive doente, disse Mendonça.

A resposta pareceu satisfazer à moça. Mendonça desfez-se nessa tarde em protestos de ternura, o que agradou sumamente à misteriosa anunciante.

Desta vez não se atreveu o nosso homem a usar de nenhum tratamento familiar com medo de ofender a delicada suscetibilidade de Branca. Qual não foi porém o seu assombro quando, estando muito sério diante dela, a moça pespegou-lhe na testa o mais ruidoso, o mais volumoso, o mais furioso beijo que ainda ninguém recebeu?

Mendonça recuou instintivamente; lembrou-se da opinião do seu prudente conselheiro do hotel; pensou que a moça ia ter um acesso de loucura e olhou para a porta.

Branca não pareceu reparar ou desconfiar do gesto e do pensamento de Mendonça. Continuou a conversa com ele como se nada houvesse. Tinha o olhar calmo e dizia coisas de muito juízo.

— Já começou a dar andamento aos papéis? perguntou ela.

— Já, respondeu Mendonça.

Era a segunda mentira que pregava naquela tarde.

— Quando pensa que poderemos casar? continuou ela.

— Daqui um mês.

— Bem.

Daqui em diante não houve da parte de Branca outra qualquer manifestação de ansiedade a respeito do casamento. Mendonça estava extasiado diante dela; mas quando lhe lembrava o ósculo, uma espécie de nuvem lhe cobria o rosto, e ele abanava a cabeça com pena e desespero.

A pena era por ela, o desespero era por si.

— São horas de ir-se embora, disse Branca a Mendonça; amanhã virá mais cedo, sim?

— Sim.

— E tratará dos papéis com a maior celeridade possível?

— Tratarei.

Mendonça pegou no chapéu e aproximou-se da porta.

— Não repare, disse ela no patamar da escada, não repare na manifestação de ternura que lhe dei há pouco.

— Não reparo, agradeço-lha, respondeu Mendonça com um riso amarelo.

— Há de notar em mim certa contrariedade, não lhe parece?

— Qual!

— Não finja, tomou ela batendo-lhe no ombro. Mas quer saber a razão?

— Quero, respondeu Mendonça, sem se lembrar da resposta anterior.

— Bem disse eu que estava fingindo.

— Perdoe-me, tinha razão. Mas diga...

— Amo-o hoje apaixonadamente. O senhor é hoje para mim tudo que posso ambicionar na terra e no céu.

A quem não lisonjeariam palavras tais? Mendonça ouviu-as com susto; primeiramente, ele não acreditava que houvesse uma mulher para quem ele fosse toda a ambição da terra e do céu; depois o tom com que Branca disse aquilo tinha um que de sobrenatural que o afligia. Agradeceu como pôde as benévolas palavras da moça e despediu-se.

No dia seguinte perguntou-lhe o advogado pelo resultado da entrevista.

— Devo perder as esperanças, respondeu Mendonça. É uma doida varrida.

E referiu o que se passou.

— Minha resolução é não voltar lá mais.

Ocorreu-lhe porém ir indagar da vizinhança quem era aquela misteriosa moça.

— Não sei quem é, disse o padeiro da esquina; mora ali há poucos dias; vive encerrada em casa; só duas vezes apareceu à janela; os escravos são discretos.

A resposta do confeiteiro foi idêntica; o taverneiro inclinava-se a crer que Branca era casada e separada do marido. Não pensava assim o carvoeiro que achava na cara da moça visíveis sinais de pertencer a Citera. Esta expressão é tradução do pensamento do carvoeiro que evitou o circunlóquio e a figura.

Nada soube portanto o nosso homem, mas desta vez assentou resolutamente em não voltar lá.

Era corajosa resolução; porque ele já gostava imensamente dela. Correram cinco dias; Mendonça esteve a duas por três a lá ir a casa de Branca; mas conteve-se graças a esta reflexão:

— Por que razão estará guardada para mim tamanha felicidade? Reflexão de desânimo, que nunca entrou na cabeça dos Césares nem dos Rothschilds.

Ao sexto dia apareceu-lhe em casa um moleque com uma carta de Branca. Era toda de recriminações e ameaças. Mendonça prometeu lá ir, e despediu o moleque, não sem tentar obter alguma coisa dele. Mas o moleque pareceu não entender o que ele lhe perguntava.

Nessa tarde preparou-se o nosso homem para ir à casa de Branca: novas esperanças lhe enchiam o coração. Já se amaldiçoava a si mesmo de ter sido tão fraco e irresoluto.

Tudo isto porém foi enquanto não chegou à rua em que morava a misteriosa moça.

Apenas viu de longe a casa, Mendonça hesitou e parou.

— Que triste ambição me leva ali? perguntou ele a si mesmo; que espero eu mais para saber que aquela moça é uma infeliz doida?

Outras perguntas fez iguais a esta. Passou pela porta dez vezes sem ousar entrar. O padeiro e o carvoeiro puseram-se à porta para ver se ele lá entrava; correram assim longos minutos até que Mendonça desistiu da empresa e voltou para casa.

Não recebeu nenhum recado mais. Percorria todos os dias o Jornal do Commercio a ver se encontrava algum anúncio convidando outro marido visto que ele renunciara tacitamente.

Nada achou.

No fim de oito dias estava ele em casa preparando-se para sair, quando sentiu baterem-lhe à porta.

— Quem é? disse ele.

— Abra, respondeu uma voz doce.

Mendonça foi abrir a porta e recuou espantado.

Era ela.

Trajava de preto: estava solenemente bela.

Entrou placidamente sem o menor sintoma de perturbação moral; todavia Mendonça receou uma cena desagradável, e o ato da moça o autorizava a crer nisso.

Preparou-se para acalmar os furores da pobre desprezada que, provavelmente, iam rebentar daí a alguns segundos.

Ofereceu-lhe cadeira, ela recusou.

— Minha demora é pouca, disse ela; venho despedir-me do senhor.

— Eu desejava explicar-lhe...

— Não tem que explicar, atalhou ela com voz melíflua. Eu compreendi que o senhor é um homem fraco, e incapaz de ser coisa nenhuma nesta vida.

— Mas...

— Assustava-o o mistério, continuou Branca impassível. Tinha medo do desconhecido. Nasceu para ser amanuense; recusou a mão que eu lhe dava; nunca sairá do que é hoje.

Mendonça estava aturdido; as palavras da moça entravam-lhe no peito como punhais.

Branca deu um passo para a porta.

— Adeus, disse ela.

Mendonça foi até à porta.

— Mas quem é a senhora que assim me traz atribulado há quinze dias?

— Eu sou a felicidade. Adeus.

E saiu sem olhar para trás.

Mendonça caiu prostrado em uma cadeira.

Meia hora depois saiu de casa apressadamente e foi à casa de Branca. Estava fechada.

Indagou da vizinhança. Todos lhe disseram que a misteriosa habitante mudara-se na véspera. Quando ouviu esta mesma resposta do padeiro da esquina, Mendonça deu uma risada, e perguntou se era possível ver estrelas ao meio-dia, e quantos palmos tinha o nariz do carvoeiro. Em seguida prometeu que mudaria o ministério e convidou o padeiro a dançar o miudinho na rua. Não consentindo o padeiro nesta distração coreográfica, Mendonça propôs-se a transformar o dito padeiro em gaturamo ou macaco. Nessa ocasião chegou o inspetor, que um caixeiro fora chamar; Mendonça seguiu dali para a polícia e da polícia para a Praia Vermelha, onde faleceu há um ano.