Aventuras de Hans Staden (6ª edição)/Capítulo 1

I

QUEM ERA HANS STADEN



DONA BENTA sentou-se na sua velha cadeirinha de pernas serradas e principiou :

— Hans Staden era um moço natural de Homberg, pequena cidade do estado de Hesse, na Alemanha.

— De S? exclamou Pedrinho, dando uma risada. Que engraçado !

— Não atrapalhe, disse Narizinho. Assim como em S. Paulo ha a freguesia de Nossa Senhora do O', bem pode haver o estado de S na Alemanha. Em que o O é melhor que o S?

— Não digam tolices, interrompeu dona Benta. Esse estado da Alemanha escreve-se em Português H, E, S, S, E, e diz-se Hessen em alemão. Nada tem que ver com a letra S.

Depois desta lição dona Benta continuou:

— O moço Staden tinha o temperamento aventureiro e não se contentava com o sossego da cidade natal. Queria ver mundo, viajar, cortar os mares, e insistia nisso por mais que seu pai lhe dissesse que "boa romaria faz quem em casa fica em paz".

Um dia resolveu sair de Homberg.

— "Adeus, meu pai! Não nasci para arvore. Quero voar, conhecer mundo. Adeus !"

— "Pois vai, meu filho. Todos nós temos um destino na vida, e se o teu destino é viajar, que se cumpra".

Hans partiu para a cidade de Bremen e de lá para a Holanda, onde, no porto de Campon, encontrou varias naus que se aprestavam com destino ao reino de Portugal. O moço embarcou em uma delas e chegou a Setubal depois de quatro semanas de travessia.

— Quatro semanas ! exclamou Pedrinho. Que carroça !...

— Naquele tempo de navegação a vela as viagens dependiam dos ventos, sendo porisso incertas e demoradas. Fazia-se em meses o que hoje se faz em dias.

Hans esteve algum tempo em Setubal, com certeza provando o gostoso vinho moscatel que lá fabricam. Depois tomou o caminho de Lisboa. Sua tenção era seguir para as Indias numa das frotas que dali costumavam zarpar.

— Zarpar? interrompeu Pedrinho. Por que fala assim tão dificil hoje, vóvó?

— Não estou falando dificil, Pedrinho. Ha certas expressões que se chamam "tecnicas" e que vocês precisam ir aprendendo. Zarpar se diz quando um navio ou uma esquadra sai dum porto. E' uma expressão tecnica, isto é, de sentido exato.

— Muito bem. Continue. Achou ele navio que o levasse para as Indias?

— Não teve sorte. Hans não encontrou nenhum navio com destino ás Indias. Em vista disso engajou-se como artilheiro num barco do capitão Penteado, que se destinava ao Brasil. Essa nau era mercante, mas ia armada de canhões, como se fosse navio de guerra, e levava ordem do rei para atacar os barcos franceses encontrados pelo caminho.

— Por que isso, vóvó?

— Portugal e França estavam em luta por causa das terras novas descobertas em 1500, e era no mar que justavam contas.

A França julgava-se com tanto direito de explorar essas terras como Portugal, mas tais terras pertenciam a Portugal e Espanha que haviam tomado posse delas antes dos outros. Terra naquele tempo era de quem primeiro a pegava.

Mas a França não concordava com isso e o seu rei nessa epoca, Francisco I, havia dito em certa ocasião:

— "Eu quero que me mostrem o testamento de Adão que repartiu o Novo Mundo entre o rei de Espanha e o rei de Portugal, pondo-me fóra da partilha".

Era por esse motivo que os franceses e portugueses se atracavam no mar, embora não existisse guerra declarada entre as duas nações.

Mas a nau em que ia o nosso Staden partiu de Lisboa, seguida de outra menor, e foi ter à ilha da Madeira, onde já se produzia muito vinho e açucar. Em Funchal, porto da ilha, a frota ancorou para receber viveres. Em seguida tomou o rumo das costas da Berberia.

— Berberia ou Barbaria, vóvó? perguntou o menino. Não quer dizer terra dos barbaros?

— Não, meu filho. Quer dizer terra dos berberes, nome generico dado aos habitantes do norte da Africa. Talvez a palavra berbere venha de barbaro. Os dicionarios têm duvidas a respeito.

Os navios foram ter ao porto de Arzila, cidade que os portugueses tinham tomado aos berberes e que depois perderam.

Por informação de pescadores espanhois o capitão Penteado soubera que andavam por lá navios corsarios, em comercio com esses mouros, e tratou de dar-lhes caça.

De fato encontrou um, e imediatamente o atacou mas a tripulação do corsario teve tempo de tomar os botes e fugir para terra. Os portugueses apossaram-se do navio, encontrando nele grande quantidade de açucar, amendoas, couro de cabrito, goma arabica e tamaras.

— Que gostoso! exclamou Pedrinho, lambendo os beiços. Ele gostava muito de tamara.

— Mas era direito isso, vóvó? indagou a menina.

— Ah, minha filha, a historia da humanidade é uma pirataria que não tem fim; o mais forte, sempre que pode, depreda o mais fraco. Só quando a Justiça fôr uma realidade, em vez de ser um ideal, é que as coisas mudarão de rumo.

A nau vencedora levou a presa para a ilha da Madeira, donde o capitão mandou o navio menor a Lisboa, saber do rei o que devia fazer, visto como parte do carregamento pertencia a espanhois, com quem os portugueses não estavam em guerra.

— Foi o navio a Lisboa só para dar o recado? Imaginem!...

— Que remedio! Não havia outro meio; não era como hoje, que a radiotelegrafia põe os barcos em contacto instantaneo com a terra sempre que é preciso.

Expedido que foi o navio recadeiro a Lisboa, o capitão Penteado voltou para Arzila, na esperança de apanhar nova presa.

Esse calculo falhou. Sobreveio fortissima tempestade, que arrojou a nau a quatrocentas milhas dali, para os lados do Brasil.

— Quantos metros tem a milha, vóvó? indagou Pedrinho.

— A milha varia muito, de país para país. E' medida do tempo dos romanos, entre os quais valia mil passos. Mas como isso de passo cada povo o tem maior ou menor, conforme o comprimento das pernas, ha milhas de 1.069 metros, como a inglesa, e milhas de mais de 8.000 metros, como a hungara. Mas hoje está generalizada a milha maritima de 1.854 metros.

— E' uma danada, esta vóvó! Parece um livro aberto, disse o menino, entusiasmado com a ciencia da velha.

— Continue, vóvó, pediu Narizinho, mais interessada na navegação de Hans do que na elasticidade da milha.

Dona Benta continuou:

— A nau, em vista do avanço que o temporal lhe imprimira no rumo do Brasil, deixou em paz as costas da Berberia e seguíu viagem para as terras de Cabral [1].

Pelo caminho topou grande quantidade de peixes-voadores. Erguiam-se do mar em cardumes, para fugir á perseguição dos peixes maiores; voavam um bom pedaço e iam cair n'agua, muito longe dos seus inimigos. Ás vezes voavam á noite e vinham dar de encontro ás velas e cordas dos navios; de manhã os marinheiros não necessitavam de pescar para o almoço : era só colhê-los no tombadilho. E assim os navios foram seguindo até alcançarem a linha do equinocio.

— Que é isso, vóvó?

— E' o equador, meu filho. Já esqueceu a sua lição de cosmografia?

Chegados ao equador houve um periodo de calma, isto é, sem brisas, de modo que os navios ficaram parados sobre as ondas, com grande padecimento dos marinheiros, em vista do calor sufocante.

Ás vezes trovejava e caiam chuvas violentas; mas a calmaria sobrevinha de novo, enchendo de pavor a pobre maruja, porque o prolongamento daquela situação poderia trazer a todos o mais triste dos fins.

Certa noite de chuva apareceram no costado dos navios muitas luzes mortas, coisa que Staden não tinha visto ainda. Onde batiam as vagas ficava a brilhar uma luz azul. Os marinheiros alegraram-se com o fenomeno, a que chamavam santelmo e diziam ser sinal de bom tempo.

Assim foi. Quando raiou o dia principiou a soprar um vento favoravel, que permitiu ás naus prosseguirem na viagem.

A 28 de janeiro (isso no ano de 1548) avistaram uma ponta de terra, que Hans soube ser o cabo de Santo Agostinho. Mais oito milhas de marcha e finalmente atingiram o porto de Olinda, depois de oitenta e oito dias de mar.

— Pare um pouco, vóvó, pediu a menina. Quero dar um pulo lá dentro para trazer a Emilia. A coitadinha gosta tanto de ouvir historias...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. O Brasil foi descoberto em 1500 pelo almirante português Pedro Alvares Cabral.