XVII

Iracema pousou a mão no peito do guerreiro branco:

— A filha dos tabajaras já deixou os campos de seus paes; agora póde fallar.

— Que guardas tu em teu seio, virgem formosa do sertão?

Ella pôz os olhos cheios no christão:

— Iracema não póde mais separar-se do estrangeiro.

— Assim é preciso, filha de Araken. Torna á cabana de teu velho pae, que te espera.

— Araken já não tem filha.

Martim tornou com gesto rude e severo:

— Um guerreiro de minha raça jámais deixou a cabana do hospede, viuva de sua alegria. Araken abraçará sua filha, para não amaldiçoar o estrangeiro ingrato.

A virgem pendeu a fronte; velando-se com as longas tranças negras que se esparsião pelo collo, cruzando ao gremio os lindos braços, recolheu em seu pudor. Assim o roseo cacto, que já desabrochou em linda flôr, cerra em botão o seio perfumado.

— Tua escrava te acompanharã, guerreiro branco; porque teu sangue dorme em meu seio.

Martim estremeceu.

— Os máos espíritos da noite turbarão o espirito de Iracema.

— O guerreiro branco sonhava, quando Tupan abandonou sua virgem, porque ella trahio o segredo da jurema.

O christão escondeu as faces á luz.

— Deus!.. clamou seu labio tremulo.

Permanecerão ambos mudos e quedos.

Afinal disse Poty:

— Os guerreiros tabajaras despertão.

O coração da virgem como o do estrangeiro, ficou surdo á voz da prudencia. O sol levantou-se no horisonte; e seu olhar magestoso desceu dos montes a floresta. Poty de pé como um tronco decepado esperou que seu irmão quizesse partir.

Foi Iracema quem primeiro fallou:

— Vem; emquanto não pisares as praias dos Pytiguaras, tua vida corre perigo.

Martim seguio silencioso a virgem, que fugia entre as arvores como a selvagem acoty. A tristeza lhe roia o coração; mas a onda de perfumes que deixava na brisa a passagem da formosa tabajara, açulava o amor no seio do guerreiro. Seu passo era tardo, o peito lhe offegava.

Poty scismava. Em sua cabeça de mancebo morava o espirito de um abaetê. O chefe pytiguara pensava que o amor é como o cauim, o qual bebido com moderação fortalece o guerreiro, e tomado em excesso abate a coragem do heróe. Elle sabia quanto veloz era o pé do tabajara; e esperava o momento de morrer deffendendo o amigo.

Quando as sombras da tarde entristecião o dia, o christão parou no meio da mata. Poty accendeu o fogo da hospitalidade. A virgem desdobrou a alva rêde de algodão franjada de pennas de tucano e suspendeu-a aos ramos da arvore:

— Esposo de Iracema, tua rêde te espera.

A filha de Araken foi sentar-se longe, na raiz de uma arvore, como a cerva solitaria, que o ingrato companheiro afugentou do aprisco. O guerreiro pytiguara desappareceu na espessura da folhagem.

Martim ficou mudo e triste, semelhante ao tronco d'árvore á que o vento arrancou o lindo cipó que o entrelaçava. A brisa perpassando levou um murmurio:

— Iracema!...

Era o balido do companheiro; a cerva arrufando-se ganhou o doce aprisco.

A floresta destillava suave fragrancia e exhalava harmoniosos arpejos; os suspiros do coração se deffundirão nos murmures do deserto. Foi a festa do amor, e o canto do hymeneo.

Já a luz da manhã coou na selva densa. A voz grave e sonora de Poty repercutio no sussurro da mata:

— O povo tabajara caminha na floresta!

Iracema arrancou-se dos braços que a cingião e mais do labio que a tinha captiva; saltando da rede como a rapida zabelê, travou das armas do esposo, e levou-o atravez da mata.

De espaço á espaço, o prudente Poty escutava as entranhas da terra; sua cabeça movia-se pesada de um a outro lado, como a nuvem que se embalança no cocuruto do rochedo, aos varios lufos da proxima borrasca.

— O que escuta o ouvido do guerreiro Poty?

— Escuta o passo veloz do povo tabajara. Elle vem como tapyr rompendo a floresta.

— O guerreiro pytiguara é a ema que vôa sobre a terra; nós o seguiremos, como suas asas; disse Iracema.

O chefe sacudio de novo a fronte:

— Emquanto o guerreiro do mar dormia, o ennemigo correu. Os que primeiro partirão já avanção além como as pontas do arco.

A vergonha mordeu o coração de Martim:

— Fuja o chefe Poty e salve Iracema. Só deve morrer o guerreiro máo, que não escutou a voz de seu irmão e o pedido de sua esposa.

Martim arripiou o passo:

— A alma do guerreiro branco não escutou sua boca. Poty e seu irmão só tem uma vida.

O labio de Iracema não fallou; sorrio.