O major Vidigal, vendo-se logrado, deu urros; e, como já fizemos sentir aos leitores, prometeu a si mesmo tomar séria vingança do Leonardo.

— Ora, dizia ele consigo, gastar meu tempo nesta vida, gastar os meus miolos a pensar nos meios de dar caça a quanto vagabundo gira por esta cidade, conseguir, à custa de muitos dias de fadiga, de muitas noites passadas sem pregar olho, de muita carreira, de muito trabalho, fazer-me temido, respeitado por aqueles que a ninguém temem e respeitam, os vadios e peraltas; e agora no fim de contas vir um melquetrefezinho pôr-me sal na moleira, envergonhar-me diante destes soldados e de toda esta gente! Agora, não há garoto por aí que, sabendo disto, não se esteja a rir de mim, e não conte já com a possibilidade de me pregar um segundo mono como este!...

O major tinha razão: riam-se com efeito dele; e os primeiros que o faziam eram os granadeiros. Apesar de que, escravos da disciplina, empregavam os mais sinceros esforços para coadjuvá-lo; e apesar também de que revertia para eles alguma glória das façanhas do major, não puderam entretanto deixar de achar graça no que acabava de suceder, pois conheciam a presunção do Vidigal, e repararam na cara desapontada com que ele havia ficado. Depois, apenas o major pôs pé fora da soleira da casa onde lhe tinha escapado Leonardo, uma multidão imensa que tudo havia presenciado desatou a rir estrondosamente.

— Então, Sr. major, dizia-lhe um dos da turba, desta vez.


Passarinho foi-se embora,
Deixou-me as penas na mão.


— Sr. major, dizia outro, procure nos bolsos.

— Dentro da barretina, emendava outro.

— Atrás da porta, replicava aquele.

E um coro de risadas acompanhava cada um destes conselhos.

— Lá está o bicho dentro da cadeirinha! gritou um repentinamente. O Vidigal, como que instintivamente, correu à cadeirinha e abriu-lhe as cortinas.

Nessa ocasião as risadas foram homéricas: o major compreendeu então qual fora o meio por que lhe escapara o Leonardo, e soltou um-ah!-prolongadíssimo. Enfim retirou-se acabrunhado, e ruminando projetos para sua reabilitação.

— Se aqueles rapazes da Conceição, dizia consigo o Vidigal, que me foram levar a nota do tal malandro, me tivessem avisado que ele era desta laia, eu não teria passado por esta imensa vergonha.

Por estas palavras vêem os leitores que as imputações da Vidinha contra os primos tinham mais que muito fundamento. Com efeito, o que se acabava de passar não era senão o resultado do ajuste que no dia da grande briga, por aquele motivo que o leitor bem sabe, haviam feito os dois rivais: tinham eles malsinado ao Leonardo. Foram ter com o Vidigal, e sem precisar mentir armaram ao Leonardo uma cama muito bem feita: era um homem sem ofício nem benefício, vivendo à custa alheia, enchendo de pernas a casa de duas mulheres velhas, a quem não tinha aproveitado a experiência, e, o que é mais, roubando aos primos o amor de sua prima.

O Vidigal regalara os olhos ouvindo a narração, e ficara muito agradecido aos dois rapazes pela nova que lhe levaram: era mais um pendão que ia juntar aos louros de suas façanhas policiais. A primeira tentativa custou-lhe porém bem caro.

Eis aqui pouco mais ou menos as reflexões em que o major ia engolfado:-Nada lhe seria mais agradável do que dia mais dia menos, quando ninguém pensasse em tal, acompanhado de uma escolta de granadeiros, dirigir-se à casa das duas velhas, cercá-la, e pilhar o Leonardo sem que lhe pudesse escapar. isto porém repugnava ao seu orgulho ofendido. Muitas vezes se tinha, é verdade, servido desse meio, porém fora isso para poder pilhar a capadócios de longa data, tidos e havidos como tais, e velhos no ofício. Não queria pois servir-se do mesmo meio para agarrar um recruta no ofício, que ainda agora começava. Nada, tal não fazia; não havia fazer cerco, e o que é mais, não queria de modo algum o adjutório dos granadeiros; jurava a si mesmo que ele sozinho, sem o apoio de ninguém, havia de pôr a mão no Leonardo.

Ia o Vidigal entrando na casa da guarda, para onde se dirigia, depois da derrota, quando sentiu-se repentinamente agarrado pelas pernas, e viu a seus pés uma mulher de mantilha, que chorava, soluçando muito, com o lenço no rosto.

— Que é isto, senhora? Deixe-me. Ora isto hoje é dia de má sina.

Continuaram os soluços por única resposta.

— Senhora, deixa-me ou não as pernas? Eu não gosto de carpideiras... entende?

Soluços ainda.

— Ora não está má esta... Se lhe morreu alguém, vá chorar na cama, que é lugar quente.

Redobrou o pranto.

— Valham-me trezentos diabos!... Quando é que isto terá fim?... Esta mulher acaba por atirar-me no chão...

Estava já muita gente junta na porta.

Passado finalmente um pouco de tempo em silêncio, quando já o major estava disposto a empregar alguma medida de rigor para ver-se livre da carpideira, esta ergueu a cabeça, e tirando o lenço da cara exclamou entre lágrimas:

— Sr. major, solte, solte por quem é meu afilhado, solte, solte o pobre rapaz; ele é um doido, é verdade, mas...

E os soluços lhe embargaram muito a propósito a voz.

Era a comadre que, tendo sabido da prisão do afilhado, viera fazer em seu favor aquela choradeira, ignorando que ele se tivesse evadido. A cena produziu o efeito esperado. Os granadeiros, de cada vez que a comadre dizia-solte, solte-desatavam a rir; tendo por boca pequena explicado tudo aos demais circunstantes; estes os acompanhavam.

O major tomou tudo aquilo como um escárnio que o gênio da vadiação e do garotismo lhe fazia: era mister que ele, para ver-se livre da comadre, que não lhe largava os joelhos, declarasse por sua própria boca, diante de toda aquela gente, que o Leonardo havia fugido! Declarou-o, e fugiu de todos aqueles olhares, em cada um dos quais via um insulto.

A comadre, apenas ouviu a declaração, tratou de retirar-se, e não pôde também deixar de achar graça no caso.