Bogoloff vivia ainda na casa de Lucrécio Barba-de-Bode. Esperava este que o seu partido subisse para colocar convenientemente o doutor russo. A sua esperança era cega; tudo marchava para tal desenlace. O velho presidente resignara o poder e o seu substituto subira à presidência hipotecado aos partidários de Bentes. A população não podia compreender aquele desmoronar de castelo de cartas; não entendia que o governo, pelo seu mais poderoso representante, estivesse assim exposto a uma despedida tão ultrajante; não atinava com o motivo por que um dos seus ministros se pusera, de instante para outro, em franca rebeldia contra o presidente; e não atinava por que a explicação não podia ser achada senão com o exame vagaroso dos detalhes.

Com os novos governantes, o pavor do começo transformou-se em uma falsa alegria de encomenda. Os jornais pululavam; nasciam e morriam, com a publicação do retrato do herói; os ágapes, os banquetes eram diariamente anunciados, telegramas e cartas congratulatórias eram publicadas, e poliantéias e biografias. Pelino Guedes fazia discípulos e eram legião. Todos riam-se, mas riam falso. Um riso de prostitutas em orgia sesquipedal. Houve a indústria das manifestações e Lucrécio aproveitou muito com ela, enquanto os seus serviços não eram encaminhados mais eficazmente. Havia necessidade de fazer crer que o povo, que a opinião desejava ardentemente a emissão do Messias nas rédeas do Estado, e o povo faz-se, graças à necessidade, graças à ilusão do Estado e à simplicidade dos esmagados.

Bogoloff pode ganhar algum dinheiro, escrevendo artigos para jornais de pouca vida; meteu-se aos poucos no torvelinho dos que se agitavam à espera do reino dos céus que Bentes vinha realizar sobre a terra; e o populacho, as crianças e mulheres sobretudo, fossem de que condições fossem, viam a agitação daqueles possessos como mau agouro. Essa gente não quer coisa boa; parece que tem o tinhoso no corpo, diziam.

A mulher de Lucrécio não se cansava de dizer-lhe: "Toma cuidado, Lucrécio; esse homem não é bom. Olha o que ele fez com o "velho"...

Lucrécio não ouvia a mulher, mas estremecia com a lembrança dela e fazia fugir a má profecia com argumentos tirados dos jornais da situação. O russo não se entusiasmava; vivia e por viver foi que prometeu ir à manifestação que se fazia a Neves Cogominho naquela noite.

Inácio Costa, com quem travara conhecimento, era presidente da comissão e dissera:

— Doutor! Não deixe de ir! Precisamos acabar com os conselheiros, com o tartufismo deles... A sã política é filha da moral e da razão... Vá! Há bondes especiais.

Ele começava a conhecer as atividades políticas, os seus bastidores, as suas retortas de fantásticas transformações.

Essas presenças, essas atenções, enfim, esse ritual de salamaleques e falsas demonstrações de amizade influem no progresso da vida política. Como havíamos de subir, ou pelo menos de manter a posição conquistada, se não fossemos sempre às missas de sétimo dia dos parentes dos chefes, se não lhe mandássemos cartões nos dias de aniversário, se não estivéssemos presentes aos embarques e desembarques de figurões? Fora daqui as notícias desses atos têm grande repercussão e infinito alcance; e, de resto, às vezes, um bota-fora decidia uma reeleição. Vejam só o que aconteceu com o Batista. Estava nas boas graças do Carneiro; mas, no dia do embarque deste para Pernambuco deixou de ir. Carneiro notou e quando Bandeira quis incluí-lo de novo na chapa opôs-se tenazmente.

Os chefes não admitem independência, nem mesmo aos embarques. Os pequenos presentes mantêm as amizades; mas, na política, não são só os presentes que mantêm as relações; é preciso que os poderosos sintam que gravitamos em torno deles, que nenhum ato íntimo de sua existência nos é estranho, que o natalício dos filhos, o aniversário de casamento ou formatura se refletem no movimento e como que perturbam a órbita da nossa vida.

Numa, que sabia bem disso tudo, foi alma das muitas manifestações que se realizaram naquela época. Sempre tivera a visão nítida desse feitio da vida política; nunca a vira pelo lado épico ou lírico, e estava no seu elemento. Concebera a existência chãmente e, graças a essa concepção estava seguro na vida, rico pela fortuna da mulher e tratava de segurar-se quanto à parte de deputado.

Desde menino, sentira bem que era preciso não perder de vida a submissão aos grandes do dia, adquirir distinções rápidas, formaturas, cargos, títulos, de forma a ir se extremando bem etiquetado, doutor, sócio de qualquer instituto, acadêmico ou coisa que o valha, da massa anônima.

Era preciso ficar bem endossado, ceder sempre às idéias e aos preconceitos atuais. Esperar por uma distinção puramente pessoal ou individual era tolice! Se o Estado e a Sociedade marcavam meios de notoriedade, de fiança, de capacidade, para que trabalhar em obter outros mais difíceis, quando aqueles estavam à mão e se obtinham com muita submissão e um pouco de tenacidade?

Era preciso dominar e, na sua espessa mediocridade, esse desejo guiava todos os sentimentos e matava outra qualquer veleidade mais nobre.

Qual o alcance das manifestações com que os detentores da política contraminavam os ataques dos seus prováveis adversários, naquela hora de muitos enganos. Numa viu claro e organizou a que se fez ao sogro, com tal jeito, que ninguém suspeitaria da sua ação preponderante nela. Inácio Costa, aliado de Salustiano, sequioso de aparecer, de fazer gravar o seu nome na memória de Bentes, não trepidou em ir ao encontro das suas tenções; e, sem que o deputado lhe desse a mínima ordem, fez-se presidente da comissão organizadora, obteve os fundos num Ministério complacente e o público indispensável para as aclamações.

A homenagem a Neves Cogominho foi anunciada nas folhas com grande gasto de palavras campanudas. O Diário Mercantil , o jornal de Fuas Bandeira, publicou-lhe o retrato num "cliché" de cerca de página e um artigo de Quitério Barrado mostrava perfeitamente a paridade que havia ente o senador de Sepotuba e o Coronel da Guarda Nacional americana Heatgold, caçador de onças e celebridade do momento. Quitério tinha gostos de Plutarco, mas de Plutarco atual; e procurava sempre estudar a vida dos poderosos em evidência, pondo em paralelo a de outros poderosos também em evidência. Neves nunca houvera caçado onças, a não ser nos arredores de Petrópolis, quando tomou parte numa partida venatória do fidalgo Clube do Santo Huberto.

A nobreza da cidade de Piabanha, nobreza bem documentada por um d'Hozier ignorado, resolvera reunir-se para dar pasto ao aristocrátias por um capoeirão de carvoeiro dos arredores. Não houve cão vagairos, veadores e mais trem de caça grossa partiam a montear javard; e, fincando as esporas, foi esperá-lo na trilha que as trombetaso que havia matado um bezerro complacente que uma mascara adrede transformara em onça.

Há nas antigas crônicas de caça narrativas da intromissão de gênios malfazejos para operar tão estranhas transformações; mas, daquela vez, não foram eles e sim a cautela e a prudência dos organizadores da partida para atender à falta absoluta da onça adequada.

Essa proeza de Neves foi notada e ele não a quis repetir para que não houvesse o desencanto. Cogominho era homem sério, cheio de responsabilidades do seu cargo, silencioso, olhava com doçura e segurança, e não lhe parecia bem arriscar-se assim aos dentes das feras - ele que esperava ocupar a presidência para a felicidade do país.

De resto, ganhara corpo, o ventre lhe crescera e junte-se tudo isso ao masolucos, para se ver como ele era impróprio para montar a cavalo e repetir aquela proeza cinegética. Quitério, que tivera notícias dela, não a esquecera no seu artigo e foi a paridade encontrada por ele muito gabada pelos entendidos em psicologia, filosofia, semântica e escrituração por partidas dobradas.

O palacete do senador, inteiramente aberto e iluminado, fulgia no fundo do longo jardim. Perdidos na massa escura dos canteiros, glóbulos elétricos multicores brilhavam amortecidos, abafados.

As pessoas mais chegadas, os chefes políticos e os seus subordinados, os admiradores e os últimos amigos já lá estavam esperando a manifestação.

Erravam pelas salas da casa os nomes mais em evidência na política nacional e seus asseclas. Até o Clodoveu Rodrigues que se julgava um futuro oposicionista, lá estava. Era curioso esse Clodoveu, no físico e no moral. Muito alto e esguio, tinha um semblante triste e pensativo. O seu longo nariz de corte aquilino, não fazia lembrar uma águia, mas uma cegonha, em postura meditativa de estampa, à qual houvessem cortado uma grande porção do bico.

Rico, talvez, solteiro, cheio de dourados e posições, de filigranas e enfeites, temia as aventuras amorosas do seu mundo. Fosse por timidez natural ou medo do comprometimento, o certo é que não se murmurava nada a respeito de sua atividade sentimental. Ia à Citéria cautelosamente...

Na sua concentrada tristeza, havia algum mistério de coração, que não tomava a proporção de um cínico desafio às convenções e aos preceitos, porque o deputado abafava o homem.

A presença de Clodoveu ali causava certa surpresa, pois as suas ligações com o presidente descaído obrigavam-no a ficar na oposição; no entanto, ele passeava de uma sala para outra, lentamente, fleumaticamente, pachorrentamente.

Lá estava também o J. F. Brochado, um curioso tipo de político, como quase todos os da sua raça, seco d'alma, mas, como pouco deles, agitado a fazer praça de honesto, tendo sempre uma cauda de bajuladores, ariturários, engenheiros e carimbadores, conforme fosse o momento, a ocasião, a vaga, sem atender a saber ou o que quer que fosse.

Seguia-o sempre o seu amado secretário, uma múmia peruana, untada de pinturas e a enxergar por uns óculos negros, sombra que não o deixava um único instante. Era poeta de modinhas e orador hilariante.

Havia também o Carlos Salvaterra, senador, homem lido e inteligente, mas escravo da política e escondendo em caprichos de "toqué" a escravatura que pesava na sua consciência.

Seria difícil não encontrar ali Fuas Bandeiras. Ele lá estava com sua careca lustrosa e o seu ar atrevido de pirata argelino, a sugar o seu indefectível charuto. Ele era curto e atarracado como, em geral, os caprinos portugueses.

Alem destes, também lá se encontravam o General César Japuí, um crente do nosso misticismo militar, convencido de que a sua qualidade de general, unicamente ela, dava-lhe capacidades superiores de governo e administrador; o Sarmento Heltz, fino e cauto, que todos naquele meio julgavam precioso e raro como uma raposa polar; o gordo Pieterzoon, o deputado Costale, mais conhecido por Xandu, que andava sempre à cata do emprego de ministro. o general Forfaible, o senador Macieira e outros mais. Muitos tenentes.

Numa providenciava; e Quitério, o autor do epinício do Diário , não parava em grupo algum. Desenterrava o pescoço da caixa óssea, e partia deste para aquele, dizendo aqui isto, ali aquilo, saltitando, como um tico-tico à cata de migalhas.

Souza conversava com Numa. Este Souza tinha uma reputação suspeita. Diziam que o seu ofício consistia em evitar que os nossos jupiterzinhos políticos tivessem o trabalho de se transformar em cisnes, em chuva de ouro, como o do Olimpo grego. Entrava, porém, em toda a parte, nas principais salas e era ele agora que conversava com Numa, informando-o quem era aquela interessante pessoa.

— Não conheces? É um rapaz de muito talento...

— Esses talentos...

Numa não gostava dos talentos, não os invejava; não gostava mesmo, achava-os prejudiciais à vida, fracos para obter a mínima coisa, orgulhosos e exigentes e, como que a perturbar a existência dos felizes, com a atenção que se devia a eles.

— Não gosta dos talentos? - perguntou Souza, que tratava assim, intimamente, a maioria dos políticos.

— São muito pretensiosos, não se submetem a ninguém e não amam ninguém.

— Quem ama alguém?... Aquele que estás vendo sempre disposto a submeter-se. Muda de donos, mas se submete... - observou o deputado Barbosa, que se aproximava.

Numa não insistiu com o colega de bancada. Ele o sabia mordaz na familiaridade, fácil em aguçadas ironias e encarniçado no cinismo resignado. Fora eleito porque, tendo publicado um trabalho histórico de valor, Neves quisera mostrar que a sua oligarquia sabia aproveitar os talentos humildes. Era líder da bancada, em que havia um tio de Cogominho, um cunhado, ele, Numa, genro, e outros que não eram propriamente parentes. Barbosa eleito, julgou que o melhor meio de manter a posição era apagar-se completamente e assim o fez.

Numa afastou-se e procurou outras rodas.

A manifestação não chegava e aquela gente fina ansiava pela sua chegada e a sua dissolução, para que ficassem à vontade, longe da presença daqueles vagabundos que deviam compô-la.

Quando Numa se aproximou de Xandu, esse dizia a Bogoloff:

— Meu caro Doutor, se eu for ministro, creia que hei de aproveitá-lo convenientemente. A República precisa de sangue novo. Veja só os Estados Unidos... Não acha, Dr. Numa.

— Perfeitamente.

Costale, o Xandu - como era conhecido entre os políticos - julgava-se ianque e isto por dois motivos: por falar muito depressa e usar o bigode raspado, moda que pode ser romana ou napoleônica.

Desde muito que o casarão do velho Gomes não era aberto assim de par em par e não recebia tanta gente. Neves sempre fora parco em recepções e não gostava das grandes, em que uma multidão se move em suas salas, quase sempre de desconhecidos. Sua tia, D. Romana, gostava desse aspecto da vida familiar e tinha a simplicidade roceira de receber quem quer que fosse prazenteiramente.

A sua velhice adiantada, porém, fizera espaçar aos poucos os grandes bailes do poderoso político; ficaram raros, até mesmo quase suprimidos depois do casamento de Numa.

A velha D. Romana, com a volta naquele dia, do esplendor da antiga morada, remoçou, tornou-se ativa e não cessava de ir de uma sala para outra, perscrutando os desejos dos convidados. A neta conversava com algumas amigas, sem deixar o lugar que ocupara logo em começo. Procurava sopitar a impaciência com que esperava a chegada dos manifestantes, mas D. Celeste adivinhara-a e observou:

— É mesmo uma maçada, minha filha. A política - que coisa! Você deve ter gasto muito!

— Alguma coisa!

— Eu é que não queria receber dessas manifestações - dão no bolso! Todo o mundo quer ser político. É porque não sabem quanto custa.

Mme. Costale, esposa do Xandu, aventou por aí:

— Tudo é assim, D. Celeste: visto de fora é muito fácil, mas cá do lado de dentro é que são elas... Xandu, só em "facadas" gastou o ano passado um terço do subsídio... Pensam que os políticos ganham muito, mas é um engano.

— Ganham alguma coisa - disse D. Celeste - mas gastam muito. E as manifestações?

— Cada profissão - disse Mme. Forfaible, - tem os seus espinhos e não são só os políticos que ganham pouco. Meu marido...

— Sim - disse Mme. Costable - seu marido não tem que lidar com tanta gente.

— É o que me aborrece! - disse D. Celeste. - Que caras! Não sou nenhuma rainha, mas suportar gente tão mal vestida... Qual! É demais!

— Edgarda - disse Mme. Forfaible - é que não se aborrece.

— Eu - acudiu a mulher de Numa - não os aborreço, nem os estimo; suporto-os e os acho necessários.

— Pois olha, Edgarda - fez a esposa de Xandu, - se eu pudesse...

— Que é que fazia? - perguntou Mme. Forfaible.

— Mandava tudo para o Acre.

— E quem elegia o marido de você? - indagou, sorrindo, Edgarda.

— Quem?

— Isso não é preciso - disse Mme. Forfaible. - Deviam ser nomeados. Os generais não são?

— Mas os generais - refletiu Edgarda, não são representantes da Nação.

— Você diz isso, porque não é casada com um general... Quem vai para a guerra? O que é mais difícil: falar na Câmara ou ir para a guerra? O Manoel tem mais serviços que muitos, entretanto ainda não foi para o Supremo. É verdade! Quem ficará na guerra, Edgarda?

— Não sei. Por ora...

— Eu sei; o Chaves ficou provisoriamente. Mas quem vai? D. Celeste sabe?

— Não sei. Quem vai para o Ministério é cá o marido da minha amiguinha... E apontou o leque para Mme. Costale.

— Ora! - fez ela com um riso chocho. - Dizem isto há tanto tempo.

— Agora vai - confirmou Edgarda.

— Você é bem feliz - disse Mme. Forfaible; - meu marido é que não arranja nada. Não tem sorte.

Com a resignação do presidente, houve grande mudança nos altos cargos políticos; essa mudança, porém, não se deu imediatamente. O substituto, temendo não satisfazer todos os seus amigos, insistira para que os antigos detentores ficassem. Poucos aceitaram e assim mesmo interinamente, para não criar tropeços ao novo governo. Davam-se vagas e era uma dificuldade preenchê-las. Acontecia que nem sempre o candidato de Bastos era de Bentes; e, às vezes, o de Bastos era inimigo de Bentes e o de Bentes era inimigo de Bastos, coisa vulgar. Um único obteve a concomitância dos dois poderosos padrinhos, fora Xandu, que estava à espera do antigo deixar a pasta para ocupá-la. Quanto à de chefe da polícia, o novo executivo reservara a nomeação para si. Escolheu entre os seus amigos um velho compadre roceiro, arruinado, que precisava dos proventos do cargo para resgatar hipotecas. Era o Dr. José Dias Chaveco, mais conhecido por Juca Chaveco que, naquele instante, expunha a Bogoloff as suas doutrinas policiais.

— Quá retrato, doutô ! Quá nada! Se arguém viu, o marvado pode sê preso, mas se não viu - quá ! só se outro vié contá.

Bogoloff tinha há pouco tempo entrado no convívio daqueles homens todos; mas era tal a sua flexibilidade, a sua maleabilidade de espírito, que lhes inspirava confiança, merecia-lhes consideração e ele, em troca, os tratava com um digno respeito.

A Chaveco, havia-lhe falado em processos modernos de investigação, mas o chefe da polícia tinha a respeito idéias simples de delegado da roça. Deixou-o e foi ter ao grupo em que falava Neves Cogominho. No momento, a conversa era conduzida por Macieira Galvão. Tinha andado este deveras atrapalhado com a posição que devia tomar na política; tendo querido que o presidente, por um dos seus ministros, demitisse um funcionário e nomeasse um seu parente, não fora satisfeito e pensou em declarar-se oposição; mas não o fizera francamente, mandando que um dos seus deputados o fizesse. O seu jogo fora pressentido e denunciado. Para disfarçar o insucesso, resolveu afastar-se, fazendo-se eleger governador de Palmeiras.

— Eu bem vi - dizia ele - que o "velho" não ia... não nos queria atender. Foi isso que se viu.

Fuas Bandeira confirmou:

— Era de uma teimosia de criança... Vejam só este caso da Estrada de Mato Grosso... Não prejudicou as finanças?

Numa acrescentou:

— Ele se havia fossilizado nos processos imperiais da política. Há necessidade de vistas novas.

Fuas ia perguntar com jeito, alguma coisa, sobre as tais vistas novas na política, quando Pieterzoon veio interrompê-los. Bandeira era inculto e a sua leitura ia pouco além dos jornais; mas diariamente saudava este ou aquele mais ilustrado e calcava seus imponentes artigos nas opiniões deles, falando de Darwin, de finanças e economia política e outras coisas de que nada sabia. Ele, como toda a gente, julgava Numa ilustrado e estudioso e estava disposto a surripiar-lhe algumas opiniões sobre a nova política, quando o deputado Pieterzonn cortou-lhe as vazas, perguntando ao colega:

— Numa, você ainda não disse nada sobre o caso do Espírito Santo?

— Não é preciso.

— Como não é preciso? - fez Fuas; - vejam só o ataque do Salomão. É preciso tirar-lhe os dentes.

— Frases! Frases! - disse hamleticamente Xandu.

— Não penso assim - considerou Macieira; - não se deve desprezar os ataques dessa maneira. Fazem eco e somos prejudicados.

Neves Cogominho também era do mesmo parecer, mas Xandu observou peremptoriamente:

— Prefiro a ação às palavras.

Pieterzoon contradisse risonho:

— Mas caro Xandu, a nossa ação são as palavras.

— Por isso estou deslocado.

— Mas não está Numa, que falará. Não acha útil, Dr. Cogominho?

— Com toda a certeza, apesar dos horizontes se esclarecerem.

A conversa ainda demorou algum tempo até que se ouviram os primeiros compassos da banda militar que puxava a manifestação. Senhoras e cavalheiros vieram colocar-se na sala principal; alguns nos vãos das janelas, outros nas portas de comunicação; e Neves ficou em um dos ângulos da sala, ao centro de um grupo de senhoras e cavalheiros. O seu corpo alentado e a sua aura dominavam tudo; e ele punha as mãos sobre o ventre, esperando pacientemente. Ao lado direito tinha a filha e o genro; à esquerda Mme. Forfaible, cor de cera, alta, modelada em "grande tênue", com o olhar de batalha que o marido não tinha. Mme. Celeste Galvão ficara atrás com medo dos manifestantes e pudera dizer à velha D. Romana, quando foi tomar lugar à esquerda do sobrinho:

— Amanhã é que são elas! Copos furtados, "bibelots", jardins estragados... Qual! Esta política!

Os admiradores de Cogominho penetraram no jardim:

— Viva! Viva o senador Cogominho! Viva!

E a banda a todo pulmão, repenicava um dobrado entusiástico e cadenciado; as lanternas venezianas, nas pontas das canas, dançavam; e tudo parecia uma longa cobra fosforescente e musical que rastejava para o palacete. Viva o senador Cogominho! Viva! Viva o general Bentes!... A multidão vinha premida na estreita alameda principal do jardim; as lanternas venezianas dançavam na ponta das canas... Viva o senador Cogominho! Viva! Viva o senador Bastos! Viva! Viva! Queimavam fogos de bengala... Viva! Viva!

A cabeça sonora atingia a escada de pedra, afastou-se a música para o lado; cindiu-se do corpo, que coleando subiu até o salão de recepção.

Inácio Costa, suando, lenço ao pescoço, fungando o seu teimoso defluxo, vinha à frente, berrando, agitando o chapéu, bem junto de Canto Ribeiro, celebridade dos "meetings" e manifestações, tipo da cidade, renitente orador, cuja oratória consistia em berrar as mais gastas chapas do Orador Popular . Era também empreiteiro de manifestações, e, como todo o empreiteiro que se preza, tinha o seu pessoal adestrado. Além de um núcleo forte de bravos, possuía a seu serviço moços limpos; estudantes, pequenos empregados, aspirantes a empregos - gente iludida com promessas de lugares e promoções.

Havia em Canto Ribeiro um pouco de especulação e muita sinceridade. Supondo-se orador, julgava-se com um alto destino político e não pelejava ser orador de praças públicas, para abrir caminho até aos altos cargos políticos.

A sua oratória era feita de berros, de mugidos e rugidos; e, além de qualquer apuro literário, faltava-lhe também uma voz musical, numerosa, com inflexões.

Barba-de-Bode tratou de colocar os admiradores do melhor modo. A sala era vasta, mas não pode conter todos os manifestantes. Uma grande parte ficou pela escada e pelo jardim.

Havia ali de toda a gente; pobres homens desempregados, que vinham até ali ganhar uma espórtula; vagabundos notáveis, entusiastas ingênuos, curiosos e agradecidos; todas as cores. Os vestuários eram os mais engraçados e inesperados. Havia um preto com uma sobrecasaca cor de vinho, calçado com uma bota preta e outra amarela; um rapaz louro, com umas calças bicolor, uma perna preta e outra cinzenta; fraques antediluvianos, calcas de cáqui, blusas, dólmãs, coletes sarapintados.

Vendo essa gente miserável, degradada física e moralmente, tão contentes com a política, parecia que ela não tinha por fim fazer os povos felizes...

Os admiradores comprimiram-se, os móveis foram arredatos e Canto Ribeiro começou a falar. Durante vinte minutos, expectorou as mais sórdidas banalidades sobre a república e a pátria.

Elas tiveram, porém, o grande e esperado efeito de comover Cogominho, Numa, as senhoras e provocar a inveja de Quitério, que devorou o orador com seu olhar miúdo. Havia-lhe no olhar também admiração pela torrente de banalidades que Canto repetia e adivinhava-se que Quitério dizia de si para si: Ah! Meu Deus! Como ele fala bem!

Inácio Costa tomou a palavra, e, em nome da comissão organizadora, disse:

"Minhas senhoras, meus senhores. O digno senador Neves Cogominho tira da civilização contemporânea a dedução do estado político que mais lhe convém para a sociedade. Segue nesse ponto desprezando a metafísica de Platão e o teologismo de Maistre, um sistema assemelhado ao de Rousseau."

Houve alguns pigarros indiscretos na sala, mas Inácio continuou impavidamente, chegando a este curioso trecho:

"Sua individualidade una e perfeita não tem limites "extremos", destes que estes terminam, em relação a um aspecto, onde começam quanto a um outro."

Uma moça bocejou no silêncio profundo da sala; e Costa, mais seguro de si, continuou:

"E, na grandeza incomensurável da promiscuidade de suas feições, sentindo a visão mística das coisas, apostolando uma fé inabalável na República, Neves Cogominho aparece com a auréola do - O MAIS DIGNO."

Canto Ribeiro berrou fortemente — Apoiado! Inácio Costa continuou com entusiasmo:

"O Sábio estadista que aí vedes vai sempre ao encontro da equação política do momento".

Depois desta manifestação do seu saber matemático, o futuro chefe da seção precipitou o seu discurso, rematou-o, dizendo:

" Nas ligeiras palavras que disse, procurei esboçar o retrato deste homem, não de perfil nem de frente; mas, como Pelino Guedes , em obra conhecida, de fronte voltada para o céu, tentei retratar esse gigante político, que traduz perfeitamente a ação de um passado que se afirma no presente, como refletirá sobre o futuro, quando o historiador tiver que tratar de todo esse período da nossa vida republicana. Saudemo-lo, senhores! Ele é O MAIS DIGNO!"

Houve palmas, vivas e Numa abraçou-o, dizendo-lhe ao ouvido:

— Estiveste muito filosófico.

Foram oferecidos em seguida mimos e Clódia, filha do Dr. Henocanti, ofertou um ramo de flores, com doces e capitosas palavras.

Quitério tirou a cabeça de dentro do tórax e ficou estático diante da sedosa alvura da moça, da sua elegância, do seu langor, da sua atração fortemente sensual.

— Quem é?

Não lhe responderam; Neves Cogominho falou com grande simplicidade, não sem comoção e, por fim, entusiasmado com o entusiasmo dos outros, agradeceu a homenagem com períodos repassados de sentimento.

Aos circunstantes foram oferecidos "chopps" e servidos em uma sala interior. Quase houve briga, quase houve bofetadas. As mãos passavam por cima das cabeças, por entre os corpos, por debaixo dos braços de outrem; e os copeiros não sabiam como servir toda aquela gente sequiosa.

Canto Ribeiro e Inácio Costa, vendo que a coisa podia degenerar em conflito, pois já havia uma disputa em um canto, gritaram:

— Vamos, rapazes! Os bondes vão partir!

Foram-se e, na sala, encostado ao balcão improvisado de "buffet", ficou unicamente Barba-de-Bode.

Encostou-se e disse com gloriosa satisfação:

— Sim, agora posso beber. Não sou desses "avançadores" que só vêm às festas para beber.

Em seguida, voltou-se para o copeiro e fez familiarmente:

— Ó amigo! Dá-me uma "joça" dessas!

Sorveu o copo quase inteiramente de um trago, e foi cheio de loquacidade que pronunciou:

— Vocês sabem, eu cá sou de casa. Não preciso de manifestações para entrar... O homem é meu amigo... Todos esses tipos são engrossadores.

Bebeu o resto que estava no copo, e pediu:

— Mais um "chopp".

E continuou loquaz e jovial, jovialidade e loquacidade a que não era estranho o álcool que já bebera durante o dia todo. Continuou:

— Eu cá sou amigo... Não sou um dia de um, um dia de outro. Mais um "chopp".

Bebeu e emendou:

— Vocês viram o que se deu com o Dr. Macieira... Ele está aí e não me deixa mentir... Quando o "velho" lhe andava fazendo fosquinhas, quem é que o procurava? Um ou outro. Eu cá não, sempre estive a seu lado. Mais um "chopp".

Os copeiros serviram e ele aduziu sentenciosamente:

— Esses homens são adulados, quando estão por cima; mas, logo que rosna qualquer coisa, tudo foge. É isto. Vamos beber!

Falando e bebendo, Lucrécio sorveu bem uma dezena de copos de cerveja; mas, quando ia ultrapassá-los, passou pela sala o Dr. Macieira. Barba-de-Bode correu-lhe ao encontro:

— V. Exa. dá licença?

— Que é que você quer, homem? Já bebeste como o diabo, hein?

— Alguma coisa. Queria agora beber à saúde de V. Exa.

— Deixa isso para mais tarde. Agora...

Lucrécio deitou sobre o poderoso político um súplice olhar de desgosto e Macieira não achou mau dar uma demonstração de tolerante bondade pelos humildes. Disse com bonomia:

— Bem! Vá lá!

— Sr. senador Macieira - começou Lucrécio. - Neste momento solene...

E parou como se buscasse palavras, termos, imagens. Esteve um instante calado, com a boca fortemente fechada: houve um imperceptível movimento nos músculos da garganta, movimento de quem tenta engolir alguma coisa. Por esse tempo, começaram a vir da sala convivas, damas e cavalheiros, curiosos de travar conhecimento com a eloqüência de Lucrécio.

Ao ver tanta gente à sua roda, animou-se e continuou: — Sr. Senador - mas não pode acabar. Veio-lhe um forte mas. Lançou, lançou tudo o que tinha no estômago.

O triste final do discurso causou hilaridade, mas houve quem se indignasse. Entre estas pessoas quem mais se indignou foi o Dr. Chaveco. Logo que soube, correu à sala do "buffet".

— Tá bebo... Chama aí um poliça... Mete ele no xadrex.

Houve um grande esforço por parte dos presentes para que não fizesse prender o Lucrécio.

— Mas sô chefe! O homem bebe... que faço então?

Neves Cogominho, Macieira, Numa, Souza, Pieterzoon, Costale e todas as senhoras interessaram-se, conseguindo dissuadi-lo de efetuar a diligência. Lucrécio foi levado para um dos quartos dos criados; e o Dr. Chaveco, apanhando o chapéu e a bengala, sem castão nem ponteira, despediu-se:

— Tá bão.... Inté manhã!

Aquele chefe de polícia era bem um chefe de polícia do tempo. Ingênuo e submisso, por necessidade de submissão agradecida, procurava onde aplicar suas terríveis funções. Queria de qualquer modo mostrar energia e provar ao protetor que estava atento, que velava pela sua segurança e respeitabilidade.

As visitas tinham voltado à sala de visitas; e, na sala do "buffet", a um canto, ficaram ainda a tia de Cogominho e algumas outras senhoras. O Dr. Chaveco entrou de novo, batendo com a bengala no assoalho, ao jeito do banho de um pastor bíblico:

— D. Romana - disse ele - me esqueceu uma coisa...

— Que foi, Doutor?

— A modo que não levei uns rebuçado pros meninos.

— Pois não, Doutor.

— Tem artéa, siá Dona? O Juca tá cum tosse.

— Não, Doutor. Quer de amendoim?

— Serve, Dona.

Sentou-se a uma cadeira, enquanto a velha senhora tratava de preparar o embrulho de balas. Bogoloff, que viera tomar um copo de cerveja, acercou-se do chefe e indagou, ao vê-lo com chapéu e bengala:

— Já vai, Doutor?

— Já moço; Drumo c'os pintos. É mais bom pra saúde.

— Mas, no seu cargo, nem sempre é possível, Doutor.

— Quá, moço! Tenho os auxiliá que faz minha vez.

Chaveco consertou melhor o busto e indagou convictamente:

— Cá dê o malandro?

— Que malandro, Doutor? - fez Bogoloff.

— Aquele que se embriagou-se.

— Não é malandro, Doutor. É amigo da casa. Um rapaz generoso...

— Como se chama?

— Lucrécio.

— De quê?

— Barba-de-Bode.

Riu-se gostosamente e disse com toda a sua simplicidade roceira:

— Bem posto... O cabra tem mesmo barba de bode!

D. Romana voltou com o embrulho; Chaveco agradeceu, levantou-se, despediu-se e disse para Bogoloff:

— Qué i cô nós, moço? Não paga nada. Intomove tá na porta.

O Dr. Bogoloff não podia deixar de aceitar o convite. Lançara-se nas altas camadas, esperava tirar dela os melhores proveitos e o momento era azado para estreitar os conhecimentos com aquela alta autoridade que tão obsequiosa se mostrava.

— Aceito, Doutor.

— Bamo

Juntos atravessaram as salas e, em breve, estavam na rua, onde um luxuoso automóvel esperava entre a fila de muitos outros. Sem esperar que o ajudante abrisse a portinhola, Chaveco a foi abrindo e convidou:

— Trepe moço!

Logo que o russo entrou e o chefe também, o motorista perguntou-lhe o destino do carro:

— Pra onde vosmecê qué i, moço?

O automóvel rodou e os passageiros, depois de bem se colocarem nos assentos puseram-se a conversar. O chefe de polícia perguntou:

— Como é seu nome, moço?

O russo disse-o e o chefe encheu-se de admiração infantil:

— Ué! gentes! Que nome! é de santo?

O doutor russo explicou-lhe que era ou podia ser, mas o doutor Chaveco em pequenas risadas, mantinha a sua dúvida.

Afogada no luar, a cidade oferecia um aspecto de paz serena e tranqüilidade satisfeita. Pelas ruas, não havia ninguém e aquelas casas inteiramente fechadas, mudas, tranqüilas, enchiam os dois passageiros de uma suave satisfação. Era como se esquecêssemos que, dentro elas, havia muita angústia, muito tormento, muita paixão e ódio. Verificando isso, tinha-se vontade de que todos nós, toda a humanidade, viesse a dormir assim, pelo séculos em fora...

O doutor Chaveco cochilava na almofada e Bogoloff lembrou-se da terrível polícia russa, contemplando aquele inofensivo chefe, aquele doce homem, simples, em que havia tanto de criança. Como era que naquelas mãos estavam tão terríveis poderes e como era que aquela bondade nativa não se fazia sentir em todas as rodas do mecanismo policial?

Recordou-se também do azedume com que as autoridades policiais o trataram quando aportou ao Rio. Já começavam a desembarcar os passageiros de terceira classe, quando um empregado de bordo veio chamá-lo. Prontamente seguiu-o e achou-se em presença de um homem agaloado, que lhe perguntou:

— Como se chama?

O intérprete que estava a seu lado traduziu e Bogoloff respondeu:

— Gregory Petrovich Bogoloff.

O homem da polícia marítima pediu então que lhe escrevesse o nome no papel. Esteve olhando as letras, e por fim, indagou:

— Qual é a sua profissão?

Com o auxílio do intérprete, Bogoloff pode responder:

— Sou professor.

O homem pareceu não se conformar com a resposta; olhou o imigrante muito e perguntou abruptamente:

— Você não é "cáften"?

Logo que Bogoloff percebeu o sentido, ficou indignado e disse:

— Por quê?

O homem da polícia replicou muito ingenuamente:

— Estes nomes em "itch", em "off", em "sky", quase todos são de "cáftens". Não falha!

Disse-lhe o russo então que não era, nem nunca tinha sido, mas o homem não acreditou e insistiu:

— Se você não é "cáften", é anarquista.

Houve muito trabalho por parte do adventício para tirar a autoridade da sua singular idéia:

— Estes nomes em "itch", em "off", em "sky", polacos e russos, quando não são "cáftens" são de anarquistas.

Mostrou Bogoloff os documentos; e, afinal, depois de muita hesitação por parte da autoridade pode pisar a terra onde viera procurar liberdade e sossego, mais que fortuna e felicidade.

O Dr. Chaveco continuava a dormir serenamente recostado à almofada do carro. As suas longas barbas tinham um doçura patriarcal. A sua pele estava queimada do sol e o seu ar era doce, bom e feliz. Era um pastor bíblico em que o luar punha a pátina da eternidade; e esse pastor bíblico tinha nas mãos a segurança, a ordem, a liberdade de uma vasta aglomeração humana de um milhão de almas.

Lembrou-se ainda Bogoloff das dificuldades do seu desembarque... A lembrança se esbatia no tempo; as suas linhas tinham perdido a nitidez... Como estava longe! Olhou o céu. A lua se mostrava por entre os flocos de nuvens que corriam doidas. A cidade dormia tranqüila, serena, satisfeita e a vontade dele era de que ela continuasse a dormir assim pelos séculos em fora...