DE F... AO MEDICO

 

I

 

Julho 21 à 1 hora da noite.

— Meu querido amigo.

— Ignoro se estás em tua casa, para onde te dirijo esta carta, ou se continuas, como eu, permanecendo aqui em carcere privado. Em qualquer dos casos, recebidas agora ou encontradas mais tarde, estas letras ficarão encerrando para aquelle de nós que houver de as ler a lembrança proveitosa das horas mais extraordinarias da nossa vida.

Escrevo mais para coordenar e fixar na memoria estes momentos do que para empregar n’outro destino puramente hypothetico esta carta. Será uma pagina das minhas confidencias que entregarei á discrição ou ao acaso da posta, reservando-me o direito de lhe pedir que m’as restitua a seu tempo.

Não tornei a ter noticias tuas desde que nos separámos hontem á noite, pouco tempo depois de termos entrado na sala em que estava o cadaver. O mascarado que se encarregára de me conduzir ao quarto onde me acho deu-me o seu braço e disse-me ao ouvido um nome de mulher, a indicação de uma rua e o numero de uma porta. Era o nome da pessoa que sabes e a designação da casa em que ella mora! Creio que involuntariamente estremeci, mas consegui dizer serenamente:

— Não o comprehendo.

Este individuo era o mesmo que na carruagem se conservára sempre calado, o mesmo que na sala me observava com attenção e desconfiança.

Aquella estatura, aquella falla, aquella voz, posto que apenas perceptivel ao meu ouvido, não eram novas para mim.

Elle respondeu fallando-me ainda mais baixo:

— Não poderá sair d’aqui antes de dois ou tres dias. Veja se precisa de escrever uma carta ou de mandar um recado.

Passou-me pela mente uma idéa a respeito d’aquelle homem... Se fosse...

Occorreu-me que teria um meio de desenganar-me se era effectivamente ou se não era um amigo intimo que eu tinha ao meu lado: arrancar-lhe o relogio; bastar-me-hia apalpal-o, ainda vendado como eu estava, para reconhecer o dono. A ser o individuo que eu suppunha, a caixa do relogio teria a lisura do esmalte e no centro a saliencia de um brasão.

— Escreverei duas linhas, disse eu; quererá dar-me um lapis?

Tinhamos chegado ao quarto que me era destinado e eu desvendei-me ao tempo em que elle saia promettendo trazer-me o necessario para escrever. O individuo que voltou com papel e pennas não era o mesmo que acabara de sair. Assim tinha eu perdido a occasião de confirmar uma suspeita ou de desvanecer uma duvida.

Em todo o caso escrevi duas linhas ao meu creado serenando-o com relação ao meu desapparecimento.

— Mais nada? interrogou o desconhecido tomando o meu bilhete.

— Nada mais.

Um sentimento de delicadeza e uma sombra de desconfiança impediam-me de escrever directamente á pessoa a quem o mascarado se referira.

Fecharam a porta e fiquei só.

Achei-me n’um quarto de interior, bastante espaçoso, mas sem janella. A um lado havia um lavatorio; sobrepostas a um canto tres malas de viagem, de coiro de Varsovia com pregos d’aço, estrelladas com senhas de caminhos de ferro, d’hoteis e de paquetes; a que estava por cima das outras tinha em grandes lettras pretas sobre uma tira de papel este distico: Grand-Hotel-Paris; uma das senhas era dos paquetes inglezes da carreira da India. Para outro lado do quarto havia uma cama. Completava a simples guarnição d’este aposento um sophá forrado de marroquim verde, collocado no meio da casa defronte de uma ampla mesa em que estava posta a minha ceia á luz fulgurante de um grande candeeiro com largo abat-jour.

Queres que te confesse a verdade? Agradou-me aquelle recolhimento, aquelle socego, aquella solidão, depois da grande sobreexcitação em que me tinha achado!

Estirei-me no sophá, puz-me a olhar machinalmente para o circulo da luz trepidante projectada pelo candeeiro e contornada no tecto pela abertura do abat-jour, e começaram a desafogar-se-me os comprimidos spasmos do coração em bocejos longos acompanhados de estremecimentos nervosos, que me convidavam suavemente ao repouso. A minha imaginação occupada n’um trabalho inconsciente, similhante ao dos sonhos, ia tirando no emtanto do caso que eu presenceára as ramificações mais illogicas e mais phantasticas. Os successos por que passámos desde a estrada de Cintra até á minha entrada n’este quarto appareciam-me redemoinhando convulsamente no ar como um enorme enigma figurado, cujos objectos tumultuavam impellidos pelos pontapés de diabinhos sarcasticos, que se riam para mim e me deitavam de fóra as linguasinhas em braza.

Fui caindo mollemente n’um despego languido, fecharam-se-me os olhos, adormeci.

Ao acordar, depois de um somno breve mas socegado e reparador, encarei na ceia que reluzia aos meus olhos.

Havia sobre a mesa um pão, uma caixa de lata com sardinhas de Nantes, uma terrinasinha de foie gras, uma perdiz, uma fatia de queijo e tres garrafas de vinho de Bourgogne, lacradas de verde; junto d’estas, quatro garrafas de soda. Na argola de prata do guardanapo estava passado o sacarolhas. Sobre uma bandeja de metal erguia-se um feixe de charutos côr de chocolate, luzidios, gordos, apertados nas extremidades com duas fitas de seda carmesim. Em cima da caixa das sardinhas achava-se collocado o instrumento destinado a abril-a. O copo era de cristal finissimo, o garfo de prata dourada, a faca de cabo de madreperola, os pratos de porcellana brancos, cercados de um estreito filete dourado e verde. Atirei rapidamente com os pés para o chão. Sentei-me no sophá, senti a fome encavallar-se-me no dorso, carregar-me na cabeça para cima da ceia, cingir-me a cinta com as suas pernas esgalgadas e cravar-me no estomago vasio os acicates da gula.

Ao mesmo tempo ergueu-se-me do outro lado da mesa a abantesma do susto, cravando os olhos em mim e espalmando por cima das iguarias a sua mão descarnada e tremula com um gesto prohibitivo e solemne. Atarantado, perplexo, escutei então dentro de mim um breve dialogo similhante áquelles que Xavier de Maistre travava de quando em quando com a besta, na sua viagem á volta do quarto.

Havia uma voz pausada e grave que dizia:

— Attenta no que fazes, temerario! abre teus olhos, inconsiderado mortal! Essa perdiz, cujo peito insidioso e perfido está lourejando a teus olhos, foi apimentada com arsenico. Aquelle Chambertin, que te espera como uma onda da lagoa Stigia, embuscada por detraz d’aquelle lettreiro envernizado, apparentemente simples, elegante, convidativo, mas em verdade tenebroso e fatal como o distico do festim de Balthazar, aquelle vinho, que te offerece um beijo refalsado e fementido, está destemperado com acido prussico. As truffas, lubricas, venaes, devassas, envoltas n’esses figados de pato, estão empapadas nos temperos lethaes da cosinha dos Borgias!

A outra voz, insinuante e meiga, dizia n’uma vaga melodia de sereia:

— Come, se tens fome, estupido! Estás com medo do papão, maluco?... Põe os olhos n’esse lacre: não será um penhor seguro da pureza do liquido que elle tapa a marca d’esse abonado sinete? Não vês hermeticamente fechada, chumbada e garantida com os mais especiaes lavores a lata d’essas sardinhas pescadas nas costas de França e cosinhadas ha seis mezes em Marselha? Não vês religiosamente grudada e sellada com as etiquetas insuspeitas e sagradas da acreditada casa Chevet essa terrina de foie gras? Suppões acaso, ó parlapatão, que meio mundo se conjurasse para te arrancar essa vida inutil? Come, bebe e dorme; aproveita nos braços da sabedoria as horas gostosas da solidão com que te brinda o acaso. Deleita-te conversando depois comtigo e repousando-te no seio tepido da melancolia, d’essa deliciosa fada que só apparece evocada pelos namorados e pelos solitarios, e que é na terra a irmã mais nova da tristeza, a irmã gatée, a irmã feliz!

Eu no entanto havia cortado a caixa de sardinhas, desgrudado a tampa da terrina e desarrolhado uma garrafa de vinho e uma garrafa de soda que misturára n’um copo.

Puz-me por fim a comer com apetite, com valor, com delicia, com uma especie de bestialidade voluptuosa, sentindo vagamente adejarem em volta de mim os espiritos beneficos do carcere que bafejaram as prisões de Silvio Pellico.

É singular isto: achava-me bem!

Depois da ceia accendi um charuto e comecei a passear no quarto, dizendo comigo:

— Visitemos o paiz!

Na parede que ficava ao lado da porta por onde se entrava havia uma outra porta. Examinei-a. Estava apenas segura com um ferrolho exterior. Afastei a cama encostada á parede em que se achava esta porta e abri-a.

Era uma armario na espessura do muro, largo, profundo, dividido a meia altura por um prateleiro espaçoso e solido.

Occorreu-me que ao fundo do armario haveria talvez um tabique delgado atravez do qual me seria possivel escutar o que se passasse na casa contigua.

Penetrei no armario, estendi-me no prateleiro, escutei. Do outro lado havia um ruido volumoso e macisso. Parecia que se estava arrastando um movel pesado e grande.

O fundo do armario era effectivamente formado por um tapamento franzino. Era possivel que tivesse havido primitivamente uma porta no logar em que se fizera o armario. Havia um ponto em que a argamassa caíra, e eu via deante de mim um pedaço de ripa atravessada diagonalmente e descarnada da cal.

Peguei no saccarolhas, e no logar indicado fui esburacando devagarinho e progressivamente o cimento do muro, até operar um orificio imperceptivel, pelo qual me era dado vêr a luz e ouvir distinctamente o que se dizia do outro lado.

Eis-aqui o que ás onze horas e meia da noite se estava passando no quarto contiguo áquelle que me serve de prisão:

II

 

Havia dois homens que arrastavam um grande leito de madeira do logar em que elle estava para ao pé da parede que divide a casa em que me acho d’aquella em que se passava a scena que descrevo, e exactamente para junto do logar em que eu acabava de abrir o buraco que me servia de olho e de orelha.

Um d’esses homens dizia assim:

— Será o que muito bem quizer, mas eu é que não torno a vir cá a andar aos trambulhões com os moveis á hora da meia noite.

— Ha de ter muita razão de queixa! tornava o outro. Dou-lhe uma libra para me ajudar, quero saber se não é melhor isto que estar lá em baixo estendido ao pé da mangedoura, á espera que chegue o trem para ir tratar dos cavallos, a enfastiar-se sem ganhar vintem.

Aquelle que dizia estas palavras, comquanto se expressasse claramente, tinha todos os defeitos de pronuncia que distinguem os extrangeiro que falla portuguez. Pela aspiração especial de certas vogaes e pela contracção habil com que pronunciava os aa, era por certo allemão.

O que primeiramente fallára, proseguiu:

— É bom lucro... Parece que é bom lucro, mas eu para mim não o quero. E olhe que não encontra seis homens aqui na rua que entrem cá de noite, a estas horas, ainda que os pese a oiro!

— Para mudar uma cama!

— Não é pela cama, é por ser a casa que é!

— Ora adeus! que tem a casa? !...

— Não tem nada! É uma graça! Ella é de tal casta que o senhorio teve-a quatro annos por alugar, foi sempre baixando na renda e por fim dava-a já de graça e não tinha alma viva que lhe pegasse! A ultima gente que cá morou esteve só duas noites, e foi-se d’aqui tolhida com as coisas que lhe appareceram e com as trapalhadas que ouvia... Cruzes demonio! cruzes diabo!

— Petas! historias da vida!

— O senhor! não me diga que são petas! Pois eu não vi a familia! ?... não estive com elles! ? Fugiram de noite, fugiram á segunda noite que dormiram cá, estarrecidos de medo.

— Então que viram elles?

— Elles não viram nada.

— Então ahi tem!

— Não viram, mas ouviram.

— Haviam de ouvir boas coisas!

— Ouviram, sim senhor, ouviram. E não foi só a elles que succedeu isso, foi a todos quantos cá moraram. E era gente de bem, que não mentia, que não tinha precisão de mentir, que tinham pago a sua renda e que ficaram com ella perdida!

— Então que ouviam elles?

— O senhor bem o sabe!... O que elles ouviam? Ouviam pancadas nas portas, quando ninguem batia, nem lhes tocava! Ouviam espirrar o lume e estalarem os carvões exactamente como se estivessem abanando á fogueira, quando estava a cozinha só e o fogão apagado! Sentiam o bater das asas de um passaro que principiava a voar pelas casas apenas se apagavam as luzes; ouviam-o arquejar e bufar approximando-se cada vez mais dos que estavam deitados, pairando tão rente das camas que se lhe sentia o estremecer das pennas, o calor de lume que elle deitava do bico e ao mesmo tempo o frio de neve que fazia a mover as azas!

— Ora adeus! tinham ouvido fallar n’isso e pareceu-lhes que sentiam o tal passaro, de que já fallavam os inquilinos anteriores, os quaes tambem tinham ouvido fallar n’elle, não havendo ao fim de contas ninguem que verdadeiramente o tivesse ouvido.

— Então o senhor não sabe porque foi que elles fugiram, os ultimos que estiveram cá, faz agora quatro annos?

— Ouvi fallar n’isso, mas por alto, não me deram pormenores.

— Eis ahi está porque o senhor não acredita! A coisa foi esta: Elles eram gente pobre mas honrada: marido, mulher e uma filha de seis annos. Para o que désse e viesse dormiam todos juntos na mesma sala. A pequenita a quem elles não contavam nada por causa do medo, estava n’uma caminha a um lado. Dormiam com luz na lamparina, e como trabalhavam muito de dia e estavam cansadissimos á noite, lá pegavam no somno apesar do barulho das faúlas do fogareiro e das argoladas nas portas. Vae senão quando, á segunda noite que passavam cá, accordam aos gritos da creança. Tinha-se apagado a luz. Accenderam-na a toda a pressa. A porta do quarto estava fechada por dentro. Os fechos das janellas achavam-se corridos. No quarto não havia mais ninguem. Mas a roupa da cama da creança estava cahida a dois ou tres passos de distancia do berço em que ella dormia, e a pequenita, nua, tranzida de medo, branca como o travesseiro e tremendo como varas verdes, disse, quando lhe chegou a falla que teve perdida por um bocado, que sentira umas cousas como os pés de uma gallinha muito grande que se lhe pousavam na cama; que se achara depois descoberta e ouvira umas coisas suspiradas envoltas em soluços e beijos, mimos que mettiam medo e que ella não entendia, emquanto um peito coberto de pennas se lhe roçava pelo seio nu. A mãe então vestiu-lhe á pressa uns fatinhos, embrulhou-a n’um chale, estreitou-a nos braços, poz-se a dar-lhe beijos e acalental-a com o bafo, e saiu para a rua aterrada e como doida. O homem, que era valente e destemido, correu a casa toda com luz e sem luz, mettendo-se por todos os cantos e recantos, rangendo os dentes e picando as paredes enfurecido com uma faca de ponta que levava em punho. Não appareceu ninguem! Ninguem podia ter saido! Ninguem podia ter entrado! No dia seguinte foi levar a chave do predio ao senhorio, dizendo-lhe que se algum dia tivesse dinheiro lhe compraria esta casa para elle mesmo a deitar abaixo com um picão e a machado, para lançar o fogo a quanto podesse arder, e calcar depois aos pés e salgar o monte de cinzas que ficasse no chão.

— Pois senhor, eu nenhuma d’essas cousas tenho ouvido, e é esta a segunda noite que durmo aqui.

— Gabo-lhe o gosto! E não tem medo?

— Nenhum.

— Por isso por ahi dizem do senhor o que dizem!

— Então que dizem por ahi de mim?

— Dizem, com o devido respeito, que o senhor é um allemão da Moirama e que tem partes com o demonio.

— Mais um bocadinho para traz, que eu o ajudo! exclamou o estrangeiro, mudando de tom.

— Isto assim?

— Ainda mais... um quasi nada... até ficar a cabeceira unida á hombreira da porta... Basta!

— Não quer mais nada?

— Mais nada. Aqui tem a sua libra e leve d’ali uma d’aquellas velas para que o avejão lhe não appareça na escada ao apanhal-o ás escuras.

— Não o diga a rir, que eu pela minha parte não me rio! o senhor gosta...

— A fallar-lhe a verdade gosto!

— Seu proveito! Olhe lá: quando se aborrecer com as almas que andam cá, veja se passa ahi para a casa que fica ao lado!

— Bem me queria a mim parecer que a casa do lado tambem tem...

— Se tem! Essa então é o diabo, é o proprio diabo que lá mora!

O homem que viera ajudar á mudança da cama accendeu a luz e desceu a escada. O allemão ficou só, fechou a porta e principiou a despir-se para se deitar.

O dialogo que eu acabava de ouvir tinha-me impressionado singularmente e despertado em mim o mais curioso interesse.

Sem procurar directamente indagar cousa alguma, começava a entrar pelo modo mais extranho no conhecimento de factos que, posto que deturpados pela superstição ou pela ignorancia, explicariam de certo o desfecho a que viemos assistir e a presença do cadaver na sala em que o fomos encontrar.

Agora nós, meu interessante e precioso visinho.

III

 

A cama do allemão tinha ficado, como disse, por baixo do meu buraco de observação. O meu visinho deitou-se e soprou a vela. O quarto ficou ás escuras, e eu senti os colchões que rangiam com o peso do corpo que se ageitava para dormir.

— Ah! tua amas o murmurio dos espiritos invisiveis?... exclamei eu, dirigindo-me mentalmente ao philosopho que me ficava do outro lado do muro. Aprazem-te as ondulações sonoras das moleculas da vida animal que vagueiam dispersas no espaço, procurando o sopro mysterioso que as condense para entrarem na corrente dos seres vivos? Queres encadear ao teu espírito esses elos informes e incoerciveis, que ligam o mundo das cousas conhecidas ao mundo dos seres ignotos? Ora vamos lá a ver como tu empregas as tuas faculdades de medium...

E pensando isto, bati-lhe com os nós dos dedos na parede tres pancadinhas seccas, methodicamente espaçadas, como as dos signaes maçonicos.

Senti roçar a mão d’elle pelo papel que forrava o muro, como quem procurasse apalpar algum signal do rumor que ouvira.

Entrei então a repetir com successiva frequencia o rebate que lhe dera percorrendo differentes pontos da parede que servia de fundo ao armario.

Percebi que elle se sentava na cama. Ouvi estalar um phosphoro. Accendeu-se a luz. Parei. Houve uma pausa, durante a qual me conservei silencioso e immovel. O meu visinho apagou finalmente a luz ao cabo de alguns minutos, e eu recomecei a bater devagarinho e repetidamente como primeiro fizera. Elle, tendo escutado por algum tempo ás escuras, accendeu outra vez a vela e começou a examinar o espaço da parede, junto da qual lhe ficava a cama.

No momento em que a chamma da vela perpassava na mão d’elle por defronte do meu buraco, soprei-lhe de repente e apaguei a luz.

O allemão, que se achava de joelhos em cima da cama a revistar a parede, expediu um pequeno grito, que me pareceu mais de surpresa que de terror, com quanto o acompanhasse um estrondo pesado e extremamente significativo. O que produzira esse estrondo fôra o baque do corpo d’elle, cahindo da cama abaixo.

Logo depois ouvi a voz do visinho perguntando com decisão e firmeza:

— Quem está ahi?

Respondi-lhe:

— Sou eu.

— Quem és tu?

— E tu quem és?

— Frederico Friedlann, cidadão prussiano.

— Ah! disse eu.

— Viajo por conta da primeira fabrica de productos chimicos de Buda Pesth, os quaes sou encarregado de tornar conhecidos dos grandes industriaes da Europa.

— Bem! observei.

Elle continuou impassivelmente:

— Contou-me um judeu meu amigo que havia em Lisboa tres predios de que elle tinha noticia, os quaes se achavam abandonados depois de algum tempo de terem ganhado fama de serem habitados por almas do outro mundo. Resolvi morar successivamente nas casas que elle me indicou e é esta a primeira que habito. Componho um livro com investigações a respeito do espiritismo. Poderei saber agora a quem me dirijo?

— Pois não! tornei-lhe eu. Chamo-me fulano, e vivo dos rendimentos das minhas propriedades, ora viajando, ora residindo em Lisboa, e occupando-me de quando em quando com a politica ou com a litteratura, quando não tenho outra cousa menos insipida e menos inutil em que agitar a minha ociosidade e o meu tedio. Não sou espiritista.

— Pois faz mal! O espiritismo é um systema e póde bem succeder que venha ainda a ser uma religião.

— Puff! exclamei eu rindo.

— O quê! continuou elle. O materialismo, guiado de um lado pelas conquistas das sciencias physicas e naturaes e de outro lado pelo relaxamento dos costumes contemporaneos, e pela depressão successiva e assustadora da moral, vae comendo no campo da philosophia o espaço não já muito vasto em que residia a fé. Novas crenças e novas doutrinas virão successivamente sustituir as crenças e as doutrinas mortas por que se regulava o sobrenatural. O homem, que, segundo todas as probabilidades, não poderá nunca prescindir do maravilhoso, d’esse attractivo supremo da sua imaginação, irá então naturalmente buscar ao espiritismo, modificado e aperfeiçoado pela sciencia futura, a theoria de uma tal ou qual sobrevivencia que o lisongeie, e a base de correlações ainda não estudadas dos seres que existem com aquelles que os precederam e com os que se lhes hão de seguir. Os espiritistas de hoje serão de entre todos os philosophos contemporaneos que não querem acceitar em absoluto o dogma esteril e desconsolador da materia omnipotente, os unicos que hão de collaborar na philosophia do futuro.

— Ora ha de me dar licença que lhe pergunte uma cousa...

— Tem-me ás suas ordens.

— Sem com isto querer fazer aggravo ao seu juizo!

— Estimarei muito satisfazer a sua curiosidade, qualquer que seja a natureza d’ella.

— Acredita em alguma das cousas em que esteve ahi fallando o homem que veiu ajudal-o a mudar a cama?

Esta pergunta era capciosa. Eu queria desenganar-me se estava fallando com um doido, com um visionario, com um monomaniaco, ou simplesmente com um homem de espírito extravagante, com um excentrico.

— Eu não creio nem tambem descreio de cousa alguma que ouço, responde-me elle. É meu systema admittir tudo quanto esteja para se provar e duvidar de tudo aquillo que me apresentem como cousa positiva. É o unico meio prudente de nunca nos affastarmos muito da verdade. Se escutou a conversa de ha pouco, tem uma parte da historia d’esta casa. Neguei quanto me disse o homem que esteve aqui porque me obriguei com o senhorio do predio a desvanecer com as minhas informações o anathema que pesa sobre a sua propriedade. A verdade é que tenho ouvido distinctamente ha duas noites consecutivas um rumor insistente e prolongado similhante aos estalidos que produz ao ateiar-se uma fogueira de carvão, e tenho aqui sobre uma banca um busto de Allan Kardec que, sem eu poder explicar como nem porquê, se move, sem que ninguem lhe toque, do centro da mesa em que o colloquei para uma das extremidades d’ella. O pó agglomerado em volta da base do busto, e que eu tenho o mais escrupuloso cuidado em não espanar nunca, vae deixando successivamente sobre a superficie da mesa o vestigio d’esse movimento vagaroso, lento, quasi imperceptivel, mas progressivo e constante. N’esta porta ao pé da qual colloquei hoje a cama, ouço em cada noite, ora por duas, ora por tres vezes, uma argolada perfeitamente clara e distincta. Abro imediatamente a porta (mudei a cama para este ponto a fim de poder fazel-o do modo mais rapido), fica sempre inexplicavel para mim a razão porque se levanta a argola do ferrolho e bate de per si mesma na porta!

Todas estas cousas eram asseveradas pelo prussiano com a emphase da sinceridade e da convicção mais profunda!

— E d’esta casa de cá, observei-lhe eu, que tem ouvido? o que sabe? que lhe consta?

— Eu lhe digo...

— Sinceramente!

— Por mim pessoalmente nada tenho ouvido. O inquilino que me precedeu conta que ouvia no silencio da noite um rumor confuso de vozes, o estalar de risadas e o telintar de dinheiro. Alguns visinhos têem visto entrar vultos mysteriosos. Tudo isto porém se explica do modo mais natural d’este mundo.

— Qual é então o seu juizo, vejamos?

— É evidentemente...

— Diga! diga!

— Presumo eu, pelo menos...

— Vamos! sem rodeios, francamente!

— De duas uma: ou uma loja maçonica, ou uma casa de jogo.

IV

 

As palavras do allemão acabavam de lançar no meu espírito a luz subita de uma revelação que me obrigava a meditar.

O que se passava por mim, o mysterio que me cercava, o cadaver que vira, a presumpção — ainda que vaga — da concorrencia de um ou mais amigos meus envolvidos n’este acontecimento, tudo isto era tão extraordinario e tão grave que eu não ousava referil-o ao homem desconhecido que o acaso me deparava por visinho.

Era já positivo para mim que me achava em Lisboa. Desejava naturalmente saber qual era a rua e a casa em que estava; não me occorria porém um pretexto plausivel para levar o allemão a dizer-m’o, sem que eu o interrogasse de um modo ambiguo, que poderia levantar sobre a situação em que me acho suspeitas talvez perigosas para a segurança das pessoas compromettidas n’este negocio. Contentei-me pois em allegar o incommodo a que me obrigava a posição em que estava, e dei as bôas noites ao meu visinho. Elle despediu-se batendo no muro tres pancadas espaçadas por pausas eguaes ás d’aquellas com que eu primeiro lhe despertára a attenção. Lembrou-me que poderia ser mação aquelle homem, e que nas circumstancias em que eu estava me serviria a protecção que lhe pedisse em nome de juramentos reciprocos e de compromissos communs. Dei-lhe então uma letra, elle respondeu-me com outra e assim construimos successivamente a palavra da senha.

Salut, mon frêre! exclamou elle.

— Segredo! disse-lhe eu baixinho, respondendo com os nós dos dedos no muro ao sinal que me déra.

Fechei em seguida o armario, cheguei a cama para o logar d’onde a tinha removido, e deitei-me vestido.

Não podia dormir. Principiei a pensar e a entristecer.

N’esta casa, debaixo d’estes mesmos tectos, está morto um homem, moço, elegante e bello, que entrára aqui, cheio talvez de esperanças, d’alegrias, de projectos no futuro, e que de repente caiu para todo o sempre, envenenado por mão mysteriosa, ignorado, desconhecido, só, longe de uma mulher amada que o espera talvez a esta hora, longe da familia que o acarinhou em pequeno, longe dos logares saudosos que o viram nascer, da mãe lacrimosa que lhe cerrasse os olhos, do pae angustiado que em nome da humanidade lhe lançasse a derradeira benção.

Desventurado rapaz! quem sabe as torturas por que passou o teu espírito para se desprender violentamente da terra, deixando na sociedade o seu corpo inerte, impassivel, mudo como a interrogação de um enigma posto anonymamente no meio de uma pagina branca? quem sabe os pensamentos que a morte immobilisou no teu cerebro? quem sabe os affectos que ella enregelou no teu coração, onde ha pouco tempo ainda golphava abundantemente a fecunda seiva d’essa mocidade esterilisada e extincta agora para sempre?

Pobre moço! tão digno de lastima como és, merecedor talvez de profundas saudades, ahi estás adormecido no teu somno eterno, vestido de baile, coberto com uma manta de viagem, estirado n’um sophá, insensivel para sempre ás alegrias e ás amarguras d’esta vida miseravel; e não haverá por ventura uma só lagrima que commemore, na historia breve da tua passagem na terra, este praso tão pungentemente melancolico em que os mortos estão esperando dos vivos o derradeiro e supremo favor que a humanidade póde dispensar áquelles que mais présa e que mais ama: a doação da cova em que reside o esquecimento!

Os olhos d’aquelles que te amam ainda não choram por ti. Estão fechados talvez pelo somno tranquillo e doce, atravessado em sonhos pela tua imagem querida; estão por ventura fitos no conhecido caminho por onde esperam sentir-te chegar, conhecer-te o passo retardado, ouvir-te a voz cantarolando a ultima valsa que o baile te deixou no ouvido, vêr-te finalmente apparecer, descuidado, risonho e feliz.

Coitados!... Os passos d’aquelle que ainda hoje talvez se despediu da vós contando voltar a encontrar-vos poucas horas depois, não tornarão a medir o caminho da casa em que o esperam; a sua voz não responderá mais á voz que o chame; os seus olhos nunca mais se embeberão nos olhos que o fitavam; os seus labios não voltarão outra vez a approximar-se dos labios que se collavam nos d’elle!

Eu não choro a tua memoria, porque não te conheço, porque nunca nos encontrámos, porque não sei quem és. Mas não quero insultar a dôr que adeja sobre a tua morte, deixando-me dormir na mesma casa em que jazes insepulto, em quanto alguem te espera vivo no mundo.

Foi impelido por estes sentimentos, meu querido amigo, que eu me levantei da cama em que me estendera e vim para a mesa em que ceei, passar a noite escrevendo-te estas longas paginas, que de certo estimaremos ler um dia, em disposição de espírito bem differente d’aquella em que ambos nos achamos hoje.

Tinha em pouco mais de meio a narração que te estou fazendo, quando o silencio que me envolvia, cortado apenas pelo fremito da minha penna no papel, foi interrompido pelas vozes dos mascarados fallando baixo no aposento que atravessei antes de entrar n’aquelle em que estou. Tinha terminado o paragrapho anterior a este quando o mesmo rumor se repetiu, e tive então curiosidade de escutar o que se dizia. Approximei-me da porta e collei o ouvido ao buraco da fechadura, pelo qual nada via. Não sendo natural que os nossos aprisionadores estejam ás escuras, é provavel que haja um corredor, uma passagem ou um pequeno quarto entre aquelle em que eu me acho e o quarto proximo em que elles fallam. Não podia perceber o que diziam. Apenas de quando em quando alguma palavra solta e destacada me chegava ao ouvido. Dispunha-me a vir continuar a escrever ou a terminar esta carta, quando um levantou mais a voz e eu ouvi distinctamente estas palavras:

— Mas as notas de banco, 2: 300 libras em notas! Não as trazia elle?

— Sei que as trazia, dizia outra voz.

— É atroz então!

Estas palavras, unicas que ouvi, fizeram-me a impressão que podes calcular!

É provado para mim que a casa a que fomos trazidos não é um simples ninho consagrado a entrevistas d’amor, como eu primeiro suppuz. Das hypotheses do prussiano é absolutamente necessario acceitar uma: isto ou é uma casa de jogo ou uma loja maçonica. Assim o provam convincentemente os ruidos que se ouviam na morada contigua. N’um retiro de paixões ternas não se escancaram risadas a horas mortas ao som do dinheiro que telinta nas mezas. A referencia dos vultos mysteriosos feita pela visinhança permitte a suspeita de reuniões secretas. O tinir do ouro, as risadas, o mesmo aspecto do boudoir em que estivemos não consentem duvidar-se que esta casa é uma caverna de jogo e de orgia.

As palavras que ha pouco ouvi suggerem-me sobre estas supposições a mais tenebrosa suspeita.

O desgraçado que jaz ahi dentro podia ter sido victima de um homicidio, premeditado com o intuito de roubar-lhe a quantia que elle trazia comsigo.

Occorre uma contradicção: na suggerida hypothese para que foram buscar um medico? Explicam-n’o as palavras que ouvi. Os criminosos, que tinham propinado opio á sua victima com o intuito de a roubarem, encontram illudido este projecto com o desapparecimento das notas que lhe suppunham na algibeira. N’esta conjectura sobrevem-lhes um recurso extremo: procurar um medico que não possa denunciar o crime, mostrar-lhe o opio, e quererem por esta prova de zelo, de solicitude, de confiança na sua innocencia, affastar de si a presumpção do crime, e crear as difficuldades de um mysterio! É possivel que eu não attinja exactamente a verdade do que se passou. O indubitavel porém é que o desapparecimento já constatado da somma que o assassinado trazia comsigo não póde adunar-se dentro d’esta casa com a probidade e com a honra.

Depois d’isto é quasi escusado dizer-te qual é a determinação que vou tomar. O meu visinho prussiano é um homem um tanto phantastico, mas parece-me sincero e honrado. Vou fechar esta carta, subscriptal-a e pedir-lhe que a lance no correio. Acharei facilmente meio de a passar para o quarto d’elle. Se conseguir arrombar completamente, sem que me presintam, o tapamento que serve de fundo ao armario, passarei eu em vez de expedir a carta. No caso contrario, apenas se abrir aquella porta, precipito-me sobre a pessoa ou pessoas que me embargarem o passo, e abrirei o meu caminho como todo o homem de bem que em sua consciencia delibera passar por cima de meia duzia de miseraveis.

Se te achas aqui, encarcerado como eu, por Deus juro-te que nos veremos ámanhã. Se estás solto, se receberes esta carta, e vinte e quatro horas depois não souberes de mim, escreve a Frederico Friedlann, posta restante, Lisboa. Elle te procurará no logar que indicares e te dirá onde estou. — Adeus. — F