XIII

Novas discussões



TINHAM de esperar a meia-noite, pois só a essa hora os duendes da floresta saem de suas tócas. Para matar o tempo o saci começou a explicar a Pedrinho o que era a vida noturna das matas virgens.

— Você nunca poderá fazer ideia da vida encantada das florestas, disse ele. Porque a floresta tem duas vidas: uma os homens conhecem a vida das plantas que a compõem e a vida dos animais que a povoam...

— Essa nós sabemos, afirmou Pedrinho com a presunção de quem já havia lido alguma coisa da Historia Natural. Tenho em casa varios livros que contam tudo.

— Tudo? repetiu o saci, dando uma risadinha. Os livros dos homens só contam um pedacinho. O que existe na floresta é tanto que não cabe nem num milhão de livros. Basta dizer que para cada inseto seria preciso um livro inteiro para contar toda a vidinha dele. Ora, quantos insetos diferentes ha na floresta? Milhões...

— Você, seu saci duma figa, gosta de fazer pouco na ciencia dos homens. Mas ao menos nós, homens, escrevemos tudo o que sabemos nos livros. Se vocês, sacis, fizessem o mesmo, então sim, poderiam criticar. Mas não fazem. São uns burrinhos analfabetos.

— Nós sabemos de tudo por adivinhação. Já nascemos sabendo e não temos necessidade de andar lendo em livros coisas que os outros aprenderam. Porisso não temos, nem queremos ter livros. Mas cada vez que vejo dona Benta ler algum daqueles livros de que ela faz tanto caso, ponho-me a rir. Os homens, quando não sabem das coisas, vão inventando com o maior caradurismo.

— Sim, mas isso quando fazem romance. Quando escrevem livros de ciencia, é tudo ali direitinho como a realidade. — A realidade! exclamou o saci sorrindo. Lá sabem eles o que é a realidade... Você, por exemplo, que é um homenzinho, nem sabe o que é realidade.

— Sei, sim. Realidade é o que é.

— E que é o que é? perguntou o saci com uma carinha muito brejeira.

— Que pergunta tola! exclamou Pedrinho. Desde que o que é, é, não sei de maior bobagem do que perguntar que é o que é. Vóvó diz que perguntas assim se chamam “jogos de palavras”. Em vez de perdermos tempo com jogo de palavras, vamos ao que serve. Conte-me o que sabe da vida da floresta.

— Sei tanta coisa que o dificil é começar, respondeu o saci.

— Todas as coisas começam pelo principio, disse Pedrinho. Se você começar pelo principio, não terá dificuldade nenhuma em começar.

— Isso é facil de dizer, replicou o saci, mas na realidade não ha começo nem fim de coisa nenhuma. Que é que você chama começo?

— Sabe do que mais, senhor saci? O senhor já está me aborrecendo com essa filosofia. Se continua assim, enfio-o na garrafa outra vez e nunca mais o solto. Conte o que sabe e não amole.

O saci estava de veia naquela noite, preferindo discutir a contar historias. Mas a ameaça de Pedrinho o fez mudar de tom. Deu um suspiro e começou.

— Ha uma coisa na floresta que os homens nem por sombras conhecem. E´ a significação das coisas. Tudo aqui tem sua significação, e tudo é dirigido pelos duendes noturnos. Você, por exemplo, sabe que uma certa flor tem certo perfume e certa forma, mas não sabe por que motivo ela tem esse perfume e essa forma. Tambem não sabe por que umas plantas são venenosas e outras não, nem sabe por que as minhocas vivem dentro da terra em vez de viverem no galho das arvores, como as flores.

— Isso são modos de ser de cada criatura, disse Pedrinho. E´ da natureza de cada uma.

O saci sorriu.

— Que ingenuidade e que presunção! Você criticou-me, mas está fazendo tambem um jogo de palavras. Ah, se fosse contar tudo quanto sei...

— Se eu fosse, uma figa, ouviu? Você prometeu e tem de contar tudo quanto sabe, senão...

— Escute, Pedrinho. Vou contar só o pedaço mais importante. Escute.

— Não precisa recomendar tantas vezes. Não sou surdo.

— Vou contar a historia de duas criaturas que nos trazem a todos aqui de canto chorado. Eu, por exemplo, que sou um coitadinho, passo os meus dias como joguete dessas criaturas, ora nas mãos de uma, ora nas mãos de outra.

— Conte logo e não amole.

O saci tossiu um pigarrinho e começou.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.