Há, repetimos, nomes, como acaba de lêr-se, que figuram na primeira como nesta segunda série — autores de Vilhancicos, tout court. Não admira. Nos Vilhancicos que nós estudámos, e de que passamos a apresentar uma notícia bibliográfica, não se nos depara nunca o nome do autor, nem da musica, nem do verso. E compreende-se. Os Vilhancicos constituíam uma espécie ligeira enquadrada num scenário mais amplo e de linhas mais vistosas. Apagavam-se, pois, sumiam-se, na sua pequenez. O que os seus autores pretendiam era preencher um número daquela espectaculosa representação eclesiástico-teatral desempenhada nas igrejas, quer da côrte e destinada a um pequeno escol da sociedade, quer do povo, para ser por todos ouvida e apreciada. Era um espectáculo para os olhos e para os ouvidos. A alma andaria longe. Mas que fazer? Era o jugo despótico da moda, era o gôsto doentio das diversões e das inovações. Afagava-se a sensualidade sob a côr dum misticismo, que tinha tudo de aparente e nada, positivamente, de real, nada que tocasse a espiritualidade, que erguesse nobre e dignamente os corações para Deus. Doíam-se as almas simples e bondosas, as que aspiravam a impregnar-se do verdadeiro sentimento religioso. Bem reconheciam que a profanação invadira as portas dos templos assemelhando-os a circos ou a tablados de ostentações mundanas.

O divino Menino Jesus, que teve sempre no seu Natal e na adoração dos Reis Magos o culto mais enternecido e popular era, sem dúvida, afinal, o mais profanado com tal ostentação, que mais parecia de autenticos entusiastas de Apolo e de Euterpe, que de adoradores do Verbo Encarnado, a Quem se prestasse veneração no seu mistério mais augusto.

E como não haviam as almas de admirável perfeição cristã, da têmpera da de Manuel Bernardes, a quem se deve a mais formosa, enternecida e poetica das invocações:


«Menino de minha alma, meo eterno nascido de inda agora, meo gracioso mòlhinho de amores perfeitos, minhas belezas encantadoras do coração humano, faze-me serafim, para que te ame muito; dá-me limpeza grande em meos labios para calçar teos pèsinhos de mil osculos santos, deixa cair das conchinhas de teus olhos uma lágrima sobre meu peito para que se abrande e acenda em claridade divina!…»

como não haviam elas de contristar-se até à revolta perante tantas exterioridades sem significação, tantas profanações ostentosas, brilhantes, mas sêcas, sem o hálito bendito da fé interior?

Certo é que os Vilhancicos uma vez integrados no culto religioso ràpidamente se desenvolveram descendo da Côrte até o povo, das Catedrais até ás humildes igrejas, sendo de crêr que na maioria dos casos se não fizesse mais que repetir o que já se praticava em épocas anteriores e em identicas solenidades.

A mesma música, portanto, e a mesma letra soariam de lés a lés de Portugal, onde houvesse função religiosa de tom.

Depois veiu o silêncio e a morte. Por fim o esquecimento. E nem mesmo já os ecos dêsses Natais tam celebrados em descantes populares, que saíram dos templos para virem bracejar cá fora mais libérrimos, com seu scenário, sua indumentaria, sua dialogação típicos, logram quáse divisar-se, depois de se haverem refugiado, como que corridos pela vaga do chamado progresso, nos recônditos das mais humildes aldeias…

Passemos a apresentar uma nota dos Vilhancicos, que até agora conseguimos estudar. Examinemo-los primeiro no seu aspecto de curiosidade bibliográfica, antes de lhe devassarmos, por assim dizer, a alma, a psicologia. É o recheio de quatro interessantes volumes, que oferecemos ao leitor, dos quais destacaremos, em apêndice a êste trabalho, um, completo, para exemplificação do género. ([1])

  1. Não haverá nas Bibliotecas do País materiais para aumentar a nossa colheita? Outros o dirão. Inocêncio no seu Dic. Bibliogr. cita: 1) Vilhancicos que se cantaram na Capela do Príncipe D. João, Duque de Bragança, nosso Senhor. Evora, 1637. Título, elucida o prestimoso investigador (VII. 450), transcrito do Catálogo da Academia. No tomo XX, 18, aponta mais: 2) Vilhancicos que se cantaram na Real Capela do rei D. João IV, Lisboa, 1642. E cita identicos de 1643, 1644, 1645, 1646 (dois). Outros contados na Capela Real no tempo de D. Afonso VI, sendo o 1.º de 1657 e o último de 1664; outros, em dois tomos, do tempo de D. Pedro II; outros num volume, do tempo de D. João V, sendo o último de 1720 (Ob. e log. cit.). Serão os mesmos ou alguns dos que descrevemos? O Sr. Prof. T. Braga dizendo que os Vilhancicos tiveram o seu desenvolvimento desde 1662 até 1715 afirma que «na Biblioteca da Universidade existe esta imponente colecção» Hist. do Teatro Português no séc. XVIII, Pôrto, 1871, pg. 327). Mas a colecção da Biblioteca de Coimbra é a que forma o tomo IV, que adeante descrevemos. E se é «imponente», o que não contestamos, como chamaremos á colecção acrescida de mais três tomos?