Página:O precursor do abolicionismo no Brasil.pdf/122

114
SUD MENNUCCI

Eu não quereria penetrar os umbrais desse capítulo nauseante nem chafurdar no lodaçal dessas memórias, remontando o curso da baixeza humana, como si percorresse as “bolgie” dos círculos dantescos. Tenho de fazê-lo, porem, e a contragosto. Não posso evitá-lo, se quero deixar de Luiz Gama uma noção menos inexata e menos incompleta de seu perfil moral, tentar fazer compreender porque esse homem, nascido incontestavelmente para outros vôos, no campo inteletual, se entregou, de corpo e alma, á causa negra, tendo sido o verdadeiro precursor da acção abolicionista, no Brasil.

O primeiro desapontamento, profundo, enervante, contristador, que a escravidão reservava a um homem com a privilegiada inteligência de Luiz Gama, foi o verificar que a sociedade brasileira em peso considerava o negro como não sendo gente. São inequivocas, convincentes e unânimes as manifestações nesse sentido, que punham o escravo debaixo do ponto de vista do direito romano: “non tam vilis quam nullus”. Incorporavam-no, concientemente, á categoria dos brutos, assim á moda de uma sub-ordem dos simios, grupo ou familia dos catarrinios. A classificação de “folego-vivo”, que se lhe dava nos engenhos, respondia cabalmente ao conceito fundamental de que os negros não se diferenciavam em nada dos demais semoventes que a propriedade comportava. E o regime de servidão que se lhes aplicava não só não constituia crime algum, mas era, ao contrário, a única forma de proteção e defesa do próprio negro, como as jaulas e as gaiolas dos animais, nos jardins zoológicos,