CAPITULO XXXII

Do regresso á Ilha do Sr. de la Ravardiere e de alguns Principaes, que o seguiram.


Com a chegada da barca portugueza o Sr. de Pezieux escreveo ao Sr. de la Ravardiere e expedio uma canôa para tal fim, descrevendo o estado em que nos achavamos e prestes a sermos sitiados em breve tempo.

Gastou a canoa tres mezes na viagem, e sciente destas coisas partio logo que poude em direcção da Ilha, afrontando perigos, que muitos são n’estes mares; porem de coisa alguma nos serviria sua actividade, porque se n’esse intervallo soffressemos o cerco seriamos já então vencedores ou vencidos.

Esta interrupção da viagem do Amazonas causou muito mal a Colonia, porque se teria colhido muitos generos pelas margens dos rios, muito mais povoados de selvagens de diversas nações do que a Ilha, Tapuitapera, Comã e Caieté.[NCH 50]

São mais pacificos, e bem providos de algodão.

Quanto mais pobres e necessitados de machados, foices, facas e vestidos, tanto mais facil é a troco de qualquer d’estes objectos alcançar grandes riquezas.

Outro prejuiso soffreo a Colonia dos francezes, porque achando-se muitas nações resolvidas a aproximarem-se da Ilha, por ahi residirem e fazerem suas roças, vindo com o Sr. de la Ravardiere, ao saberem taes noticias dos portuguezes, resolveram suspender a execução do seo plano, e esperar o resultado dos negocios.

Chegando o Sr. de la Ravardiere proseguio-se activamente nas obras dos Fortes das avenidas da Ilha, montando-se-lhes artilharia e dando-se-lhes guarnição.

Passados alguns dias achou-se acompanhado por muitos guerreiros selvagens, que vieram para a Ilha, e entre elles estava o Arraia grande dos Caietés, selvagem pelos seos muito estimado, valente, bom conselheiro, e de tal influencia, que os seos companheiros o seguem, trabalham e abraçam inteiramente as suas ideias, o que foi muito util aos francezes visto assim terem muitos homens dedicados, e occupados no serviço.

Pouco antes da viagem do Amazonas alguns bregeiros espalharam entre os Caietés do Pará, que sob o pretexto dessa viagem iam os francezes captival-os.

Esta noticia aterrou-os de tal forma, que muitos ja estavam resolvidos a deixar suas casas, e a buscar outro lugar quando o Arraia grande por seos discursos lhes fez vêr quanto era infundado o seo receio, dizendo então muito bem dos francezes.

Elle, sua mulher, e alguns parentes acompanharam uma barca, que ia da Ilha para o Pará em busca dos generos do paiz, ahi mui preciosos.

Quiz a infelicidade que, no regresso para a Ilha, naufragasse a canôa por estar muito pesada duas legoas longe da terra.

Despresaram todas as riquezas, procurando salvarem-se agarrados a um pedaço da escotilha, a uma taboa, ou ao bote.

Esperou o Arraia grande, que todos procurassem meios de salvarem-se, e afinal elle, sua mulher, e um interprete francez si puzeram a nadar animando elle a todos com estas palavras — «a morte é invejosa, vêde como atira estas ondas sobre a nossa cabeça afim de nos arremeçar no abysmo, mostremos-lhe que somos ainda fortes e valentes, e que não é chegado o tempo de nos levar.»

Salvaram-se todos em varias ilhas não habitadas, excepto um francez, victima de tubarões.[NCH 51]

Vendo o Arraia grande os francezes nús e famintos, em lugares estereis e cercados de mar, atirou-se ás ondas, a nado atravessou grande espaço cheio de mangue desembaraçando-se á muito custo das raizes destas arvores, e do tujuco onde as vezes se enterrava até o pescoço.

Chegando a aldeia dos seos similhantes animou-os a virem com algumas canoas, vestidos e viveres, e depois que todos regressaram ás aldeias defronte do lugar do naufragio, elle lhes entregou tudo quanto haviam perdido, e que o mar tinha atirado ás praias.

Outr’ora este indio, n’um navio de São Maló, veio a França, onde se demorou um anno pouco mais ou menos, e em tão pouco tempo aprendeo a fallar francez, e ainda hoje se fazia entender bem, embora ja se houvessem passado muitos annos, e tem tão bom juiso e memoria que ainda hoje conta varias particularidades, que la existem.

Não trato do estado espiritual, e nem do que me disse relativamente ao Christianismo, porque deixo isso para o seo lugar proprio, mas quanto ao temporal muitas vezes o ouvi dizer aos seos similhantes, e especialmente aos Tabajares do Forte de São Luiz, «que os francezes eram fortes, que habitavam um paiz grande, abundante de boas comidas, de muito vinho, de pão, de boi, de carneiro, de galinhas, de muitas especies de ovos, e de grande variedade de peixes: que suas casas eram construidas de pedras, cercadas de grossos muros, onde estava assestada grossa artilharia, batendo o mar na base da muralha, ou então sendo esta circulada de fossos cheios d’agoa.

«Pelas ruas estão lojas de todos os generos. Andam a cavallo, e os Grandes, ou melhor os Principaes são acompanhados por muitas pessoas, como o Sr. de la Ravardiere, residente perto da cidade, onde cheguei.

«O Rei de França mora no centro do seo reino, n’uma cidade chamada Pariz. Os francezes aborrecem, como nós, os Peros, e lhes fazem guerra por terra e por mar, e sempre com vantagem, porque são fracos os Peros, valentes e animosos os francezes como nenhuma outra nação, e eis a razão porque não devemos temer aquelles visto estes nos defenderem. Alguns maldizentes de nossa gente espalharam não terem os francezes podido tomar os Camarapins, porem isto é falso. Cumpriram seo dever e si os Tupinambás tivessem querido ajudar-nos, seriam agarrados, porem o chefe dos franceses condoeo-se d’elles, e não quiz que todos fossem queimados como aconteceo em parte.»

Fez este e outros discursos similhantes, e depois percorrendo a Ilha, em cada aldeia os repetia nas reuniões na caza grande.

Procurando imitar a maneira porque entrou na grande praça de São Luiz, não só para saudar os Tabajaras, como tambem para ajudar os francezes, dispoz elle a sua gente, em numero de cem a cento e vinte, um a um, ou um atraz do outro, e assim por diante.

A uns deo cabaças, panellas, e rodela, e a outros espadas e punhaes, a estes arcos e flexas, a aquelles differentes instrumentos, dividindo os tocadores de Maracá[NCH 52] pelas desenas, e assim percorreram a habitação dos Tabajaras, e depois foram á praça grande do Forte, onde estavamos, e ahi acabaram suas danças, muito similhantes a dos Pantalons, andando e fazendo mesuras, batendo todos ao mesmo tempo com o pé em terra, ao som da voz e do Maracá, cujo compasso todos observavam entoando sempre louvores aos francezes.

Mechiam em todos os sentidos a cabeça e as mãos, com taes gestos que faziam rir as pedras.

Chamam os Tupinambás a esta dança Porasséu-tapui, quer dizer, dança dos Tapuias, porque era outra a dança dos Tupinambás, sempre em roda e nunca mudando de lugar.

Acabada a dança, veio saudar-nos, e foi comer e descançar na casa, que se lhe havia preparado.