CAPITULO XXXIV.

 
Carlos,

Georgina e Fr. Diniz. — A peripecia do drama. —

Carlos estava meio sentado meio deitado n’uma longa cadeira de recôsto; Georgina em pé, com os braços cruzados e na attitude de reflexiva tranquillidade. Um sol brilhante e ardente, um sol de maio, feria os estreitos vidros da pequena janella que so dava luz áquelle quarto: a excessiva claridade era velada por uma longa e ampla cortina.

Carlos lançou derepente a mão a essa cortina e a affastou para avivar a luz do aposento. Um raio agudissimo de sol foi bater direito no macerado rosto do frade, e reflectiu de seus olhos incovados, um como relampago de íra celeste que fez estremecer os dous amantes.

Não foi porêm senão relampago; sumiu-se, apagou-se logo. Aquelles olhos ficaram mortaes, mudos, fixos, invidraçados como os de um homem que acabou de expirar e a quem não cerraram ainda as palpebras.

E assim mesmo aquelles olhos tinham o podêr magnetico de fixar os outros, de os não deixar nem pestanejar.

Curvo, incostado a um bordão grosseiro, o seu chapeo alvadio debaixo do braço, o frade deu alguns passos tremulos para onde estavam os dous, arrastando a custo as sôltas alpercatas que davam um som baço e batido, e faziam — não sei por quê nem como — estremecer a quem as sentia.

Parou a pouca distancia, e tirando a voz fraca e tenue, mas vibrante e solemne, do íntimo do peito, disse para Carlos:

— 'Tu mal disseste-me, filho, e eu venho perdoar-te. Tu detestas-me, Carlos, de todos os podêres da tua alma, com toda a energia de teu coração; e eu venho-te dizer que te amo, que tomára dar a minha vida por ti, que do fundo das intranhas se ergue este immenso amor que não tem outro egual, a pedir-te misericordia, a clamar-te em nome de Deus e da natureza, a pedir-te, por quanto ha sancto no ceo e de respeito na terra, que levantes essa maldicção, filho, de cima da cabeça de um moribundo.'

Eram dittas em tal som estas vozes, vinham pronunciadas lá de dentro d’alma com tal vehemencia, que lh’as não articulavam os labios, rompiam-n’os ellas e sahiam.

O soldado parecia desaccordado, confuso e sem intelligencia do que ouvia. Georgina impassivel até alli, rigida e inabalavel com o seu amante, sentia commover-se agora d’aquella angústia do velho. É que partia pedras a dor que vinha n’aquellas fallas sepulchraes, que trassudava d’aquelle rosto cadaverico.

Ao mesmo tempo, um som confuso, um tumulto vago e abafado de mil sons que pareciam arredar-se, incontrando-se, tornando, indo e vindo, e dispersando-se para se tornar a unir, e tornando a dispersar-se emfim, reboava ao longe pela villa, extendia-se nas praças, concentrava-se nas ruas, e mandava áquella solitaria e remota cella do convento uns echos surdos, como os do mar ao longe quando se retira da praia no murmurar melancholico que precede um temporal d’equinoxio.

— 'Ouves esse borburinho confuso, Carlos? É a tua causa que triumpha, é a d'estes loucos que succumbe, é a de Deus que a si mesmo se desamparou. A hora está chegada, escreveram-se as lettras de Balthasar; a confusão e a morte reinam sos e senhoras na face da terra. Eu quero ir morrer onde haja Deus... Perdoae-me, Senhor, a blasphemia!.. onde o seu nome não seja profanado e malditto...

Ao canto de uma pedra, debaixo de uma árvore hade ser, n’algum logar escuso d’essas charnecas, onde me não rasguem aomenos ésta mortalha, e m’a não insultem nos ultimos instantes, porque eu sou frade, frade, frade... o malditto frade! Mas frade quero morrer, e heide morrer. Oh! assim tivera eu vivido!’

— 'Mas que foi; que succedeu?' — 'O resto do exército realista evacua n'este momento Santarem; vão em fuga para o Alemtejo. Os constitucionaes venceram na Asseiceira, e tudo está ditto para nós. Para mim, Carlos, falta uma palavra so: quererás tu dizê-la?’

— 'Eu?'

— 'Sim tu, Carlos. Revoca as palavras terriveis que proferiste, e em nome de Deus, filho, perdoa a teu...'

A Carlos revolvia-se-lhe no peito uma grande lucta. O horror, a compaixão, o odio, a piedade iam e vinham-lhe alternadamente do coração ás faces, e tornavam do rosto para o peito. Uma exclamação involuntaria lhe rebentou dos labios em meio d’este combate:

— 'Padre, padre! e quem assacinou meu pae, quem cegou minha avó, e quem cubriu de infamia a minha... a toda a minha familia?'

— 'Tens razão, Carlos, fui eu; eu fiz tudo isso: mata-me. Mas oh! mata-me, mata-me por tuas mãos, e não me maldigas. Mata-me, mata-me. É decreto da divina justiça que seja assim. Oh! assim meu Deus! ás mãos d'elle, Senhor! Seja, e a vossa vontade se faça...’

O frade cahiu de bruços no chão, e com as mãos postas e extendidas para o mancebo, clamava:

— 'Mata-me, mata-me! aqui ha pouca vida ja: basta que me ponhas o pé sobre o pescoço; esmaga assim o reptil venenoso que mordeu na tua familia e que fez a sua desgraça e a de quantos o amaram. Sim, Carlos, sê tu o executor das íras divinas. Mata-me. Tantos annos de penitencia e de remorsos nada fizeram; mata-me, livra-me de mim e da íra de Deus que me persegue.'