"Doida não!" Antes vítima/Á Ex.ma Snr.a D. Maria Adelaide Coelho da Cunha

A' Ex.ma Snr.a D. Maria Adelaide Coelho da Cunha
 

 

Minha Senhora

 

Diz a consciência do mundo escravo dos antigos e barbaros rituaes, brahmanicos, inquisidores sinistros da mulher, que a paixão e o abandono conjugal de V. Ex.a são um crime. E dizem os peritos psiquiatras que ha uma demência. Será qualquer das duas sentenças a expressão da verdade? Não sei. O que sei é que os actos só podem julgar-se segundo as causas, as circunstâncias e a exactidão dos detalhes.

Quanto à classificação de demência, não sei se é justa, porque nem sempre os psiquiatras estão á altura de julgar os devaneios ou fraquezas do curação, Mas, crime ou demência, consoante quer que seja a sociedade culta, a que tanta cultura falta, não impede êsse facto que se manifeste reverência pública e desassombrada pelas virtudes de uma pecadora-redentora.

Não ha santo que não tenha sido antes um pecador. E, quanto maiores teem sido os seus pecados, mais excelsa tem sido tambem a sua santidade de convertidos.

E a alma heroica e, sublime de Santa Tereza de Jesus a bússola espiritual e iluminadora, que paira eternamente por sobre a alma espiritual da Espanha. É a musa ideal e mistica das mais sublimes inspirações. Evocá-la, é perpetuar uma emanação de misticismo religioso e poético, ungido de heroicidade e renúncia. Predestinou-a o céo a perdurar no santuário das almas, como evaporação de piedade, de amor e altruismo feminino.

Poderia exercer-se tamanho influxo de amor espiritual e imperecivel; poderia dar-se essa transcendente receptividade de atracções, se Santa Tereza de Jesus não houvera sido uma grande amorosa?...

De cada beijo de fogo dos seus lábios entre-abertos em extasis de paixão, divina ou profana, jorraram miriades de constelações ideaes e sublimes. O fluido magnético do seu sêr vibrátil e ternissimo, foi como que um derramamento de amor que vivificou, que fecundou, como um eflúvio divinal, electrisando as energias do sentimento e da ideia, em fulgores de claridade celestial e purificadora.

É um crime, a paixão de V. Ex.a?

Crime ou pecado, fragilidade ou devaneio, condensados em paixão avassaladora, nem por isso qualquer dessas classificações várias e variáveis, impede a justiça e o direito de outras classificações. Ponho de parte a discussão das primeiras para me fixar no direito de julgar e classificar as segundas como manifestações de virtude que realmente existe.

Todos nós temos perfeito ou imperfeito. Mas ha perfeições tão superiores, que diminuem sensivelmente o efeito de todas as imperfeições. A bondade é a virtude mais nobre das creaturas.

É V. Ex. dotada desse formoso condão. Não é apenas pelo que V. Ex. conta da história da sua vida, que essa bondade se acredita e se revela.

As palavras são o Verbo. O Verbo é a irradiação da Luz interior, é a essência subtil do incorpóreo. E é essa Luz e essa essência que surpreende no todo espiritual de V. Ex.a, quem detalhadamente lhe analisar a alma.

Provou V. Ex.a que é bondosa em actos evangélicos da sua vida. Com o magnetismo da sua bondade curou chagas de corpo e alma, medicando e consolando. Adejando á beira das agonias de enfermos e moribundos[1], como aparição de graça espiritual, palpitando em caricioso afago de piedade, semeou confortos e cultivou glórias em desvelos de altruismo,

Foi afável com os serviçais e tolerante para com os seus defeitos. Afagou crianças e amparou velhinhos. Levou para o seu lar um infinito de sonhos com azas irisadas nos poéticos e suavissimos matizes da ternura, na caricia dos ideais anceios.

Fremente de amor, sonhara amar muito para muito ser amada. Que gorgear festivo de arroubos sentimentaes a idealisar alegrias sem fim, no ninho brando das suas nupcias, que seriam o róseo prelúdio da harmonia conjugal?

Mas por sobre o palpitar translúcido desses sonhos vaporisados de poesia e sentimento, pairava uma atmosféra de egoismos sociais que reveste de securas exteriores as almas superficialmente agrestes que o destino liga ás almas sensitivas. O sôpro letal estiolou o viço dêsses sonhos. E sobre as cinzas dêsses sonhos, derramou-se u orvalho dorido das lágrimas. Formaram rosários de dôres, essas lágrimas. A alma converteu-se em esponja de fel. E êsse fel transformou-se lentamente em veneno de indignação e revolta.

Aprazia-se a alnia ardente em semear consolos. Amável e piedosa, consolava-se de que lhos restituissem aqueles a quem mais prodigamente os dispensava. Na fase em que dôres e fel acumulados, e reacções fisiológicas e psiquicas dispõem a paixões dominadoras, consolos dados prodigamente a alguem mais humilde e humildemente retribuidos, produziram um choque de almas que não conhece distancias nem castas, porque se chama amor. E o amor tem só uma lei natural, que é a atracção, sem lei, do proprio amor.

Foi um amor profano desabrochando em filtros de paixão delirante, da pura e evangélica fragrância do amor divino e cristão? Seja o que for, não é uma paixão vulgar, não é um impulso material de instintos genésicos. É um magnetismo de elementos consubstanciando-se e atraindo-se para determinados e ignorados fins.

É filho desse amor e dessa paixão emocionante, expiada em torturas, o amor e a paixão com que busco agitar nas turbas o sentimento da justiça e da verdade, que é um clarão de amor humanitário nestas páginas de protesto.

Chamando-lhe uma radioactividade de ambres humanos para atingir a pureza do divino, talvez se encontre uma de- finição contida nas leis do magnetistno universal.

 
 

Invoquemos, no entanto, a divina palavra de Cristo para julgar um pecado redentor, exclamando: «Aquele que de vós não pecou atire-lhe a primeira pedra».

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Cinjida a essa máxima, confundo as minhas lágrimas de atribulada com as lágrimas de uma vitima de acontecimentos lamentáveis e funestos. E rendo culto público e sincero á bondade que se exprime nos traços fisionómicos de V. Ex.a e que rescende da ternura da sua alma de mulher amorável e piedosa. Porque amorável e piedosa é a alma de mulher que estes pensamentos exprime no expandir da vocação que outro amor e outra fé não deseja alimentar alêm do que se contem nesta divisa: «Amar o próximo como a nós mesmos».