Vivemos num pais onde vigora a lei do divórcio.
Essa lei é estabelecida em principios de moralidade,embora descambe em abusos imoralissimos. Mas êsse desvio não é efeito da própria lei, antes é proveniente da decadência anterior dos costumes e dos caracteres.
Admite a mesma lei, como base de moral salutar, o direito de separação dos cônjuges desde que uma flagrante incompatibilidade os desharmonisa, ou existam razões, quer intimas quer públicas, que justifiquem a separação, o abandôno do lar, e certo sentimento de aversão e repulsa que a mulher começa de sentir na vida conjugal quando melindrados os seus mais delicados sentimentos, deprimida a alma e ferida a susceptibilidade dos instintos.
Dadas tais circunstâncias, o amôr está morto. E a morte do amôr é a dissolução do matrimónio e um passo para o adultério.
Morrera o amôr no caso de que se trata. De há muito debandara do lar aquela doce esperança de ternura e harmonia que é a andorinha amorável dos afectos, fazendo ninho no coração dos esposos. Em virtude de circunstâncias especiais, não se efectuára o divórcio, algumas vezes solicitado depois de vários e repetidos contlitos.
Explica a Snr.a D. Maria Adelaide, que renunciára a essa separação para evitar os prejuízos que recairiam sobre seus irmãos, associados à emprêsa do Diário de Noticias e para se não vêr privada da companhia do filho.
O divórcio estava porém infelizmente consumado. E, numa hora fatal, chegou o momento da perdição.
Os lábios sequiosos de carinhos, libam o venenoso filtro que enlouquece. E a razão vacilou entre o dever que prende ao lar e a revolta contra todos os preconceitos que leva ao abandôno da casa, da familia e da sociedade.
Existe um delito. Não o contesto nem o aplaudo.
Mas o castigo tomou um aspecto de furôr violento que reviveu os lances da tragédia helénica do Sofocles.
Tiveram muito de trágico e de odioso os casos passados depois do abandôno do palácio luxuoso onde reinava a opulencia, mas não habitava o amôr, a paz e a felicidade.
E o que deveras impressiona é a violência brutal e o rigôr deshumano dos esbirros policiais[1] exercido na éra das democracias, contra uma mulher franzina, delicada, que haveria o direito de rehabilitar da queda, atribuida a causas mórbidas e que imprudentemente se lançara nos perigos do descrédito, expondo a familia a sobressaltos e desgôstos. Mas maltratá-la com violências, expô-la a maiores humilhações e afrontas, fazê-la deitar numa taberna imunda sobre um monte de palha; levá-la à fôrça por serranias ingremes montada violentamente num cavalo sem aparêlhos próprios, coberta de neve, tiritando de trio, ouvindo grosserias e insultos que só ás rameiras é licito dirigir, é, em verdade, um desencadear de fúrias que ressurgem direitos bárbaros, fazendo da mulher objecto de total sujeição amaldiçoada pelas cóleras de Némises, a Deusa mitológica das iras fulminadoras.
Após esta punição, o pavôr do manicomio. Mas, em toda a sua verdade rude e cria, o facto explica-se e justifica-se . O esposo ofendido leva a quantos procedem suburdinados ás suas ordens, um frémito de irada indignação. Envenenado o coração de ódio e de máguas, sedento de vingança e agitado de despeitos, nada mais vê do que a sua tortura, o seu intimo desespero, a sua honra ferida.
Conjugam-se nesse estado de alma o furôr de Othelo, que, nas mãos brutais do mouro impetuoso, estrangulára a nívea garganta da Desdemona. E as vinganças de Hamlet quando fere a alma candida de Ophelia com os dardos do sarcasmo, exclamando em impetos de irónica e implacavel revolta que a si mesmo se condena e ofende:
«Sou vingativo, duro, orgulhoso, exaltado,
De tantas tentações a um só tempo assaltado,
Que nem as sei dizer, nem as contar consigo.
E todos, afinal, parecem-se comigo:
Nós, entre a terra e o céu, rastejamos no mundo,
Inuteis animaes dentro de um charco imundo...
Entra para um convento, homem nenhum merece
Uma lagrima, nun beijo, nm suspiro, uma prece...
Entra para um convento... Adeus!... "
Shakespeare agitou na tragédia emocionante a história de todas as paixões, de todas as cóleras e de todos os amôres. E se o destino elegeu a alma de um poeta para viver em realidade essas paixões, é que decerto a predestinára para as grandes e fundas dores que se transfundem em luz ideal — «Padeci, logo vivi e criei», eis a legenda do alívio e da resignação, que inspirará na odisseia das suas angústias a alma do poeta que delas deve fazer uma epopeia magistral para apontar à humanidade o trilho da virtude apartando-a de erros, de vicios e maldades.
- ↑ Do capitulo do livro «Doida Não!» intitulado «Da Serra ao Tribunal» paginas 39.