Que me recordasse, nunca havia lido versos do snr. Dr. Alfredo da Cunha. Empenhava-me imenso estudar-lhe um pouco a psicologia de poeta. Procurei em todas as livrarias o seu livro intitulado « Versos », mas em nenhuma das que existem no Pôrto o pude encontrar.
Tinha ficado de me arranjar um exemplar o Snr. Bento Carqueja, que procurei para êsse fim. Expirava o praso que estava marcado para a conclusão dos trabalhos tipográficos dêste livro, escrito em menos de um mês, de relance, ao correr da pena e entre constantes complicações e sobressaltos. Nesse mesmo dia encontrei o Sr. Bento Carqueja. Perguntei-lhe pelo livro. Não tivera tempo de o procurar, respondeu-me. Deliberei ir á Biblioteca.
Fazia um calôr de calcinar.
E já eram perto de cinco horas e meia. Galguei de um fôlego a rua 31 de Janeiro para chegar á Biblioteca antes do encerramento.
Cheguei ali ofegante. Já estava próxima a hora de fechar. Mas, por deferência especial, concederam-me o volume desejado intitulado « Versos ».
Abri-o sôfregamente, anciosamente, E na pagina que se desdobrara ante os meus olhos sequiosos de profundar no ritmo cadenciado das estroies, a alma misteriosa do poeta, surpreendi logo o título sugestivo desta eloquente poesia:
Pobres velhinhos sem filhos
Tristes crianças sem pais!
Presos nos duros cadilhos
Das sous destinos fatais,
Clemendo iguais estribilhos,
Chorando prantos iguais,
Da vida nos envios trillios
Quem sofre e padece mais,
São os velhinhos sem filhos ?
On as crianças sem país?
Quando terminei, uma neblina de lágrimas selara de enternecimento o último verso. Toda a poesia que desprende lágrimas é inspirada pela emoção. E toda a emoção è ternura, piedade, sentimento.
O pranto é o orvalho dos corações sensiveis que cái sôbre a estiolação requeimante das dôres humanas.
E emquanto numa receptividade de ternura o rocio compassivo do coração aljofrava as misericordiosas estrofes, o meu espírito evocava no silêncio solene e recolhido daquêle templo da sciência, onde parecia adejarem espíritos invisiveis e iluminados, a legião dos párias da desgraça, os macilentos velhinhos andrajosos, as criancinhas de face livida, precocemente enrugada de fome, gemendo, soluçando em litanias de mágua e desesperos que repercutem no coração dos poetas.
« Quem sofre e padece nais,
São os velhinhos sem filhos!
São as crianças sem pais?»
Mas, folheára outra página... E, — ó misterioso redentôr instinto do coração? —passa ante a maguada retina das visionárias pupilas outra precursora alegoria repassada de beleza espiritual e de sublime idealidade contidas neste formoso soneto[1] expressivamente revelador de uma verdadeira alma de poeta:
Cristo prégava. A sua voz divina
Ecoava amorosa em toda a terra.
― No pescador e no pastor da serra,
No velho e na creança pequenina.
César ao ver que um ontro rei domina
Ante a uova realeza que o aterra,
A quem prégava a paz movin a guerra.
Mas Cristo in semeando a sua doutrina...
Vem implorar-lhe a graça redentora
Madalena ― a formosa pecadora ―
Desgrenhado a exbelo, a face em pranto...
E Jesus perdoou, porque eram feitos
Da perdão e do amôr os seus preceitos
― E ela só por amor pecára tanto!...
Dir-se-ia que algum espirito sobrenatural adejava em tôrno dos meus pensamentos e os movia e agitava na direcção da sonhada aspiração de indulgências. Estabelecia-se a cadeia mágica dos eflúvios invisiveis projectados do fluido astral que atrai e galvanisa as almas fundindo-as na substancia ideal que os divinisa apartadas da matéria.
A electricidade da eloquência repercutiu-se na veemência da emoção. Vibrára a corrente das piedosas simpatias que convertem . E naquele instante de eloquente enternecimento senti mais intensamente a dôr das almas feridas que trouxera até junto do meu calvário a cruz de outros calvários de agonias a referver em cachoeiras de amôr e ódio de cólera e vingança.
E á minha imaginação cogitadora apareciam as linhas que em fórma de cruz estabelecem os polos das sensações e dos sentimentos tam sábiamente descritos por Mantegazza na «Fisiologia do ódio»:
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« O amor é a transformação psíquica do prazer, e o ódio a resposta física da dôr, diz o célebre psicólogo.
E ódio e amor, embora opostos, teem a mesma marcha, seguem as mesmas leis de expansão, de simpatia e de evolução histórica. »
E mais adiante diz o revolvedor da alma humana:
« Aos ardentes desejos, correspondem grandes amores; e dôres enormes despertam gigantescos ódios ».
Eis aqui a chave do contraste e do mistério que põe tão frisante diferença entre o homem que com a capa exterior do indiferentismo e da, secura amára sempre, afinal, lá no fundo sensível da alma, a mulher que escolhera para companheira. Mas sacudida essa alma por uma afronta que é uma dor profunda, do amor nasce o ódio gigantesco que o leva a exercer violências impetuosas.
« Assim como temos emoções mixtas de prazer e de dôr (desejo e melancolia) assim temos amores repassados de ódio», diz ainda Mantegazza.
As scenas passadas de «Roção ao Tribunal» — traduzem uma forma de ódio amoroso.
Se o poeta produzisse versos nessa fase de ódio que se desencadeia em vingança, teria blasfemado, teria amaldiçoado. Mas essa manifestação está na ordem das sensações exteriores. O fundo, a essência, a alma verdadeira do homem, é a alma verdadeira do poeta. Foi essa alma em crise de extase e mistica sensibilidade que se inspirou no silêncio e na penumbra sonhadora da nave, para ritmar o mais formoso soneto dos « Versos ». É essa alma que, redimida das fugaces impressões do ódio, porá em relêvo toda a refulgência plena da bondade imitando o divino Mestre de quem disse:
Jesus perdoou, porque eram feitos
De perdão e de amor os seus preceitos.
E Ela só por amor peodra tanto!»
Rezai comigo esta oração de amor e perdão, ó almas que no amor cultivais a redenção de todos os ódios.
Chorai comigo olhos que sabeis chorar, para desfiarmos um rosário de lágrimas sôbre a alma dorida do Poeta que comnosco chorará para acabar perdoando.
Disse Taine que a ternura, a expansão e as lágrimas são o que de mais nobre e dôce existe na vida.
- ↑ Á imagem de Santa Maria Madalena do Anasaco.