Há já longos anos que eu lancei esta fórmula: – Portugal é um país traduzido do francês em vernáculo. A secura, a impaciência, com que ela foi acolhida, provou-me irrecusavelmente que a minha fórmula era subtil, exacta, e se colava à realidade como uma pelica. E para lhe manter a superioridade preciosa da exactidão, fui bem depressa forçado a alterá-la, de acordo com a observação e a experiência. E de novo a lancei assim aperfeiçoada: – Portugal é um país traduzido do francês em calão. E desta vez a minha fórmula foi acolhida com simpatia, com reboliço, e rolou de mão em mão como uma moeda de ouro bem cunhada e rutilante, que é agradável mostrar, fazer tinir sobre o mármore dos botequins. Já a encontrei brilhando num almanaque, numa comédia do Príncipe Real e num sermão. Por que foi este novo, carinhoso acolhimento? Quem sabe? Talvez porque a ideia da vernaculidade desagradava, lembrando pedantismo, caturrice, a Academia das Ciências, o pingo de rapé, outras coisas antipáticas. Enquanto que a ideia de calão nos sugere, sobretudo a nós lisboetas, chalaça alegre, bacalhau de cebolada, Chiado, Grémio, pescada frita nas hortas, em tarde de sol e poeira, e outras delícias, de que eu, ai de mim, estou aqui privado!

Em todo o caso, ou à maneira de Curvo Semedo, o clássico, ou à maneira do Zé Pinguinhas, o fadista, é evidente que há quarenta anos, desde a Patuleia, Portugal está curvado sobre a carteira da escola, bem aplicado, com a ponta da língua de fora, fazendo a sua civilização, como um laborioso tema, que ele vai vertendo de um largo traslado aberto defronte – que é a França. Quem dependurou ali o traslado para que Portugal copiasse, com finos e grossos? Talvez os homens de 1820; talvez os românticos da Regeneração. Eu não fui; – tenho sido acusado com azedume, nos periódicos, ou naqueles bocados de papel impressos, que em Portugal passam por Periódicos, de ser estrangeirado, afrancesado, e de concorrer, pela pena e pelo exemplo, para desportuguesar Portugal. Pois é um desses erros de Salão, em que tão fértil é a frivolidade meridional. Em lugar de ser culpado da nossa desnacionalização, eu fui uma das melancólicas obras dela. Apenas nasci, apenas dei os primeiros passos, ainda com sapatinhos de croché, eu comecei a respirar a França. Em torno de mim só havia a França. A minha mais remota recordação é de escutar, nos joelhos de um velho escudeiro preto, grande leitor da literatura de cordel, as histórias que ele me contava de Carlos Magno e dos Doze Pares. Havia aí certamente grandes lições de valor, de lealdade, de heroísmo: mas eram virtudes cavalheirescas que se provavam todas nos montes da Provença ou de Navarra. De cavaleiros portugueses, que dessem cutiladas nos mouros, nunca me contaram história alguma à lareira. Também o meu preto lia contos tristes das águas do mar. Eram as aventuras de um João de Calais. As naus afundavam-se, os gajeiros gritavam terra, mas era tudo em frios mares da Bretanha. De navegadores portugueses, em galeões portugueses, não me contaram jamais história alguma à lareira.

Depois ensinaram-me a ler: e o Estado, que certamente tinha interesse em que eu soubesse ler, e que, por meio das suas Repartições Públicas, estudara prudentemente o livro que melhor me convinha, como lição moral, e como lição patriótica, meteu-me nas mãos um volume traduzido do francês e chamado Simão de Nântua. Eram as aventuras de um justo: abundavam lá os exemplos de modéstia, de diligência, de caridade, de pudor; mas todas estas virtudes, suaves e íntimas, se exibiam longe, em Dijon, na Alsácia, e nas estalagens da Picardia. De sorte que, para mim, todos os justos, bem como todos os heróis, só em França se produziam na perfeição, como os espargos, nessa França de onde tudo que é amável vinha, de onde eu mesmo viera, como outras crianças, num açafate de alfazema e cravo. Depois, comecei a subir o duro calvário dos Preparatórios: e desde logo, a coisa importante para o Estado foi que eu soubesse bem francês. Decerto, o Estado ensinava-me outras disciplinas, entre as quais duas, horrendas e grotescas, que se chamavam, se bem recordo, a Lógica e a Retórica. Uma era destinada a que eu soubesse bem pensar, e a outra, correlativamente, a que eu sou-besse bem escrever. Eu tinha então doze anos. Para eu saber pensar, o Estado e os seus professores forçavam-me a decorar diariamente laudas de definições, de fórmulas misteriosas, que continham a essência, o segredo das coisas, compiladas do francês, de velhos compêndios de Escolástica. Era terrível! O lente, casmurro e soturno, perguntava:

– Quantos são os impossíveis?

Eu devia papaguear em voz clara:

– Dois. O impossível físico, que o homem não pode fazer, mas Deus pode; por exemplo: ressuscitar. O impossível metafísico, que nem ao homem, nem a Deus mesmo é permitido, como, por exemplo, que uma coisa, ao mesmo tempo, seja e não seja!

«Que nem a Deus é permitido!» Havia pois alguma coisa que nem a Deus era permitida? E quem era então esse outro poder, que, mais omnipotente, mais alto nas nuvens, lho não permitia? A minha cartilha, traduzida também do francês, com a aprovação de um bispo francês) ensinava-me, por outro lado, que Deus é absoluto) de ilimitado poder, e que as suas vastas mãos, que o Universo fizeram) podem o Universo desfazer. Qual tinha pois razão, destes dois livros que o Estado me impunha? A Cartilha? A Lógica? Dúvida pavorosa, primeiro tormento de alma, em que só antevia uma coisa certa) inevitável: – o R, a raposa. Mas bem depressa compreendi que esta Lógica, com a divertida, faceta, incomparável Retórica, que tive de decorar durante um ano, eram decerto disciplinas em que o Estado não tinha interesse que eu fosse perfeito. O seu desejo estava todo em que eu soubesse bem francês. Quando cheguei na dili-gência a Coimbra, para fazer o exame de Lógica, Retórica e Francês, o presidente da mesa, professor do Liceu, velho amável e miudinho, de batina muito asseada, perguntou logo às pessoas carinhosas que se interessavam por mim:

– Sabe ele o seu francês?

E quando lhe foi garantido que eu recitava Racine tão bem como o velho Talma, o excelente velho atirou as mãos ao ar, num imenso alívio.

– Então está tudo óptimo! Temos homem!

E foi tudo óptimo, recitei o meu Racine, tão nobremente como se Luís XIV fosse lente, apanhei o meu nemine, e à tarde, uma tarde quente de Agosto, comi com delícia a minha travessa de arroz-doce na estalagem do Paço do Conde. E desde então nunca mais saí do francês. Quando no último ano de Preparatórios, o Estado, subitamente, se lembrou que era conveniente que eu tivesse algumas noções do Universo, foi através de um Compêndio francês, o Langlebert, que me relacionei com os três Remos da Natureza. Conheci mais tarde em Paris este Langlebert, que é um médico, no Quartier Latin. E contei-lhe como nas páginas tão sabiamente por ele compiladas, eu aprendera de cor a fórmula química da água e a teoria do pára-raios. Langle. bert, coçando risonhamente o seu espesso colar da barba, considerou-me com ternura, como a um bárbaro que dá proveito:

– Oui, oui, vous n‘avez pas de ces Livres là-bas... Et j’en suis bien aise! Ça me fait une jolie rente...

Creio bem que lhe fizesse uma linda renda não termos esses livros cá em baixo!

E outros decerto faziam lindas rendas, eles ou os Editores, porque, apenas entrei na Universidade, fui abrindo o meu rego de bacharel através de livros franceses. Direito natural, Direito público, Direito internacional, todos os Direitos, ou em compêndios ou em expositores, eram franceses, ou compilados abertamente do francês, ou secretamente surripiados do francês. E, sobre a mesa de pinho azul dos meus companheiros de casa, só se apinhavam livros franceses de Matemática, de Cirurgia, de Física, de Química, de Teologia, de Zoologia, de Botânica. Tudo francês! Algumas lições eram dadas em francês, por lentes preclaros, carregados de condecorações, que pronunciavam il faut – ile faúte. Aquele corpo docente nunca tivera bastante actividade intelectual para fazer os seus compêndios. E todavia Coimbra fervilhava de lentes, que decerto tinham ócios. Havia-os no meu tempo inumeráveis, moços e vetustos, ajanotados e sórdidos, castos e debochados, e todos decerto tinham ócios; mas empregavam-nos na política, no amanho das suas terras, no bilhar, na doçura da família, no trabalho de dominar pelo terror o pobre académico encolhido na sua batina; e o saber necessário para confeccionar a sebenta, iam buscá-lo todos os meses aos livreiros da Calçada, que o recebiam de França, encaixotado, pelo paquete do Havre.

Ora naturalmente até aqui, simples estudante, eu do vasto mundo só vira, só me interessara, por aquele detalhe que mais se relaciona com o estudante – o compêndio. E só encontrava, só respirava o francês. Mas depressa, compreendendo que por aquele método de decorar todas as noites, à luz do azeite, um papel litografado que se chama a sebenta, eu nunca chegaria a poder distinguir, juridicamente, o justo do injusto, decidi aproveitar os meus anos moços para me relacionar com o mundo. Comecei por me fazer actor do Teatro Académico. Era pai nobre. E, durante três anos, como pai nobre, ora grave, opulento, de suíças grisalhas, ora aldeão trémulo, apoiado ao meu cajado, eu representei entre as palmas ardentes dos académicos, toda a sorte de papéis de comédias, de dramas – tudo traduzido do francês. Por vezes, tentávamos produzir alguma coisa de mais original, de menos visto que a Dama das Camélias, ou o Chapéu de Palha de Itália; reunimo-nos, com papel e tinta; e entre aqueles moços, nascidos em pequenas vilórias da província, novos, frescos, em todo o brilho da imaginação, uma só ideia surgiu: traduzir alguma coisa do francês. Um dia, porém, Teófilo Braga, farto da França, escreveu um drama, conciso e violento, que se chamava Garção. Era a história e a desgraça do poeta Garção. Eu representei o Garção, com calções e cabeleira, e fui sublime; mas o Garção foi acolhido com indiferença e secura. E um só grito ressoou nos bastidores:

– Ora aí têm... Um fracasso! Pudera! Peças portuguesas!...

Imediatamente nos refugiámos no francês e em Scribe.

O Teatro, pouco a pouco, pusera-me em contacto com a literatura. Encontrei, organizada, completa, uma larga sociedade literária a que em parte presidia o homem, entre todos excelente e grande, que é mais que uma glória da sua pátria, porque é uma glória do seu século. Mas, à parte esse, em quem as largas, fecundas correntes do saber contemporâneo não alteravam de todo esse feitio especial, profundamente português, de ilhéu de boa raça, descendente de navegadores do século XVI – todo o resto desse rancho encantador parecia ter chegado na véspera do Quartier Latin. Sobre as mesas, só havia livros franceses; nas cabeças só rumorejavam ideias francesas; e o cavaco, entre a fumaraça, tomava invariavelmente o picante gosto francês. O que se lia? Só a França. Toda a França – desde Mery a Proudhon e desde Musset a Littré. Em todo o tempo que vagueei pelas margens do Mondego, creio que não abri um livro português, a não ser, em vésperas de acto, e com infinita repugnância, a Novíssima Reforma Judiciária. Mas conhecia, como todos os meus amigos, cada romancista, cada poeta francês, não só na sua obra, mas na sua vida – nos seus amores, nos seus tiques, e no seu estado de fortuna. Foi por esse tempo que eu e alguns camaradas nos entusiasmámos pela pintura francesa!... E extraordinário, bem sei, considerando que estávamos então a seis longos dias de viagem do Louvre e do Luxemburgo, e do Salon. Mas tínhamos os críticos, todos os críticos de arte, desde Diderot até Gautier, e era na prosa deste que nós admirávamos estaticamente a sobriedade austera de Ingres ou o colorido apaixonado de Delacroix. E em tudo isto eu obedecia sempre a um impulso, a uma grande corrente, como uma folha que bóia na água.

Com a minha carta de bacharel num canudo, trepei enfim um dia para o alto da diligência, dizendo adeus às veigas do Mondego. Justamente nesse mesmo tejadilho ia um francês, um commis-voyageur. Era um colosso, de lunetas, duro e brusco, com um queixo maciço de cavalo, que, à maneira que o coche rolava, ia lançando através dos vidros defumados um olhar às terras de lavoura, aos vinhedos, aos pomares, como se os sopesasse e lhes calculasse o valor, torrão a torrão. Não sei porquê, deu-me a impressão de um agiota, estudando as terras de um morgado arruinado. Conversei com este animal; ele pareceu surpreendido da minha facilidade no francês, do meu conhecimento do francês, da política de França, da literatura de França. De facto, eu conhecia romancistas, filósofos franceses, que ele ignorava. E ainda recordo o tom de alta protecção, com que me disse, batendo-me no ombro, enquanto nós rolávamos na estrada, vendo em baixo, no vale, o mosteiro da Batalha:

– Vous avez raison, il faut aimer la France... Il n’y a que ça! Et puis, vous avez, il faut que nous vous fassions des choses, des chemins de fers, des docks, des choses... Mais il faut nous donner votre argent...

Creio que realmente, depois, temos dado notre argent à França, largamente!

Enfim, cheguei à capital de Portugal – e lembro-me que a primeira coisa que me impressionou foi ver a uma esquina um grande cartaz, anunciando a representação de Cançonetas francesas, no Casino, a brilhante M.me Blanche, e a incomparável Blanchisseuse Era outra vez a França, sempre a França. Eu deixara-a dominando em Coimbra, sob a forma filosófica; vinha encontrá-la conquistando Lisboa, de perna no ar, sob a forma de cancã

Começou então a minha carreira social em Lisboa. Mas era realmente como se eu habitasse Marselha. Nos teatros – só comédias francesas; nos homens – só livros franceses; nas lojas – só vestidos franceses; nos hotéis – só comidas francesas... Se nesta capital do Reino, resumo de toda a vida portuguesa, um patriota quisesse aplaudir uma comédia de Garrett, ou comer um arroz de forno, ou comprar uma vara de briche – não podia.

Nem nos palcos, nem nos armazéns, nem nas cozinhas, em parte alguma restava nada de Portugal. Só havia arremedos baratos da França. A particular atmosfera de coscuvilhice política, que é tão peculiar a Lisboa como o nevoeiro a Londres, forçou-me, a meu pesar, a embrenhar-me também na política. Em que política? Boa pergunta! Na francesa! Porque havia então em Lisboa toda uma classe culta e interessante de políticos «franceses», que, no Grémio, na Havanesa, à porta do Magalhães, faziam uma Oposição cruel, amarga, inexorável, ao Império Francês e ao Imperador Napoleão!

Também havia decerto, na Baixa, no Passeio Público, imperialistas, que tinham empreendido a campanha da Ordem contra Rochefort, e contra Gambetta. Mas era uma minoria. Lisboa toda arreganhava o dente para o imperador. E, naturalmente, eu, moço e ardente, cheio de ideias de Liberdade, e de República, trasbordando de ódio contra essa corja dos Rouher e dos Baroche, que proibiam o teatro de Hugo, e tinham levado à polícia correccional Gustavo Flaubert, lancei-me vivamente na oposição às Tulherias. O que eu conspirei! Jesus, o que eu conspirei! O meu desejo era filiar-me na Internacional! E lembra-me que uma noite, a propósito de não sei que novo escândalo do Império, achando-nos uns poucos no Martinho, em torno de um café, exclamámos todos, pálidos de furor, cerrando os punhos:

– Isto não pode ser! Já sofremos bastante. É necessário barricadas, é necessário descer à rua!

Descer à rua, era a ameaça terrível. E descemos o degrau do Martinho! Depois, na rua, sob o quente luar de Julho, ouvindo os foguetes para os lados do Passeio Público, voltámos para lá os passos frementes – porque um de nós, o mais exaltado, encontrava lá uma certa senhora, em noites de fogo preso. Ah mocidade, mocidade, incomparável encanto! Onde estão os entusiasmos de então, a santa palidez que nos cobria a face ante o espectáculo da injustiça, e a doçura que encontrávamos nos luares de Maio, e os foguetes alegres do Passeio?

Enquanto à Política propriamente portuguesa, escuso dizer que nenhum de nós verdadeiramente sabia se o regime que nos governava era a Constituição ou o Absolutismo. De tais detalhes portugueses não curavam os filhos de Danton. E enquanto às divisões parlamentares de Regeneradores, Históricos, Reformistas, nem sequer as suspeitávamos, nós que conhecíamos as menores nuances da oposição francesa, e que distinguíamos as pequenas subtilezas de opinião que dividiam Jules Favre e Gambetta, Picard e Jules Simon.

Mas para que hei-de continuar? Não quero escrever uma página de memórias. Apenas mostrar, tipicamente, como eu, e toda a minha geração (exceptuando espíritos superiores, como Antero de Quental ou Oliveira Martins) nos tínhamos tornado fatalmente franceses no meio de uma sociedade que se afrancesava e que, por toda a parte, desde as criações do Estado até ao gosto dos indivíduos, rompera com a tradição nacional, despindo-se de todo o traje português, para se cobrir – pensando, legislando, escrevendo, ensinando, vivendo, cozinhando – de trapos vindos da França!

Esta geração cresceu, entrou na política, nos negócios, nas letras, e por toda a parte levou o seu francesismo de educação, espalhou-o nos livros, nas leis, nas indústrias, nos costumes, e tornou este velho Portugal de D. João VI uma cópia da França, malfeita e grosseira. De sorte que, quando eu, lentamente, fui emergindo dos farrapos franceses em que essa educação me embrulhara, e tive consciência do postiço estrangeiro da nossa civilização, eu pude dizer que Portugal era um país traduzido do francês – no princípio em vernáculo, agora em calão.

Mas dir-me-ão: – Tudo isso é uma pequena minoria, feita de alguns políticos, alguns literatos, alguns banqueiros e alguns mundanos; a vasta maioria do país, a burguesia das vilas, a gente dos campos, permanece portuguesa, conservando no seu sentir e no seu pensar o fio da tradição, que seria fácil ir buscar lá, para com ele se continuar a tecer a nossa verdadeira civilização de feitio português.

Nenhum erro maior! Essa vasta maioria não conta. Um país, no fundo, é sempre uma coisa muito pequena: compõe-se de um grupo de homens de letras, homens de estado, homens de negócio, e homens de clube, que vivem de frequentar o centro da capital. O resto é paisagem, que mal se distingue da configuração das vilas ou dos vales.

É a gente sonolenta da província, que apenas se diferencia das pequenas vielas, tortuosas e sujas, onde vegeta; são os homens do campo, que mal se destacam das terras trigueiras que semeiam e regam. A sua única função social é trabalhar, pagar. A direcção de um país é dada justamente por essa minoria da capital. Quando algum jornalista e algum político de Paris quiser que a França seja republicana, proclama-se a república; quando preferir que haja monarquia, sobe um sujeito, com uma coroa na cabeça, ao trono de Luís XIV. Não são os camponeses da Beauce, nem os burgueses de Orleães, que escolhem para a França o barrete vermelho ou a coroa fechada. A moda dessa coiffure vem de Paris, de algumas redacções do Boulevard ou dos corredores do Palais-Bourbon. Na mesma Inglaterra, com a sua vasta descentralização intelectual e social, a classe média não conta, porque, na realidade, os círculos eleitorais das pro-víncias só em questões muito graves, em questões de dinheiro ou dignidade nacional, têm uma opinião sua, e a fazem ouvir de alto: de resto, ocupada no seu trabalho, aceita submissamente as opiniões dos clubes de Pall-Mall, e dos jornalistas de Fleet-St., como aceita a forma de paletós que, para a season, é decretada pelos cortadores de Cook ou de Poole. Que será pois em Portugal onde, fora do pequeno centro de Lisboa, não há vida intelectual nem social?

O que um pequeno número de jornalistas, de políticos, de banqueiros, de mundanos decide no Chiado que Portugal seja – é o que Portugal é. Se um grupo amanhã decidir que Portugal seja turco – através do país inteiro todos os chapéus altos, todos os chapéus desabados, todos os cocos, todos os barretes de varino, tenderão lentamente mais ou menos a tomar a forma de turbante. Por ora, todavia, tudo é francês. A toda a parte chega esta ondulação do francesismo partida do Chiado – mais forte no Porto do que em Guimarães, mais visível em Guimarães do que em Lamaçal de Bouças, mas sensível para quem sabe ver debaixo das superfícies. Podese conservar o chinelo de ourelo, e ser-se fiel ao sarrabulho de porco, mas por toda a parte há vagamente essa tendência, essa aspiração, esse desejo escondido de não se ser como foram nossos avós, mas de outro modo, como se é lá fora. E lá fora – é a França.

O pai de um amigo meu, em 1836 ou 1848, num ódio repentino a tudo que lhe lembrava o velho Portugal, foi-se à sua mobília antiga, de pau-preto torneado e de assentos de couro lavrado, e num só dia vendeu, queimou, sepultou em sótãos, dispersou todas essas formas vetustas, que lhe vinham do passado; depois correu a um estofador da esquina, e comprou, ao acaso, num lote, uma mobília francesa. O que este homem fez, todo o Portugal o fez. Num rompimento desesperado com o velho regime, tudo quebrou, tudo estragou, tudo vendeu. Achou-se de repente nu; e como não tinha já o carácter, a força, o génio, para de si mesmo tirar uma nova civilização, feita ao seu feitio, e ao seu corpo, embrulhou-se à pressa numa civilização já feita, comprada num armazém, que lhe fica mal, e lhe não serve nas mangas.

Como acontece sempre nestas toilettes feitas à pressa, vêem-se ainda, por baixo do arrebique francês, os restos do fato primitivo e rude. Portugal ainda usa tamancos. Mas mesmo onde este desventuroso país usa tamancos, tem o seu coração, o seu desejo voltado para a bota de verniz bicuda, que vem de Paris. Numa velha vila da província, um amigo meu entrou numa loja, uma sombria loja, cheirando a mofo, alumiada a azeite, para comprar um guarda-chuva. E, oh horror! eis que o lojista, um pouco pálido, de quinzena de cotim, lhe pergunta, erguendo-se detrás do balcão com o Gil Blas na mão: «V. Exª leu hoje esta deliciosa fantasia de Catulle Mendès?» Naquela loja respeitável, onde seu pai, de chinelos, apilhava, honradamente, os briches e as saragoças, o miserável lia Catulle Mendès! Mais ainda. Um dia, em Braga, abro um jornal e vejo este anúncio: «Na rua de tal, velas de cera, círios, tochas de qualidade superior, tudo o que há neste género de mais pshutt e becarre». Oh miséria incomparável! os santos encantadores do nosso calendário, patronos das nossas casas, fiéis e doces protectores do nosso lar, alumiados nos altares com círios pshutts, e com molhos de velas becarre! A este abismo levou o francesismo, na velha e católica Braga, o venerável e patriótico negócio da cera. Desgraçada cera, desgraçada Braga!

Mas é sobretudo na minha especialidade, na literatura, que esta cópia do Francês é desoladora. Como aqueles patos que Zola tão comicamente descreve na Terre, aí vamos todos, em fila, lentos e vagos, através do caminho da poesia e da prosa, atrás do ganso francês. Quando ele embica para a relva, vamos bamboleando, pata aqui, pata acolá, em direitura à relva; se ele pára, com o bico no ar, todos parámos, com o bico no ar. De repente ele abre as asas, saltita pesadamente, e eis a fila grotesca, e pesada, e saltitante, correndo confiadamente para o charco! Fomos sucessivamente, em imitação do ganso francês, românticos, góticos, satânicos, parnasianos, realistas. Toda a incoerência, toda a afectação, toda a extravagância de uma literatura em decadência, ávida de originalidade, e desengonçando-se no esforço violento de encontrar uma altitude nova que espante o público – é imediatamente macaqueada a sério, com uma gravidade melancólica, que é o fundo do carácter nacional, por uma infinidade de moços honestos e simples.

Há dois ou três anos, esse colossal blagueador e cabotin chamado Richepin, publicou um livro, Les Blasphèmes, em que se propunha simplesmente a acabar de vez, por meio de algumas rimas brilhantes, com o sentimento religioso na humanidade, descrevendo obscenamente a afeição íntima de seu pai e de sua mãe. Era em casa de Oliveira Martins, e todos achámos imensamente divertida esta nova forma de respeito filial. Antero de Quental, porém, não ria.

– Isto para nós é grave – disse ele. – Porque amanhã vão aparecer aí, por todos esses jornais, estrofes de poetas novos, começando assim:

Meu pai era ladrão, minha mãe meretriz!

E vinte horas não tinham passado sem que todos, no espanto desta profecia, lêssemos, em jornais de Lisboa e Porto, poesias em que moços de maior honestidade, de famílias honradíssimas, acusavam as suas mães de prostituição e tratavam os pais de «lúbricos machos». Aí está onde leva a França!

Mas, se os que escrevem ou escrevinham vivem da França, os que lêem ou os que apenas folheiam nutrem-se exclusivamente da França. Quem passeia pelas ruas de Lisboa vê que nas vitrinas dos livreiros só há livros franceses; e quando se sobe às casas, se penetra na sociedade, só lá se descobrem (desde que a conversação se eleva acima das coisas locais), leituras francesas, admirações francesas, frases francesas. Quase toda a nossa mocidade culta recebe a sua luz intelectual do Figaro. E o banalíssimo, mediocríssimo Wolf é ainda, para muitos homens inteligentes, o representante do espírito francês. Porque é necessário observar que tanto os que escre-vem, como os que lêem, tomam ingenuamente o Boulevard pela França. Para além da França nada se conhece – e é como se, literariamente, o resto da Europa fosse uma vasta charneca muda, sob a bruma. Da nossa vizinha Espanha, nada sabemos. Quem conhece aí os nomes de Pereda e de Galdós? A literatura inglesa, incomparavelmente mais rica, mais viva, mais forte e mais original que a da França, é tão ignorada, apesar de geralmente se saber inglês, como nos tempos remotos em que vinte longos e laboriosos dias eram necessários para ir de Lisboa a Londres. Há alguns anos, um personagem, um Político, um Homem de Estado perguntava-me, com um ar de suficiência e superioridade:

– Lá por Inglaterra também há alguma literatura?

E ainda recentemente um homem excessivamente culto, conhecendo perfeitamente o inglês, me dizia:

– A respeito da literatura, imagino que deve ser alguma coisa de muito brilhante e de muito grande; mas, a não ser Dickens, que morreu há vinte anos, não posso citar um só nome, e de nenhum outro posso citar uma só linha!

E todavia não é a curiosidade que nos falta. Mas estamos colados às saias da França, como às de uma velha amante, a que nos acorrente o vício e o hábito, e de quem não ousamos afastar-nos, para ir falar a alguma mulher mais interessante e mais fresca. Há tempos, na curta distância que vai do Rossio ao Loreto, eu fui assaltado por seis ou sete pessoas, que me travavam do braço, me arrastavam para a esquina, para me perguntar ansiosamente: «Quem é uma certa Rhoda Brougton que escreve romances?» E eu ia já indignar-me, pensando que isto era uma scie montada contra mim, quando soube que o Figaro da véspera tinha um artigo sobre a graciosa e fina criadora da Família Maubrey.

Da rica e grande literatura da Alemanha, podemos dizer, como o meu amigo: nem um nome a citar, nem uma linha a lembrar! E se agora conhecemos alguns romances russos, é porque «estão à moda» no Boulevard.

Mas, pergunto eu, este collage com a França, esta imitação, esta preocupação da França, é uma tendência fatal, necessária, de temperamento, de congeneridade, de similitude, a que não possamos escapar, como a Dinamarca não pode escapar a imitar a Alemanha, e a Bélgica se não pode eximir a imitar a França? Não creio. O dinamarquês é um alemão desbotado. A Bélgica é uma edição barata da França. Mas não há similitude alguma de temperamento, de feitio moral entre nós e a França. Nada mais diferente de um francês do que um português; nem eu compreendo que satisfação, que gozo possa achar o espírito português em se nutrir, em se banhar nas criações do espírito francês. A França é um país de inteligência; nós somos um país de imaginação. A literatura da França é essencialmente crítica: nós, por temperamento, amamos sobretudo a eloquência e a imagem. A literatura da França é, desde Rabelais até Hugo, social, activa, militante. A nossa, por tradição e instinto, é idílica e contemplativa. Não é só por uma fria imitação de Teócrito e dos bucólicos latinos que nós, desde Rodrigues Lobo até aos elegíacos da Arcádia, amamos a écloga pastoril: é porque nós somos realmente o povo que se compraz em estar quieto entre os choupais, a ver correr as águas meigas, pensando em coisas saudosas. Fomos à Índia, é verdade, mas quase três séculos são passados, e ainda estamos descansando, derreados, desse violento esforço a que nos obrigaram alguns aventureiros que tinham pouco do fundo comum da nossa raça, e que, a julgar por Afonso de Albuquerque, deviam ser de origem fenícia, puros cartagineses, talvez da família dos Barcas. Enfim, o símbolo da França será eternamente o galo, o galo petulante e lustroso que canta claro, com uma limpidez de clarim, no fresco arrebol da manhã: e o nosso emblema é e será eternamente o rouxinol, que geme na espessura mal alumiada dos arvoredos, o rouxinol «amavioso e saudoso» que faz chorar Bernardim.

A alma de um povo define-se bem a si mesma pelos heróis que ela escolhe para amar e para cercar de lenda. O grande rei para os Franceses, é e será sempre Francisco I, enorme, robusto, ligeiro, rindo alto, batendo-se valentemente, amando mais valentemente ainda, radiante, gozando largamente a vida, poeta em certos momentos, artista por ostentação, e falador eterno... O nosso genuíno herói, e isto resume tudo, é o poético e pensativo D. Sebastião.

Ora se nenhuma congeneridade de ideia, de sentimento, de natureza, de temperamento, nos cola irremediavelmente à França, ser-nos-á fácil, sem dúvida, separar-nos dela, sem que se dilacerassem as raízes mesmas da nossa sociedade. Nós estamos apenas colados à superfície, somos um parasita. E se nos desprendêssemos desse grande corpo, em que sugamos para viver, poderíamos, sem emagrecer e sem deterioração do nosso organismo, ir procurar noutro corpo social a vida do nosso espírito. Como parasitas prudentes, e o Português é prudente, podemos talvez perguntar a nós mesmos, se nos convém continuar a sugar a pele francesa, e se ela realmente oferece todos os elementos de uma suficiente alimentação para que, como uma pulga obstinada que pica o seio ressequido da carcaça de uma velha, onde não há seiva e sangue, não estejamos nós mordendo, chupando, onde não há sangue e seiva que nos alimente.

É tempo, pois, de considerar se nos convém, como table-d’hôte, a literatura da França – a nós, parasitas, que em questões de literatura e de tudo, vamos comer às casas alheias. Afoitamente digo que nos não convém. A literatura francesa, neste último quartel do século, sofre de um obscurecimento, um desaparecimento de sol entre nuvens, de que o seu génio decerto sairá mais radiante e iluminado; mas por ora só nela há uma grande sombra, que passa. De cima a baixo, das regiões do alto saber e do alto pensar até à literatura do Boulevard, há um enfraquecimento, um desequilíbrio, um enervamento, que de um lado leva à extravagância, e do outro à banalidade. Extravagância, banalidade! O grande, luminoso, exacto, crítico espírito francês está oscilando entre estas duas inferioridades. E em toda a linha da criação literária assim oscila, ora dando pulos grotescos com o desagradável Richepin, ora estendendo-se, chatissimamente, ao comprido, com o detestável Ohnet. Veja-se a mais alta figura literária da França, e a mais francesa – Renan. Espírito da mais requintada e subtil finura crítica, saturado de saber, possuidor de uma língua a mais luminosa e a mais bela, tendo o que há de melhor em Racine e de melhor em Voltaire, com alguma coisa de mais aveludado, de mais acariciador, que prende, irresistivelmente arrasta a alma – que ensina ele, hoje, este Mestre, este francês, que domina com a dupla influência da fina crítica e da forma perfeita?

Este Mestre ensina-nos simplesmente que nada na Terra vale, ou tem importância, senão os gozos que dá o amor, ou o esquecimento que dá a morte. Certamente, em boa filosofia, as duas coisas correlacionam-se: a morte e o amor; e há aqui uma grande lógica. Mas nem por isso deixa de ser o mais forte sintoma da decadência intelectual da França que este Mestre, este sábio, não abra os lábios, não tome a pena, senão para nos apontar alternadamente – ou para a alcova ou para o cemitério. E se, de Renan, descemos à grande massa da literatura – o estonteamento é ainda mais característico. No romance, que é a forma preferida da arte moderna, temos mais que em nenhuma outra a banalidade e a extravagância, instintivamente usadas para os dois grandes fins, os dois grandes objectos de todo o esforço parisiense – ganhar dinheiro e espantar a galeria, o gozo ou a gloríola. Na banalidade, com mais ou menos distinção, (porque tal é o requinte moderno que mesmo na banalidade há distinção), temos duas ou três individualidades que dão o tom por que as outras atrás afinam. É o Sr. Ohnet, o medíocre Sr. Ohnet, que ganha centenares de mil francos, fabricando, com pena fácil, para uso de uma larga democracia igualitária que tem um fundo de educação aristocrá-tica, quadros burgueses, em que os donos de forjas, empreiteiros, proprietários de armazéns de retalho, toda uma classe industrial, aparecem com os sentimentos de cavalheirismo, orgulho, heroísmo, romantismo, que essa pequena burguesia estava habituada a admirar secretamente na classe aristocrática, na gente de privilégio e de espada, nos grands seigneurs! É depois o Sr. Bourget, um parisiense com um ligeiro toque de inglesismo, como pede a moda, que leva para o Faubourg St. Germain, num fiacre, os seus métodos de Psicologia, de uma psicologia que cheira bem, que cheira a opopánace, e tomando uns ares infinitamente profundos, remexe os corações e as sedas das senhoras, para nos revelar segredos que todo o mundo sabe, num estilo que todo o mundo tem.

Por outro lado, gesticulando violentamente, há um pequeno grupo de extravagantes, que se estorcem, se esfalfam para achar alguma coisa inesperada que faça deter os badauds no Boulevard que, com efeito, espantam por vezes como saltimbancos muito destros, mas que no momento em que findam as suas cabriolas, arquejando, são esquecidos pelo homem sério, que pára a olhar, e que passa. Tudo isto é Francês, especialmente nascido das condições especiais de Paris, e não vejo o que aqui tenha a admirar ou a imitar um bárbaro honesto que vive para cá dos Pirenéus. E de todos estes romancistas, talvez aqueles que nós pudéssemos com mais utilidade imitar, são os muito simpáticos e estimáveis Verne e Boisgobey, que ao menos, com suas viagens, as suas intrigas, são um encanto providencial das crianças e dos convalescentes.

Na poesia francesa, tão admirada entre nós, a decadência é maior. Os Franceses nunca foram poetas, e a expressão natural do génio francês é a prosa. Sem profunda, religiosa, ardente emoção, não há poesia; e a França não se comove, permanecendo sempre num razoável equilíbrio de sentimento e de razão, bem senhora da sua clara inteligência. Os clássicos da poesia francesa, Mathurin Regnier, Boileau, La Fontaine, são justamente os homens de bom senso, de fria crítica, de honesta moral. Os bons conhecedores da poesia, em França, admiram sobretudo os poetas, quando eles têm em alto conceito estas qualidades superiores, que são, na realidade, qualidades de prosa. A limpidez nobre de Racine, a graça subtil de La Fontaine, serão o encanto eterno da França. Vítor Hugo, com o seu violento voo lírico, com o esplendor do seu verbo, teve a admiração, mas nunca teve a estima literária da França. E hoje os poetas mais estimados de França são-no ainda por qualidades que pertencem à prosa – Coppée, pela sua facilidade clara e breve, Leconte de Lisle, pela sua majestade lapidar. A poesia francesa são alexandrinos em prosa. Baudelaire escrevia primeiro em prosa os seus poemas.

Nunca a França teve um só poeta comparável aos poetas ingleses, a Burns, a Shelley, a Byron, a Keats, homens de emoção e de paixão, tão poéticos como os seus poemas; e hoje, que poeta há em França que se possa pôr ao lado de Tennyson, de Browning, de Rossetti, de Matthew Arnold, de Edwin Arnold, de Austin, etc.? Um só poeta francês teve a emoção: Musset. Colocado no centro do Romantismo, abalado por largas correntes de emoção, que vinham de Inglaterra e da Alemanha, dotado de uma exaltação natural, apaixonado, ardente, inspirado, este francês singular sofreu, e cantou como sofreu; e, conservando-se francês, foi profundamente humano. Mas a França culta, literária, muito tempo se recusou a ver nele um grande poeta. Diz Paulo de Musset, que, quando apareceram, na Revista dos Dois Mundos, as Estâncias à Malibran, As Noites, os verdadeiros homens cultos permaneceram frios! Como havia, porém, naquela poesia, e expressas sinceramente, coisas que são eternas, a mocidade, o amor, a voluptuosidade, a dor – a França, pouco a pouco, foi atraída para aquele canto vivo e doloroso. A simpatia das mulheres venceu a resistência dos críticos. Musset, hoje, é oficialmente um grande poeta, mas nunca veio a ser um clássico. E a França conserva diante dele uma reserva, misturada de desdém e de amor, reprovando e amando, e sentindo que tem naquele homem, que a Europa tanto lhe aclama, um poeta que é ao mesmo tempo medíocre e imortal.

De resto, a inteligência e a poesia, raramente vão juntas. Eu só conheço um homem, uma excepção, em que o sumo génio poético se alia à suma razão filosófica. É o nosso Antero de Quental. Nos seus Sonetos, exprime esta coisa estranha e rara – as dores de uma inteligência. É uma grande razão debatendo-se, sofrendo, e formulando os gritos do seu sofrimento, as suas crises, a sua agonia filosófica, num ritmo espontâneo, da mais sublime beleza poética; cada soneto é o resumo poético de uma agonia filosófica. E é por isso que a Alemanha se lançou sobre este livro de Sonetos (que Portugal não leu) e os traduziu, os comentou, os fixou religiosamente na sua literatura, como uma coisa rara e sem precedentes, uma pérola fenomenal de criação desconhecida, única no grande tesouro da Poesia Universal. Mas em França não há disso. E a sua clara inteligência tem-lhe vedado os triunfos poéticos. Depois da curta emoção de Musset, a França recaiu mais que nunca na poesia que é admirada por ter as qualidades da prosa.

E isto, naturalmente, devia levar, e levou num momento em que toda a literatura decai, e em que a emoção de todo se esvai, e o espírito crítico um momento se embota – devia levar e levou à banalidade ou à extravagância. Mas se a parte da banalidade é grande no Romance – os poetas, que estão naturalmente mais longe do grande público, foram forçados a chamar-lhe a atenção mais violentamente, e, numa ânsia de originali-dade e de novidade, precipitaram-se em massa na extravagância. Daí provêm todos esses movimentos do Satanismo, que desandou noutro, chamado, Deus me perdoe, o Nervosismo! Mas aí ainda havia o desejo, no fundo intelectual, de dar um estremecimento, um arrepio novo à alma.

Por fim, toda a intenção intelectual foi posta de parte e ficou a preocupação meticulosa, requintada da forma – de uma forma que tivesse a extrema originalidade no extremo relevo. O sentir foi substituído pelo cinzelar; e uma estrofe, um soneto, foram trabalhados com os lavores, os polidos, os retorcidos, os engastes, as cintilações de um broche de filigrana, tendo apenas, como a filigrana, um valor de feitio, como ela agradável à vista, mas deixando o espírito indiferente. Estes homens chamaram-se a si mesmos os Parnasianos – e, entre nós meridionais, que amamos o lavor e o feitio, o brilho, o luxo da forma, exerceram uma influência devastadora. A eles se devem esses estilos delirantes, que tornaram nestes últimos anos a poesia, em Portugal, uma coisa grotesca e pícara.

Mas mesmo em França a sua influência, ou antes o seu contágio, não foi menos lamentável. Nada há mais tirânico do que a moda nas formas: a bota bicuda, sendo moda, impõe-se irresistivelmente aos espíritos mais profundos; e a cabeça de artista em que brilhem as ideias do mais puro gosto, ou rolem os sistemas mais profundos, submete-se resignadamente ao chapéu que decrete em Londres The Journal of Fashion. Ninguém gosta de aparecer na rua menos bem entrapado que o seu concidadão, seja em casaco ou em estilo. E foi assim que veneráveis poetas franceses caíram, já entrados nos dias da sua velhice, no Parnasianismo: Autran e Laprade, eles mesmos, passaram uma camada de esmalte novo, das cores da moda, sobre os seus severos e suculentos alexandrinos: e viu-se o bardo Banville, o amável e fecundo bardo que desde 1830 cantava de omne re scibile numa lira larga e fácil, descer ao Boulevard e espantar a multidão, mais fecundo e amável que nunca, com ritmos e rimas tão sarapintados, tão desengonçados, que não se sabia bem se aquilo que cabriolava e reluzia no papel, eram os versos de um poeta ou as bolas de um pelotiqueiro.

Mas estes tempos dos Parnasianos ainda eram os bons tempos. Hoje, que os poetas aclamados depois da geração de Hugo, de Lamartine, de Gautier – os Prudhommes, os Lisle e outros, têm entrado na Academia e no silêncio, e a sua influência salutar foi arrefecendo como um sol que declina, rompeu, com o crepúsculo, uma imensa, infrene orgia no Parnaso Francês. Tão infrene que as pessoas tímidas e honestas não se arriscam a aproximar-se – e, como no tempo de Baco, os homens graves da planície param aterrados, e de longe contemplam, sem ousar ver de perto, as tochas e os gritos das Coribantes perpassar, enchendo de desordem, de troça e de escândalo, a espessura do bosque sagrado.

Eu, pelo menos, educado com Musset e Hugo, não ouso aproximar-me desses Coribantes, e dos seus livros. Jamais abri um desses livros amarelos, dentro dos quais passam estrofes, com bulhas e gritos intoleráveis. Sei apenas que esses novos se chamam a si mesmos, com uma sublime sinceridade, os Decadentes, os Incoerentes, os Alucinados. Têm as suas coteries, como quem diria os seus Colégios Sacerdotais, celebram em comum os seus ritos, e, como todos os Colégios Sacerdotais, redigem os seus anais, em cadernetas que se chamam o Jornal dos Incoerentes, a Revista dos Alucinados... Zelosos dos seus privilégios, detestando as confrarias rivais, todo o tempo em que não desonram o Monte Olimpo, com desabaladas orgias de ritmo, o passam, como os gramáticos do Baixo Império, a questionarem sobre precedências e valores relativos da sua escola: é assim que alguns poetas ultimamente declaravam em todos os jornais que fulano de tal, poeta, não era de modo nenhum o Chefe dos Incoerentes, e que esse Chefe ilustre dos Incoerentes, o homem inspirado e supremo, que em si resumia toda a Incoerência, era Verlaine, só Verlaine, e não outro. E Verlaine, indisputadamente, guarda a coroa da Incoerência.

É necessário dizer-se, todavia, que há aqui talento! Há mesmo muito talento, uma habilidade de ofício maravilhosa, uma presteza de mão que surpreende, uma técnica de rima, uma abundância de cor, uma arte no detalhe que maravilha. Somente, nestes milhares de versos admiráveis – não há um verso poético: estes poetas não têm poesia: e, entre tantos talentos, não há uma só alma!