Doze dias tinha D. Gil caminhado com o seu escudeiro Pêro Malho: – e tão fastidiosa e monótona se estendia a longa jornada, sob a ardência de Agosto, que por vezes o moço gentil dormitava como um frade, ao lento passo da sua mula, ou, acordando, suspirava com uma saudade do seu solar e dos frescos arvoredos de Gonfalim. Desde que tanto se alongara da sua aldeia, nas serras da Beira, nada encontrara que lhe fizesse sentir a beleza ou variedade do mundo.

Sempre os mesmos rudes e estreitos caminhos, escavados pelo trilho das cavalgaduras, ou dos carros, se sucediam, através de terras pobres, sem verdura e sem homens, de uma cor seca de greda, com alguma árvore poeirenta, onde as cigarras cantavam. Por vezes avistava uma pequena aldeia de adobe e tectos de colmo, agachada em torno de uma velha igreja, meio arruinada, findando por uma taberna, que estendia por cima do caminho o seu ramo de louro, preso na ponta de um pau. Gil desmontava aí, fatigado; havia sempre algum frade mendicante, de aspecto torvo, bebendo o seu pichel de vinho, ou dois mesteirais errantes jogando os dados sobre um toro de carvalho: e a taberna, os homens, toda a aldeia em redor, eram tão tristes, tão rudes, que Gil tornava a partir, preferindo dormir à beira da estrada, sob a luz das grandes estrelas de Verão, junto de uma fogueira que acendiam, por causa dos lobos.

Outras vezes, caminhando na planície, avistavam num alto de colina, entre rochas, um negro, severo castelo: para lá trepavam; e depois de longas vezes tocarem a buzina, aparecia entre as ameias algum velho servo, que gritava para baixo, num tom rouco: «Ninguém está, e ninguém entra». Nas ermidas que topavam, encravadas entre fragas, os ermitões pareciam entontecidos pela velhice ou pela penitência, recusavam abrigo aos cavaleiros, ou fugiam para o alto do monte: – e nunca nestas ermidas havia cruz ou imagem santa. Longos dias tinham passado sem que encontrassem uma capela, um cruzeiro, onde ajoelhassem, dissessem as suas rezas. O pão que por vezes compravam nalguma rara taberna, a água quente e turva de algum poço, fora todo o seu alimento: – e Gil pensava consigo que guerra assolara aquelas regiões, ou se seria assim, árida e triste; toda a terra de Portugal, para além do vale de Gonfalim.

– Meu bom Senhor – murmurava então Pêro Malho – nós vamos errando caminho.

E sucedia então que sempre algum pastor, ou frade mendicante, de barba revolta, ou caçador com a sua besta ao ombro, surgia de um valado, ou de entre rochas, e lhes afirmava ser aquela, bem direita, e bem certa, a estrada que os levaria a Zamora.

Pêro Malho, derreado, com os pés caídos fora das largas estribeiras, coçava a cabeça, pensativamente.

– Senhor meu amo, estes caminhos parecem arranjados para o Diabo andar de jornada... Já reparou Vossa Mercê que ainda não encontrámos nem capela, nem mosteiro, nem cruz a que se reze um padre-nosso? E o que mais me arrenega é que ainda não topámos com águas claras, com águas correntes... Onde não está água, não está Deus. Chão de greda é condado do Demónio.

E como D. Gil permanecia mudo, alongando os olhos para os secos descampados, onde só vivia a urze e a piteira, Malho recuava a mula para trás de seu amo, e suspirava baixinho:

– Ai Portugal, Portugal!

Uma manhã tinham penetrado entre grandes serranias de rocha, seguindo o leito seco de uma torrente. Tão grande era a solidão e o silêncio, que D. Gil sentia como o terror de uma treva, e como se estivesse para sempre separado do mundo e das coisas vivas. O Sol, no alto, faiscava furiosamente através de um ar tão espesso que se lhe via a vibração, o tremor luzidio, como de um pó de vidro suspenso. As patas das mulas estremeciam a cada passada, tocando a ardência das pedras e do chão: – e dos altos muros de rocha, aos dois lados, vinha um calor áspero, seco, como se fossem os muros de tijolo de umas termas acesas. D. Gil arquejava, procurando uma cova, uma fenda de rocha, onde achassem sombra e refúgio: mas as duas encostas só ofereciam, nos seus dorsos redondos, como de grandes fornos, estendais secos e lisos de pedregulho miúdo, que faiscava.

– E serem isto terras de el-rei de Leão! –murmurava Pêro Malho, com tédio.

Então D. Gil, para depressa fugir daquele vale ardente, de mortal secura, picou com furor os ilhais da mula.

Naquele sinistro silêncio da terra morta, sob o faiscar inclemente do Sol, muito tempo galoparam, saltando por duas vezes sobre grandes ossadas de cavalos, que, ainda inteiras, branquejavam entre as pedras. Quando estacaram, esbaforidos, com grandes flocos de espuma caindo dos freios das mulas, estavam em frente de uma vasta planície, deserta, nua, como varrida por um grande vento de assolação e de morte: – e, por cima, o Sol faiscava furiosamente. D. Gil murmurou: «Deus da Boa Viagem nos valha!» Desde a véspera, em que numa choça deserta uma velha lhes dera, rosnando e praguejando, um pedaço de chouriço e uma malga de vinho, nada tinham comido: já a sede os atormentava e na infinita planície não havia caminho marcado... Que fazer?

– É andar, senhor meu amo – aconselhou Pêro Malho. – Devagar e a direito, e cantando, para espairecer.

E o alegre escudeiro tomou a sua viola de duas cordas, e começou um longo canto mourisco, dolente e dormente – enquanto, a passo, sacudindo a espuma dos freios, as duas mulas arremetiam através do descampado ardente. Nem um galho de tojo seco, nem uma lâmina de piteira, surgiam naquele vasto deserto, chato, onde a terra estalava toda em fendas, sob as patas das mulas. Longos sulcos tortuosos marcavam por vezes os riachos secos. E a única nota viva era o zumbir de grandes moscardos.

Com os pés caídos fora dos estribos, as abas dos sombreiros descaídas sobre a face, as rédeas abandonadas, D. Gil sentia amolecer, fundir-se, naquela grande tristeza da solidão e do calor, a vontade, o desejo de acção, que tão alegremente o fazia galopar nos primeiros dias de jornada, como para uma conquista: – e agora, o seu pensamento voltava-se para ideias de repouso, de indolência, entre mármores frescos, em jardins bem regados. Ao seu lado, com a perna encolhida sobre o arção da sela, Pêro Malho feria as cordas da viola num don-dlin-don seguido, cantando, para animar a marcha, as trovas de um cavaleiro que, atravessando um laranjal, encontrara uma infanta a pentear os cabelos de ouro. E a imaginação de Gil seguia aquela infanta, sentia a frescura do laranjal – dos cabelos da dama passava aos seus braços brancos, que se arqueavam, no mover do pente. Uma sonolência lânguida ia-o invadindo, naquela fraqueza crescente do jejum e da sede. A grande planície, lívida, flamejava em silêncio. Muito cansadas, as mulas mal sacudiam o pescoço baixo, que os moscardos mordiam. Grandes bafos de calor passavam por vezes tão espessos, que as faces dos dois viajantes lhes sentiam o embate mole e ardente. E, incansáveis, teimosos, para animar a marcha, os dedos de Pêro feriam a viola com um dlin-dlon seguido. O cavaleiro, na sombra do laranjal, ajoelhado na relva aos pés da dama, beijava a franja do seu cinto branco. Gil mal seguia o canto, o suor pingava da sua face pálida, o pó branquejava ás pregas do seu brial, e com os olhos meio cerrados, do cinto da dama vinha a pensar no corpo airoso que ele cingia.

Por que não encontraria ele, na sua jornada, um fresco laranjal assim povoado? A viola fazia dlin-dlin-dlon. A terra seca esfarelava-se sob as patas das mulas. E assim seguiam, por aquele ermo do Reino de Leão, sob o grande sol de Agosto, o Senhor D. Gil e o seu escudeiro, nas suas mulas cansadas, cobertos de pó, cheios de sede, ao som dormente e áspero da viola mourisca.

Um cismando, outro cantando, entre aquela radiação de luz que os ofuscava como uma névoa de ouro fosco, não tinham os dois cavaleiros reparado que a terra, por onde caminhavam, se ia elevando em colina, docemente. Mas, de repente, um ar mais fresco, onde errava um aroma de verdura, bateu na face do Senhor D. Gil. Despertando daquele tanger que o entorpecia, estacou a sua boa mula. Estavam no cimo de um outeiro: – e em baixo, num vale, cavado e fundo, verdejava um grande bosque, e tremia como um brilho de água.

Com que ansiedade tangeram as mulas! E com que consolo, com que largo suspirar, penetraram sob folhagens e sombras! Era um belo arvoredo, de troncos espaçados, já velhos, onde se prendia, tapando o sol, uma longa renda de folhagens de um verde claro e tenro, como não há em Agosto. Todo o chão era um musgo fresco. E no silêncio fino e alto, aqui e além, um melro cantava. Com os sombreiros na mão, a passo, respirando deliciosamente, eles penetraram naquela frescura bendita, por entre os altos troncos alinhados, como ruas de uma coutada real.

E o bosque parecia infindável, cada vez mais fresco, mais verde, mais silencioso. Por fim, um espelho de água, que o sol batia, brilhou entre os últimos troncos: – e, espantados, os dois cavaleiros pararam à beira de um belo lago, todo cercado de arvoredo, cujas longas ramagens pendentes roçavam a água. Tão clara e pura era ela, que eles viam no fundo reluzir uma areia muito fina e como misturada de pó de ouro. No meio surgia uma ilha com um arvoredo, que fazia um grande ramalhete verde. E, à beira da água, seguia um pequeno caminho, limpo e branco, orlado de flores silvestres.

Por esse caminho meteram lentamente, quase esquecendo a fadiga e a sede, no assombro daquele divino recanto de verdura e paz silvana: – e de repente, saindo do arvoredo, encontraram uma vasta e fresca relva, à beira da água, onde estava preguiçosamente estendido um cavaleiro, tendo ao lado um grande alforge aberto, e, espalhados na relva, garrafas, empadões, e fundas taças de prata. Ao tronco da árvore, que lhe dava sombra, estava encostada uma enorme lança branca; dos ramos estendidos como um toldo, pendia o seu escudo negro. Dois cavalos morzelos, com rédeas de couro escarlate e freios de ouro, pastavam junto da água: – e um escudeiro, que, debruçado, desarrolhava uma garrafa que entalara entre os joelhos, voltou para os cavaleiros uma face estranha e grotesca, rapada como a de um frade, com dois olhos negros que chamejavam.

Cortesmente, D. Gil tirara o sombreiro. Com grande cortesia também, o cavaleiro se ergueu da relva.

Era um formidável homem de armas, de barba ruiva, findando em bico, as cores vivas e quentes de um flamengo, e largo, robusto peito cingido numa sobreveste negra. O cabelo, mais ruivo ainda que a barba, erguia sobre a testa uma poupa aguda e flamante, e recaía em grossos anéis sobre os ombros fortes, capazes do mais duro esforço, e cobertos por um brial escarlate. Dos olhos deste homem, pequenos e redondos, saía um brilho infinitamente esperto, decidido e risonho.

– Bem fatigado deveis vir, senhor cavaleiro, com tanta calma e pó – exclamou ele. – Esta sombra chega para dois, a merenda está sobre a relva, e quem vos convida, que é o Senhor de Astorga, só quer alegria e paz... Harbrico!

A este grito, que um vivo olhar acentuara, o escudeiro de face de frade correu a segurar o estribo, para que o Senhor D. Gil desmontasse. Mas já Pêro Malho, mais pronto, agarrara o loro: Harbrico então, risonhamente, correu a tirar de dentro do alforge, de cores estridentes, um estofo de samite, rico e macio, que estendeu na relva, para o Senhor D. Gil se recostar.

O moço gentil corava de gosto a estas honras que lhe fazia o Senhor ilustre de Astorga.

– Bendigo – murmurou ele com a mão sobre o peito – bendigo os duros caminhos que me trouxeram a tão doce acolhimento... O meu nome é D. Gil de Valadares, e o solar de meu pai é bem falado, e bem honrado na nossa terra da Beira.

Com os dedos gordos, que findavam em unhas muito agudas e curvas, o Senhor de Astorga aguçava a ponta da barba, pensando:

– Valadares, Valadares... Um D. Rui de Valadares, conheci eu em Coimbra, que tinha casa de boa pedra, no bairro cintado ao pé da Sé, e era vedor do Senhor D. Sancho II de Portugal...

– Meu avô.

O Senhor de Astorga atirou uma palmada à coxa:

– Pois soberbo avô tínheis, Senhor D. Gil, homem de boa alegria e façanha! Muito bem me lembro de uma tarde de Maio, em Lorvão... Mas melhor vão, à sesta, as histórias alegres! Agora todo esse suor e pó vos está pedindo água clara e lustral...

E, diante de D. Gil, o ondeante Harbrico sustentava numa das vastas mãos cabeludas uma bacia de prata, na outra uma fina toalha, que arrastava sobre a relva as rendas ricas da sua franja. Com que delícia banhou a face! Da água saía um aroma de benjoim. E uma frescura penetrante calmou de repente toda a sua fadiga dos ermos atravessados... Mas já o ágil Harbrico arrojara toalha e bacia, e voltava, todo ele ondulando, com um denso molho de penas rutilantes de galo: – e tão fina e destramente lhe sacudiu o espesso pó dos caminhos, que a sobreveste negra, os boteirões de couro escarlate, pareceram como novos, sem ter servido, e as esporas de ouro rebrilharam com um lampejo desusado!

D. Gil grandemente se maravilhava. E por trás dele, Pêro Malho, tendo limpo e pendurado as armas do amo, e lançado a pastar as suas mulas, junto aos dois corcéis negros, considerava o Senhor de Astorga com assombro e desconfiança. Era sobretudo aquele tufo de cabelo erguido na testa, como uma crista flamante, que o inquietava. E que alforge era aquele que continha, na sua estreita bolsa, bacias de prata, bragais de linho fino, toda a hucharia de uma mesa real, e tapizes de rico samite? E onde houvera mais coruscante olhar, negro como fendas do Inferno, do que aquele do estranho Harbrico? O bom Pêro coçava o queixo, com um desejo, que o invadia, de gritar de repente, por sobre o fidalgo, o escudeiro, e os alforges, o nome afugentador de Jesus, Maria, José.

Mas, justamente, Harbrico espalhava diante dos cavaleiros uma deliciosa e irresistível merenda! Eram gordas perdizes aloiradas, um vasto salmão frio e cor-de-rosa, com um molho de salsa e cravo que perfumava o ar, cestos de pêssegos e uvas, como só há nos pomares de el-rei... E às garrafas, cobertas de veneráveis crustas negras, deitadas com cuidado na relva, o destro Harbrico ajuntou pichéis de vinho espumante e branco, que ele trouxera de entre a espessura do bosque, e onde cintilavam pedras de gelo. Esfomeado, sedento, o bravo Pêro escancarava os lábios de onde escorria uma baba. E, com convicção, pensou: «Venham de Deus, venham do Demónio, quando há fome e sede, não se recusam vinho nem perdiz». E, servilmente, fraternalmente, sorriu a Harbrico, que mostrou também a grande dentuça amarela e aguda, como a de um lobo.

Todos aqueles bons comeres, e frescura de vinhos, grandemente encantavam D. Gil! Ele, que, em Gonfalim, nas festas do solar, sempre fora indiferente aos mimos melhores da fornalha e da adega, agora, desde que naquele fresco prado se estendera ao lado do Senhor de Astorga, só pensava nos regalos da boa merenda! Ao enterrar a faca aguda no peito da perdiz, sorria, com os beiços lustrosos, como um frade guloso: – e quando Harbrico lhe deitou na vasta taça de prata um vinho gelado que espumava, a sua mão de cavaleiro tremia de gozo e gula. O Senhor de Astorga apenas colheu alguns bagos de uva. Mas que rijo beber! Rejeitando as taças, agarrava com a sua vasta mão cabeluda os garrafões, e, de um trago breve e ansioso, os despejava, sem que na sua barba ardente restasse um brilho de humidade. E, no entanto, cuidava da satisfação de Gil.

– Provai daquele empadão de Alsácia... Aquela pimenta amarela vem das pimenteiras do Papa...

Depois, estendendo mais na relva as suas longas pernas, calçadas de botas negras:

– Há na verdade horas doces na vida! –observou. – Que melhor alegria que uma boa merenda, com esta frescura de vinhos, por uma sesta quente de Agosto, entre esta bela verdura!

– Grande razão tendes, Senhor de Astorga! – exclamou D. Gil, cujos olhos resplandeciam. E que esvaziara um copo de vinho de Chipre. – E depois de tão feia jornada, como venho passando, desde que entrei em terras de Leão, esta hora que vos devo é muito para ser lembrada.

O Senhor de Astorga pousou, sorrindo, os seus olhos redondos em D. Gil.

– Muito me recordais por vezes no jeito, no dizer, o vosso avô D. Rui!... E para onde vos ides assim, em tão longa jornada?

– A Paris, Senhor de Astorga.

O Senhor de Astorga moveu lentamente a cabeça:

– Grande cidade, fina cidade... Bons amigos lá tenho! Na Corte e nas Escolas.

Foi uma interessante surpresa para o Senhor D. Gil. Como! O Senhor de Astorga assim conhecia Paris, e as Escolas? Mais venturoso ainda fora, pois, aquele encontro, que dele podia tirar grandemente ensino e conselho. Que para as Escolas, em Paris, ia ele, por aquela jornada... Mas pouco sabia, na verdade, dos mestres que lá ensinavam, e dos usos dos escolares com quem ia acamaradar, e dos preceitos que se impunham a quem procurava o bom saber... Só estava certo, que assim era a fama em Portugal, que para quem desejava aprender, se devia ir às Escolas de Paris. Estava ali a Verdade.

O Senhor de Astorga alçou com solenidade as suas espessas sobrancelhas, alargou os olhos claros, e teve este ditame:

– Para o grande saber, só há na Terra uma escola, e essa em Toledo.

E como Gil o olhava perplexo:

– Que pretendeis vós aprender?

– As artes médicas.

O Senhor de Astorga encolheu os ombros, com largo e risonho desdém:

– Oh! para isso decerto tendes em Paris mestres que bastem. E mesmo em Zamora encontrareis o bom físico árabe Reimão Esterrávia! E até na vossa Coimbra tendes homem professo, que tudo vos podia ensinar, em Mestre Esteves Garracho!... Mas vós, Senhor D. Gil, um moço de tão boa feição, de altos espíritos, que decerto amais a fama, como vos quereis amesquinhar em saber tão mesquinho?

D. Gil, que corara aos louvores, murmurou surpreendido:

– E que outro saber há mais?

Mas uma risada aguda, silvada, cascalhante, ressoou por trás, entre os troncos das árvores. E os dois cavaleiros, voltando o rosto, viram Harbrico, sentado na relva, ao lado de Pêro, com vitualhas e garrafas espalhadas diante, que se torcia, com as mãos nas ilhargas magras, a boca fendida numa hilaridade disforme, gritando «que rebentava!» – enquanto ao lado, debruçado sobre ele, com o olho brilhante, o dedo espetado, Pêro lhe segredava uma história. Os dois molossos, sentados em frente, conservavam uma gravidade sombria.

– Divertido escudeiro tendes, Senhor D. Gil – murmurou, sorrindo, o Senhor de Astorga. – E, pela viola que lhe vi ao ombro, penso que sabe trovar. Ocasião terei de o ouvir por essas estradas, agora que há Lua, porque, como ides a Segóvia, o nosso caminho é o mesmo até Zarro! E agora deveríamos descansar, e fazer a sesta à mourisca, para montar e partir pela frescura da tarde...

E imediatamente D. Gil sentiu que os olhos se lhe cerravam, e, reclinado no coxim de veludo, docemente adormeceu.

Mas, adormecido, percebia a frescura das grandes árvores, via o brilho do claro lago: – e, sem saber se era já a viola de Pêro que tocava, começou de ouvir uns sons muito lentos e doces, que tremiam como fugindo de cordas afinadas. Depois uma fina flauta suspirou, depois um lento gemido de harpa passou. E bem depressa uma doce, grave melodia encheu tão completamente o bosque, como se fossem os ramos que cantassem. E era um canto todo de adoração, mas contido, apenas murmurado, como de uma multidão invisível que, estaticamente, esperasse uma aparição maravilhosa. Uma imensa languidez passou no ar. Todo o sol que caía na água, nas folhas, rebrilhou com uma cintilação mais intensa.

Mas o canto subia, mais ardente, quando por detrás da ponte da ilha, que verdejava no meio do lago, surgiu a proa de uma barca que tinha a forma de um cisne, todo enrufado e nadando. E foi então apenas um murmúrio infinitamente doce, errando na umbrosa espessura do arvoredo. Lentamente a barca avançava: – e nela, de pé, vinha uma mulher de beleza maravilhosa. Entre o vestido negro que a cobria, o seu colo e os ombros nus lançavam uma claridade, como a da neve sob o Sol. Por sobre o manto negro, cujas pregas desciam, pesadas e hirtas, enchendo o barco, os seus imensos cabelos caíam em outro manto de ouro fulvo. Nenhuma jóia a enfeitava, uma languidez negra e profunda cerrava quase os seus olhos, nos seus lábios vermelhos errava a tristeza de um sorriso. Lenta e serena, a barca fendia a água sem deixar sulco; e pouco a pouco o canto em redor, no fresco arvoredo, era mais sumido e vago.

Quando a barca tocou a margem de relva verde, o cântico findou, e houve só em redor um êxtase mudo, da verdura, das águas, da luz. D. Gil esperava, sem se mover, deslumbrado. Então a mulher maravilhosa deu um passo lento na relva, depois outro: o seu grande manto arrastava pesadamente: – e, sob a orla do seu vestido, brilhava a brancura dos seus pés nus. Assim, docemente, se acercou de D. Gil, cujo coração batia ansiosamente: – e à medida que ela assim se avizinhava dele, o casto moço percebia que o pesado vestido negro, o pesado manto negro, se adelgaçavam, se tornavam transparentes. Já deixavam distinguir, sob as suas pregas, as brancuras vagas de um corpo divino. O longo manto não era mais que um véu tão leve, que nem vergava as pontas finas das relvas. O vestido era tão fino, que se colava aos selos, se enrolava nos joelhos. E, quando a mulher maravilhosa chegou junto do seu rosto, toda a sua nudez, mais bela que a de Helena, de Vénus, resplandecia, mais branca, sob a ténue névoa de uma gaze negra.

Então aquele corpo maravilhoso se debruçou sobre ele, que lhe sentia o calor, o perfume. E os Lábios vermelhos e fortes deram nos seus, que tremiam, um beijo tão profundo, que um grande grito de gosto doloroso fugiu do seu peito. Acordou: – e ao lado, de pé, já com o seu largo sombreiro posto, o Senhor de Astorga afivelava o cinturão da espada.

– Boa sesta fizemos, Senhor D. Gil! A tarde está fresca e é tempo de cavalgar, se queremos ainda hoje chegar a Alba de Tormes.

D. Gil ainda tremia. E os seus olhos inquietos procuravam em redor, numa saudade daquele sonho divino que findara.

Montou em silêncio na sua mula, que Pêro Malho já tinha à rédea. E quando saiu daquele doce prado, ainda se voltou na sela, olhou a relva, a água serena do lago, a ilha, o arvoredo todo – e um suspiro fugiu-lhe dos lábios.

Muito tempo cavalgaram calados. A estrada agora era entre grandes arvoredos, fresca e risonha. [1]

Nota dos editores de 1912

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  1. Termina aqui o manuscrito.