Onofre, desde os vinte anos, vivia no deserto da Tebaida.
A sua caverna de Solitário era no alto de um monte, todo de rocha avermelhada e nua, sem um tojo ou musgo que lhe amaciasse a aspereza: – e decerto outrora abrigara salteadores sarracenos, porque a vasta laje que diante dela se estendia, em eirado, estava cerrada e defendida por um muro de pedras soltas, enegrecidas pelo fumo de labaredas, e com seteiras, como as de uma cidadela. Rudes degraus, escavados na penedia, desciam tumultuosamente a um vale, onde um fio de água, caindo de fraga em fraga, criara um horto de ervas silvestres, tamargueiras, terebintos, três altas palmeiras, e mesmo uma mimosa, que em cada Primavera floria e perfumava o ermo. Para além, depois de grossos penhascos de pórfiro, eram as areias, as imensas areias arábicas, ondulando até ao mar Vermelho, lisas, fulvas, como a pele de um leão.
Cada vez que a mimosa se cobria de cachos amarelos, Onofre, com um ferro de lança encontrado no fundo da sua caverna, entalhava na rocha um risco, como os que seu pai, na sua taberna, em Afrodite, sobre o Nilo, traçava no muro para apontar os anos do vinho mareótico.
Todos os três meses, um monge aparecia, montado no seu dromedário, trazendo em seirões de esparto esses pães de aveia, duros e mais largos que rodas, que os abades dos mosteiros distribuíam pelos Solitários. Sem descer do dromedário, o monge dava a
Onofre o seu pão, bebia uma malga de água fresca, contava a nova considerável de algum édito imperial sobre os Cristãos, de um outro César aclamado pelas legiões, ou de uma heresia inesperada que afligia a Igreja – e partia, desaparecia entre as dunas, curvado sob o seu longo capuz, ao lento badalar dos guizos do seu dromedário. Por muitas luas, Onofre não avistava outra face humana. E a sua vida recomeçava, sempre igual, como a água do seu horto, que, com o mesmo rumor, escorria nas mesmas pedras.
Cada noite, ainda com as estrelas empalidecendo no céu, deixava o montão de folhas secas que lhe servia de leito, atava uma corda em torno da sua túnica de pele de cabra, e ajoelhado, com os braços abertos diante de uma cruz de pau cravada entre duas lajes, no eirado, começava a sua oração, até que ao fundo dos areais já rosados o Sol surgia no céu sem nuvens, já ardente, todo de brasa e de ouro. Direito, então, Onofre entoava um cântico, agradecendo ao Senhor o dia novo. Depois, em obediência ao preceito de Santo Antão, que atribuía ao trabalho tanta virtude como à prece, tomava a sua enxada, o seu podão, o seu balde de couro, e descia, ainda cantando, a trabalhar em baixo naquele horto que a água criara, e que ele alargava, pacientemente, por sobre as areias, para que a Palavra se cumprisse, e o Deserto se cobrisse de flores. Quando o céu pesado flamejava na sua imobilidade, e as ramarias enegreciam como bronze na refulgência ambiente, e a terra lhe escaldava os pés nus, Onofre, esfalfado, sedento, fumegando como um boi na lavragem, subia à sua caverna, desenrolava os rolos de papiro, que continham os Quatro Evangelhos, e encolhido numa tira de sombra, depois de beijar as linhas divinas, mergulhava numa meditação, em que toda a vida do Senhor revivia lentamente na sua alma, e a inundava de doçura, ou a traspassava de dor. Prostrado, com a face nas lajes abrasadas, orava: – e de novo descia ao seu duro labor, cantando salmos, enquanto a enxada batia o torrão, ou os ombros lhe vergavam sob o carreto de pedregulhos, para que, sem descontinuar, subisse do ermo para o Céu, como um fumo de ara que nunca se apaga, o preito do seu coração.
Lentamente, monte e rochas se tingiam de uma cor rosada, semelhante a um rubor humano: as alturas eram de âmbar fino: nas folhagens, mais leves, e como aliviadas, passava um frémito de asa, um pio fugidio das aves que vinham beber à fonte: – e quando Onofre recolhia ao alto eirado, com a sua enxada ao ombro, todo o deserto, em baixo, até ao mar, rebrilhava como uma lâmina de cobre. O Sol descia por trás de nuvens, que ensanguentava – e era então que o Solitário, aliviando a fadiga num longo suspiro, se sentava, com uma côdea de pão duro e umas poucas de tâmaras no regaço, e a sua cabaça de água fresca pousada junto da cruz. Com os olhos derramados pelas areias imensas que empalideciam, Onofre comia lentamente.
Cada sorvo de água espalhava no seu ser, com a frescura, o contentamento de um dia todo consumido a trabalhar na obra de Deus. E a sua Oração de Graças era tão enternecida, que as lágrimas, uma a uma, lhe rolavam nas barbas poeirentas.
A Lua, curva como uma barca do Nilo, ou redonda e faiscante como a roda de um carro sagrado, roçava o cimo negro da Cordilheira Arábica. Na ravina os chacais uivavam descendo à fonte. Depois, tudo emudecia – e Onofre encostado ao parapeito, embebido na frescura e na paz do luar, sentia, naquele silêncio universal, o bater cansado do seu coração. Mas mesmo esses instantes de repouso os dava ao Senhor – atribuindo somente à sua misericórdia o impulso que o arrancara de entre os homens, e do lodo em que eles se debatem, e o trouxera à pureza desta solidão, onde a eterna verdade se avista tão claramente, como aquela grande Lua, lustrosa e consoladora. No seu reconhecimento, de novo se abatia ante a cruz, e era de joelhos, cantando um derradeiro salmo, que, depois de se arrastar três vezes em torno do seu eirado, Onofre penetrava na sua negra caverna, e se estendia, contente, no seu leito de folhas secas.
Assim, naquela vastidão de areias, que ondulava do Egipto até à Arábia, sob essa imensa curva do céu onde se cansava a asa das águias e dos ventos, se movia aquela forma solitária, única entre tanta imensidade, sempre diligente como uma abelha que faz o seu mel – orando de braços abertos, cavando a terra, folheando o livro santo, trepando os degraus da caverna com o seu odre de água, de rojo nas lajes ante a cruz, entoando da borda do seu eirado um cântico de grande esperança, mergulhando na treva da sua caverna, emergindo ansiosamente dela para voltar à oração, ao labor, ao êxtase, à penitência incansável. Deus olhava – e esperava.