Mas poucas luas tinham passado, quando, uma tarde, ao escurecer, voltando do mosteiro longínquo de Tebane onde fora buscar semente para semear, encontrou, sentado pensativamente numa pedra, um homem, um velho, com uma túnica severa de filósofo, e um bastão na mão, que se ergueu, o saudou, e começou a caminhar a seu lado, com respeito e calado.
Estranhando o seu silêncio, Onofre murmurou:
– Bem-vindo sejas, meu irmão em Jesus, filho de Deus Padre, que por nós padeceu!
O velho, sem levantar os olhos do chão, onde as suas sombras se estendiam longamente, disse com lentidão:
– Deus é um, e imaterial, e não podia ter filhos.
E como Onofre recuava, escandalizado, o outro, retendo-o pela manga, rompeu em palavras estranhas e magníficas. Se Jesus era filho de Deus, porque se chamara a si mesmo filho do Homem? Tudo nega, em cada uma das suas acções, e das suas palavras, a sua essência divina. Se ele era Deus, para que necessitava o Baptismo? Como poderia o Demónio tentar, pela oferta de um reino na Terra, aquele que ele sabia possuir, como Deus, os remos da Terra e do Céu? Quando a Madalena lhe tocou a túnica, ele exclamou: «Quem me tocou?» Logo não sabia: onde estava então a sua omnisciência de Deus? Em Emaús, depois da ressurreição, Ele pede aos discípulos que lhe apalpem as chagas. Logo, mesmo depois de ressurrecto, era um corpo material, susceptível de verter ainda sangue
Onofre dilatava os olhos, estupidamente. E então o homem, apontando com o báculo para o lado do Deserto, onde o Sol desaparecia, tornou:
– O meu caminho é para além... Mas a tua alma é digna de receber a Verdade. Outros virão que t’a ensinarão.
E outros vieram – uns solitariamente e em silêncio, surgindo de entre as rochas, que ressoavam sob os seus bastões ferrados, outros, em bando, através dos areais, como mestres marchando entre os seus discípulos. Era de noite e sob a Lua cheia. E por vezes o eirado, diante da cova de Onofre, ficava atulhado de uma multidão de homens, de longas barbas, soltas e entrançadas, envoltos em mantos negros, ou ostentando simarras de cores estridentes, todos mais pálidos que marfim, com olhos encovados que refulgiam, e agitando nas mãos inquietas grossos rolos de papiros, ou tabulários escritos. Ora um só, de pé, falava com abundância e cadência: ora todos, tumultuosamente, disputavam, mas sem se encararem, com os raios negros das pupilas ardentes cravados no Solitário. Encruzado à porta da sua caverna, com os longos dedos descarnados pousados sobre os ossos salientes dos joelhos, Onofre pasmava para aquelas facúndias sonoras.
Através delas, uns após outros, sem respirar, enchendo o deserto de ruído, aqueles homens (que eram decerto doutores) afirmavam princípios, cheios de irrisão ou mentira. – O Deus de Israel era um anjo subalterno! Jesus não passava de uma simples continuação de Adão! O Mundo fora criado por um delírio do Senhor! Para vencer a carne era necessário contentá-la – e só pelo vício se atingia a perfeição! Há só uma alma, que está tanto nos homens como nas rochas! Só a matéria é eterna, e os deuses morrem. O Mundo foi concebido pelo Diabo! Jesus é filho de Achmaroth e a sua residência é o Sol! O Espírito Santo é uma mulher! Só Caim é verdadeiro!
E a cada uma destas revelações, lançadas com estridor, Onofre ora entreabria uma boca néscia, ora rompia num riso largo e límpido, que lhe sacudia as costelas sob o seu surrão de peles. Então, arremessados sobre ele, todos lhe brandiam junto da face os seus papiros, os seus tabulários. Eram as Provas! Eram as Escrituras! Eis a Profecia de Maxila! Eis o Tratado de Apolónio! Eis o Tratado da Alma Adventa!...
– Compreendeste?
E o mais novo dos doutores, que tinha unia mitra oriental, suplicava Onofre, curvado sobre ele, com sofreguidão:
– Faz um esforço! Faz um esforço! Diz que percebes!
Silenciosamente, com um resto de riso que lhe faiscava nos olhinhos miúdos, Onofre encolhia os ombros, murmurava:
– Só creio no Padre, no Filho, no Espírito Santo!
Então um murmúrio de tédio, de indignação contra tanta simplicidade, corria entre os doutores subtis. Os mais violentos arremessavam-lhe injúrias. Outros, majestosamente, voltavam as costas largas, cobertas de largos mantos que roçagavam. E todos se sumiam por entre as rochas, em tumulto.
Mas, com o crepúsculo, voltavam – e Onofre lá estava sentado à entrada da sua cova, já risonho, como quem numa feira se prepara a gozar as artes divertidas dos mágicos.
E a grande lição recomeçava, ressoante e facunda. Cada dia surgia algum doutor novo, com um dogma novo. E sempre o riso do Solitário lhes respondia! Sempre a confissão da sua fé, cândida e simples, no Padre, no Filho e no Espírito Santo. Até que uma noite, em que a douta contenda se alongara, e a Lua já desmaiava – como Onofre, fatigado, apesar de terem sido mais profundas e sublimes as concepções dos doutores, começasse a bocejar, cerrando as pálpebras – um que tinha uma mitra bicórnea, onde lampejavam pedrarias, ergueu o braço, clamou subitamente:
– Deixai esse bruto!... Vinde!
E num grande silêncio, o bando dos doutores, todos hirtos e juntos, elevaram-se no ar, e fundiram-se, docemente, na claridade última da Lua. Já Onofre dormia.
Não voltaram: – mas foi então, no Solitário, como uma saudade daqueles homens, e daquelas vozes, que cada noite povoavam a sua solidão. E mais deserto lhe pareceu o Deserto. E às horas em que eles costumavam aparecer, como sombras que se desprendiam da sombra, e ele, depois do labor do longo dia, se encruzava no chão, preparado a gozar, como em recreio, as suas arengas sonoras como músicas de batalha – subia às penedias, aguçando os olhos, a espreitar se algum, ou todos, não voltariam, pelo caminho estreito, apanhando os mantos por causa dos tojos ásperos.
O caminho permanecia ermo, e não havia nem estrelas nem Lua: e vazio e largo lhe parecia o deserto, em redor – e dentro do seu coração.
Mas uma noite, que ele assim espreitava do cimo das rochas, pensou ouvir de repente o tinir lento e triste dos guizos de um dromedário. E tochas fumarentas bailaram na sombra.
Alvoroçado, ele gritou, agitando os braços:
– Por aqui! Por aqui!
E imediatamente, com um rumor de armas em marcha surdiram em fila, do caminho estreito, soldados barbudos, com os escudos metidos em sacos; uma liteira emplumada, de panos de púrpura, que se balançava sobre os ombros de escravos; as insígnias de Roma; e dromedários com fardos e odres. Vozes bradavam entre o fagulhar das tochas:
– É aqui que vive o Santo Ermita?
O Solitário, espantado, balbuciou:
– Onofre, servo de Deus, aqui vive!
Então, de entre os panos franzidos da liteira, que estacara, um homem, togado de branco, e todo ele mais branco que um mármore, escorregou, pousou no chão os seus borzeguins de escarlate e ouro. Os contos das lanças ressoaram no chão, duas buzinas ásperas estrugiram, o dromedário ajoelhou. E o homem, arrepanhando as pregas da sua vasta toga, caminhou para o Solitário, com lentidão e majestade. Depois, na grande mudez do deserto e da noite, começou, direito, grave, como se arengasse num Senado:
– Onofre, a nomeada da tua pureza e das tuas penitências transpôs o Deserto, chegou a Roma. E eu venho em nome de Honório, César, três vezes Augusto, Invencível e Senhor do Mundo, e que te saúda!
E saudou. Um brado correu entre soldados e escravos:
– Glória a César, três vezes Augusto!
E, bruscamente, o homem togado abeirou-se do Solitário que recuava, intimidado, apertando contra o peito as mãos magras por sobre as longas barbas – e num murmúrio familiar e risonho continuou:
– Onofre, aqui está a coisa imperial e formidável de que se trata. Honório, atraído pela Verdade, quer conhecer a Lei Nova. Mas quem seria bastante puro, e inspirado do Céu, para lha ensinar? Só tu, amigo! Os doutores de Alexandria e da Palestina têm almas cheias de ambição e mentira. A tua é cândida! E, pela pureza perfeita, tu atingiste a vontade perfeita. Em Roma viverás no palácio de César. E, quando César conhecer a Lei Cristã, convocará o Senado, e todo o Império será proclamado Cristão. Hem? Tu mesmo, por tua mão, fecharás as portas dos templos. E, sem mesmo despires esse surrão, em toda a tua simplicidade, oferecerás ao teu Deus Roma, as Legiões, as Províncias, e todo o Género Humano. Hem?
Debruçado, com os braços abertos, de onde pendiam os panos rubros do manto, ele parecia uma ave de rapina, coberta de sangue, e de asas já cerradas sob a presa fácil.
E, num bafo ardente, murmurava:
– Que ocasião, Onofre, que ocasião! O que não fez Paulo, nem Gregório, nem o grande Atanásio, nem o imenso Orígenes, tu o farás só com falar de manso e finamente junto à orelha de César! Bem sei! Não é o orgulho do esplêndido feito que te impele... Decerto. Mas pensa! Todos os martírios findos, os ídolos cobertos de bolor, a terra cheia de cantares, e o Cordeiro no seu Redil. Hem?
Onofre tremia todo, deslumbrado. Balbuciou:
– E o Imperador?
– Quer! Pois se já, nos Idos de Março, uma noite, ele vos viu em sonhos, a ti e ao Outro – ao Outro com a sua coroa de espinhos, e as mãos ainda com os pregos, que te empurrava, para diante de César, e gritava, em grego: – Este te ensinará o que convém saber! E eras tu, tu com essa pele de cabra, essas barbas, e essa beleza clara e majestosa, que te comunica a virtude. Oh Onofre, a terra cansada é por ti que suspira! Vem.
E Onofre passou longamente as mãos pela face, sorrindo. E deu um passo, depois outro, com o pulso já preso na garra do homem de púrpura. E ia, como no esplendor de um sonho, todo feito de certeza!... César esperava por ele para confessar a fé! Por que não? O imperador Constâncio escrevera duas cartas a Antão, e as patrícias de Alexandria faziam a travessia do Deserto, para beijar os joelhos chagados de Pacómio. E a sua vida não fora menos terrível que a desses Solitários magníficos! Não havia forma de dor que ele não tivesse atravessado: – e as suas lágrimas de penitência, juntas, podiam fazer um rio no Deserto! Mas, enfim, Deus elegia-o para o feito melhor dos tempos! E ele marchava, firme, sob o olhar contente do Céu! Todo o erro ia desaparecer da Terra; e desde o primeiro dia, ele persuadiria o imperador a exilar os heréticos para os confins das nações, onde começam as neves e os mares tenebrosos. Todos os templos seriam destruídos, e queimados os livros dos filósofos que perpetuam o erro. Depois, reformaria as igrejas da Ásia. E, num grande concílio, a doutrina pura seria estabelecida, para sempre imutável. Então, começaria uma grande paz divina. Que obra! Que obra! Ao lado do imperador, ele percorreria as províncias. Mas para si não queria honras, nem poder sobre as almas... Talvez, apenas, o governo dos mosteiros do Egipto. E, junto da púrpura de César, os povos prostrados pasmariam do seu surrão de pele cheio ainda dos espinhos do tojo! Que obra! Que obra! Todo ele crescia – e parecia ver as estrelas de mais perto, como se fossem já a sua coroa imortal.
– Chegai a liteira! – clamava o homem purpurado. – E vós saudai o Mestre de César, o possuidor da Verdade!
Todos os ferros das lanças retiniram, as insígnias de Roma ondearam no ar, os escravos estavam rojados no pó. E o homem então, junto das barbas do ermita, murmurou, na abundância da sua vitória:
– Em Roma verás multidões mais prostradas! Todas as igrejas da Ásia porão o teu nome nas Escrituras! E bem o mereces! Porque o Outro, em Galileia, só converteu pecadores – e tu, persuadindo César e com ele o mundo, és maior, és maior! Vem!
Maior que o Senhor! Então, foi na alma de Onofre como um clarão que alumia um precipício! Sacudiu com um grito a mão do homem que o escaldava. E no seu olhar, reconheceu o lume do Inferno. Na sua angústia só pôde suspirar: «Oh Jesus! Oh Jesus!» Subitamente, o grande manto de púrpura, mole e como vazio, abateu no chão e, ao longe, a liteira emplumada, o dorso do dromedário, as lanças em confusão, fugiam em debandada, e num rolo de fumo.
Onofre caiu de joelhos. Diante dele o manto enrodilhado fazia uma mancha vermelha. Palpou muito de leve com os dedos: – era sangue! Arrepiado, num terror infinito, recuou – e o sangue começou a rebrilhar, tão liso e vidrado, que ele avistou nele, como num espelho, a sua face. Não a vira desde que entrara no deserto – e recuou, espavorido, ante a fealdade com que ela lhe reaparecia, dura, esbraseada de orgulho, toda entumecida de Pecado.
Muito tempo, então, chorou amargamente! Oh miséria, oh dor! Em tantos anos de penitência e ermo, o seu coração não obtivera purificação – e permanecia coberto de uma crosta de maldade. Decerto mil noites de dura peleja ele rechaçara o Pai da Mentira! Mas esses eram os triunfos fáceis que os mesmos pagãos, sem o socorro de Jesus, alcançam sobre a Carne. Quando, porém, o grande Mentidor vem, e do cimo de uma rocha, como ao Senhor, lhe promete uma grande glória entre os homens, logo ele se deixa levar pela mão, consentindo, com uma facilidade de prostituta. Oh alma miserável, há tanto fora do mundo, e ensopada ainda no orgulho do mundo, como uma esponja que saiu da água podre! Que penitência, e que exercício heróico de humildade havia aí, que pudesse espremer, até à última gota impura, aquela soberba que trasbordava, empestava todo o seu ser! Trinta anos se flagelara! Trinta anos se esfomeara! A sua oração subia para o Céu tão constantemente como o seu hálito. E arrastara correntes de ferro; velara meses, com os joelhos em pedras agudas, e os olhos risonhos postos nas claras estrelas, ou dormira embrulhado em cardos; dera a beber do seu sangue às vespas; esmagara os ossos debaixo de grossas pedras... E em vão!... Que podia então ainda fazer naquele ermo? Onde havia martírios mais dolorosos? Onde se aprendiam preces mais extáticas?... Onde?
Sentado, abatidamente, sobre os calcanhares, com a barba descendo em flocos entre os braços caídos, Onofre erguia os olhos arrasados de lágrimas, suplicando ao Céu um ditame.
Porventura aquela vida solitária seria estéril para o Bem?... Na verdade – entre aqueles areais e aquelas penedias, como exercer suficientemente a humildade, a caridade? Ele não tinha sequer ao seu lado um cão, para quem pudesse ser paternal. E se a humildade passava dentro da sua alma, sem que o mundo a testemunhasse, ou com ela aproveitasse – era fácil, e era vã. Que fazer? Deixar o ermo? Voltar para entre os homens?
Lentamente murmurou, no silêncio:
– Voltar para entre os homens!
E, ante os seus olhos, que se embebiam nas estrelas, julgou vagamente entrever a forma de um homem: – estava sentado junto de um muro, quase nu, e gemia coberto de chagas! Depois o muro prolongou-se, e era um alpendre, onde outro homem, um escravo, muito velho, com o dorso vincado dos açoites, arquejava, fazendo mover a pesada mó de um lagar! Depois a mó do lagar separou-se em lajes, e era uma estrada onde seguiam, ligados por cangas, arrastando grossas algemas, bandos de cativos, que soldados impeliam com picadas das lanças. Depois as lanças ficavam cravadas no chão, e eram cruzes, onde agonizavam, listrados de sangue, corpos que os abutres, voando em redor, batiam com as asas negras. E dos olhos de Onofre, que seguiam estas dores, as lágrimas caíam em fio, silenciosas e quentes.
A cada lágrima que assim caia, Onofre sentia no seu coração um alívio inesperado e novo.
Muitas lágrimas chorara no ermo – mas nunca tão consoladoras! E todavia eram as memórias das Dores do Senhor, do seu doce corpo cheio de chagas, do seu suor de aflição, e da sua queda, na áspera serra, sob o ultraje dos soldados e da cruz, que lhas fizeram derramar, em noites de piedoso cismar. Porque eram mais doces e pacificadoras estas, que lhe arrancavam as chagas, e os trabalhos, e os cativeiros, e os suplícios dos homens mortais? As lágrimas vertidas pelas dores humanas eram, pois, mais gratas ao Céu, que as lágrimas derramadas pelas dores divinas! Decerto, então, servir os homens no mundo, seria mais apreciável no Céu, do que servir a Jesus na solidão...
De pé, atirou os braços para as estrelas, e murmurou:
– Oh meu Senhor, ensina o teu servo, que sofre o tormento da incerteza!
Um desejo, bruscamente, entrou na sua alma – de ir ser bom e humilde no mundo.
Então, com a mão ainda toda trémula, limpou as lágrimas. Alegremente, entrou na sua cova, apanhou o seu bordão, meteu no seio, sob o surrão de pele, a cruz preciosa, que fizera Antão, na cidadela do Alto Egipto.
Depois subiu às rochas – envolveu num longo olhar o deserto, a horta, nunca acabada, que cultivara, as palmeiras benéficas que o tinham alimentado, o arbusto, que flor a flor lhe marcara os anos de penitência, o regato que fora a frescura do seu Deserto. E com um longo suspiro, tomando pelo rumo das estrelas o caminho do sul e do Grande Mar, Onofre voltou para entre os homens.