Últimas Páginas (1912)/Santo Onofre/VIII
Assim Onofre gemia sob o esplendor das estrelas. Quando a madrugada já clareava, apanhou o seu bordão, e marchou para os lados do deserto líbico. Quando já as palmeiras apareciam mais raras e espaçadas, e nas areias, rosadas pelo sol, apenas aqui e além rebrilhava alguma derradeira poça da água do Nilo, ele avistou um chacal, que rastejava entre pedras procurando o covil – e considerou quanto se assemelhava àquele animal imundo, que fugia da luz e dos homens. Só na verdade os diferençava, não a alma porque a dele se bestializara pelo Pecado – mas o corpo, que nele caminhava erguido, com a face para o céu, à maneira do homem mais justo, e na fera pousava sobre as quatro patas, com o focinho baixo, como mal despegado ainda da argila original de onde nascera. Então, para mais completamente se humilhar, e nada reter da humanidade superior, que não merecia, decidiu igualizar o seu corpo ao do bruto – e penetrar de rastos na Penitência e no Deserto. Arrojou o bordão, despiu o saio de lã, atirou as mãos sobre a areia, e começou a caminhar de rojo, lentamente, entre a erva já rara e amarelada, como uma alimária ferida.
Toda a verdura findara e só havia agora terra seca – a planície arenosa, coberta de um rubor matutino, estendendo-se às montanhas líbicas, que pareciam de um mármore fino e cor-de-rosa. Onofre avançava, orando, gemendo, com a longa barba a arrastar. A espaços, parava, não para repousar, mas para descobrir na areia os sulcos que os seus joelhos pesadamente cavavam – e sentir bem, nesse rasto de fera, a imensidade da sua abjecção. E se avistava seixos aguçados ou uma pedra áspera, por sobre elas se empurrava, para abater, pela dor da carne débil, a rebelião da alma soberba. Já a sede o devorava, e bebia, com avidez e gosto, as lágrimas grossas que lhe arrancavam as saudades dos seus anos de paz e pureza.
O dia ia em meio: todo o deserto refulgia, lívido, de uma horrível secura. As montanhas, ao longe, na tremura do ar quente, eram amarelas – e só havia, em toda a extensão, silêncio, solidão e sol.
Onofre avançava, arquejando, com a língua seca e pendente. Um poço de caravana, marcado ao longe por um círculo de pedras e dois tamarindos negros, surgia como uma tentação: – mas o penitente afastou a face, mais ansiosamente rastejou, fugindo daquela água, decerto turva e lodosa como de uma voluptuosidade mortal. E não cessava de orar. Quando encontrava ossadas de animais, esparsas no pó, erguia os olhos embaciados às alturas, murmurava: «Meu Deus, faz que os meus ossos vis, assim também branquejem perdidos!»
As angústias da fome, que o assaltavam, foram para ele como bem-vindas – e ofertou essas dores ao Senhor como lhe ofertara a da sede. O destroço do seu corpo era tão grande, que cada pousar da mão esfolada na areia ardente lhe arrancava um gemido: – e já por momentos se abatia, estirado, inerte, como morto, sob a dardejação crua do Sol. E era então nele um terror angustioso da morte, que lhe abreviaria os tormentos, e lhe impediria o resgate.
A refulgência do deserto esmorecia, e um lento véu anilado revestia a cordilheira líbica. Era o descer da tarde – e com ela descia sobre Onofre uma sonolência, fria e funda, como um desmaio.
Para a sacudir tentava cantar hinos santos: – mas a sua pobre boca, ressequida e rígida, como de greda, só lançava sons roucos, que se perdiam entre gemidos. E marchar, já não podia, porque os seus joelhos eram duas chagas, onde se empastavam areia e sangue. Rasgou um pedaço da túnica, para os embrulhar: – e como o Sol se escondera e ao longe, um monte de pedra, uma magra palmeira, indicavam outro poço, para lá se arrastou, receando tombar num estado de inanição, que lhe encurtasse a penitência. A água do charco era negra e lodosa: – mas sobre essa pedra havia uns restos de farinha e de fava crua, desses que as caravanas deixam para as divindades do deserto. Comeu enfim, bebeu enfim! Lavou as feridas – e mesmo deixou que os olhos se lhe cerrassem, mas, de pé, apoiado ao gume de um penedo, para que o sono fosse doloroso e breve. Despertou aos uivos tristes dos chacais. Todo o céu se enchera de estrelas: – e Onofre pousando na terra dura as mãos em chagas, recomeçou a avançar no deserto. Tão radiantes e largos eram os astros, que a ilimitada areia alvejava sob a muda palpitação, com a lividez de um sudário: – e então grossas formas, terríveis pela sua bestialidade, vieram aterrar o coração cansado do penitente. Ora era um vasto macaco, de dorso arqueado, que sobre as quatro mãos caminhava ao lado dele, como ele, e quando ele gemia, gemia e quando ele orava, guinchava. Ora era um licorne, que vinha do fundo do ermo a galope, e estava diante de Onofre, com o seu corno enristado entre os olhos, refulgindo intoleràvelmente. Depois eram disformes morcegos quase tapando o céu, que se abatiam com um voo mudo e mole, e o cobriam com as suas asas, que tinham o calor de uma carne nua. E Onofre ia caminhando no ermo, rodeado de monstros.
Para os espantar, o desgraçado gritava o nome de Jesus – e eles recrudesciam, inumeráveis e silenciosos. Não eram, pois, demónios?
E Onofre deixou cair o corpo, como esmagado sob tanta cólera do Céu. Imediatamente, todas as formas medonhas, os dorsos, os focinhos, as asas frementes, se abateram, se estenderam como um pano fúnebre sobre o areal. E só houve um silêncio sob o grande céu estrelado.
Onofre cerrara os olhos, inanimado. E através de um descanso que o envolvia, doce como o da noite, entrevia a distância, batido por um sol de madrugada, um bosquezinho de palmeiras e sicômoros, que era o da morada em que nascera. Um fio de água descia de um tanque de pedra, cantando entre os linhos verdes. Os íbis pousavam na borda do terraço. Para além alvejavam os propileus, cobertos de relevos, do templo de Serápis. O velho escravo, que lhe ensinara as letras, lá estava no seu costumado assento de pedra, envolto nos panos brancos, todo rapado, cheio das rugas do saber, e imóvel, com as mãos longas, de cera, pousadas sobre os joelhos magros, meditando a eternidade. Homens graves, com a túnica branca dos cristãos, que se preparavam para atravessar o Deserto, em peregrinação às ermidas da Tebaida, esperavam sob a ramada de vinha, com os seus embrulhos no chão, e por cima o cajado. O velho escravo núbio Amés, carregava com lentidão os odres de água sobre os dromedários – e cantava um antigo canto da Núbia. Mais doce e triste era o canto, nos seus ais prolongados, que as ramas das palmeiras na sua cadência!... E ele, Onofre, lá estava também, curioso, pasmando para os homens que iam assim tão longe visitar Antão, e Pacómio, e Paulo, e os Santos magníficos que habitavam sepulcros...
Um enternecimento infinito penetrou Onofre – e estendeu ansiosamente os braços para aquelas imagens, tão antigas e doces. Oh! se ele recuperasse a simplicidade desses tempos, naquele bosquezinho de mimosas... As lágrimas brotaram quentes e densas dos seus olhos cerrados – e através da névoa deles, arvoredos e casas, e o dromedário, e o velho núbio, com a sua tanga, branca, tudo se confundiu e desvaneceu.
Então naquele imenso deserto, que o cercava, sentiu mais profundamente o seu abandono, e a sua miséria. Deus, seu socorro e força no ermo da sua antiga penitência, para sempre agora se retirara da sua alma. E era solitário, desamparado do Céu, tão velho, cheio de chagas, e deixando o seu sangue em rastos pelas areias, que ele tinha de afrontar as solidões, os transes, as necessidades, e os demónios. Que importa? Devia caminhar, e padecer.
E de novo recomeçou a rastejar, balbuciando louvores ao Senhor. Todas as estrelas se tinham apagado. Das formas monstruosas que há pouco o cercavam, nenhuma se destacava, ou movia na escuridão ilimitada. Apenas restava a mudez, a treva, e a solidão infinita. E sob aquele vasto céu negro, por sobre aquele imenso deserto negro – Onofre lá seguia, única forma viva, negra também, de rastos como um bicho, todo ferido, todo sangrento, gemendo com longos gemidos, que se perdiam na treva. E não cessava de avançar, nem de gemer. Sempre para diante, pousando na areia as mãos roídas e gastas, arrastando na areia os ossos descarnados dos joelhos – e chorando, e gritando: «Senhor, tem piedade! Senhor! tem piedade!»
Mas já a alma ia perdendo o domínio sobre o corpo: – e era só o seu desejo que caminhava para além, para as montanhas, porque a cada instante os braços se lhe estiravam pelo chão, moles e inertes, e entre eles a cabeça, coberta de suor regelado, ficava rolando na areia, na tontura de uma agonia. Tentava então, desesperado, arque-jando, solevar aquela carne miserável que o traía. E não podia, não podia! Só lhe restava acabar ali, naquela areia, sem alcançar o resgate encetado do seu pecado. E com a face voltada para o céu, para o céu negro, sem uma luz, que lhe fosse como uma esperança, esperou a Morte. Mas a Morte não vinha. Ante os seus olhos, embaciados e lívidos, como que surgia uma claridade. Era como uma névoa, vaga e rosada – e através, vinha de longe, tristemente, o tanger lento de uma sineta em marcha.
Subitamente sentiu rumores, vozes. E entreabrindo as pálpebras, distinguiu faces escuras e ardentes, que se debruçavam sobre ele, um cavaleiro com uma lança, e longos pescoços de dromedários, carregados de fardos. Uma cabaça foi posta contra os seus lábios, e bebeu dela, avidamente. Já havia mãos fortes que o erguiam – e sobre os seus joelhos feridos caía deliciosamente um fio de óleo muito fresco. E já de pé, entre os braços que o amparavam, Onofre desmaiou, docemente.
Mas, através do seu desmaio, ele sentiu que o içavam para cima de um dromedário, onde ficara como um fardo, estendido entre fardos. Houve brados. E a sineta recomeçou tilintando lentamente, em cadência – enquanto ele, embalado pelos passos do dromedário, que já por vezes chapinara água, recaíra naquele desmaio tão doce, em que todas as misérias da sua vida adormeciam, como dores que se calmam num banho.