Um dia uma filha do velho que o recolhera, não acordou – e ficou branca e imóvel no seu catre, como se a alma, durante o sono, a tivesse para sempre deixado. Diante dele, de joelhos, o velho suplicava e chorava:
– Tu podes tudo. Sabes as artes. És amado de Deus! Os outros monges curavam, dispunham da vida. Salva, salva a minha filha do meu coração!
E, cheio de lágrimas também, Onofre sentiu a certeza de que se tocasse com as mãos na face da pobre rapariga, ela se ergueria curada, e sorrindo. E já estendia as mãos – quando, bruscamente, no seu espírito, passou, como o clarão do Inferno, o orgulho do seu poder.
Então recuou, aterrado, a tremer.
O velho, de rojos, beijava os pés de Onofre.
–Sê bom! sê bom!
Mas Onofre via o Inferno – e fugiu, fugiu, soluçando, arrepelando as barbas, num desespero infinito... Fugiu do casebre, fugiu da aldeia. Duas vezes caiu, tão trôpego e débil. E ia atirando sempre os passos trémulos para longe dos homens e do seu perigo, para a solidão inviolável, onde não estivessem os homens, e estivesse a Morte. Todo o dia assim se arrastou. E o Sol descia num céu de ouro, quando os seus olhos, cansados, e mal seguros através das lágrimas, avistaram arvoredos, e casais, outra aldeia, na orla dos areais. Onofre tinha fome e tinha sede: – e querendo só forças para continuar o sofrimento, arrastou os passos para uma cabana mais isolada, feita de adobe e canas, apoiada contra um longo muro, um antigo resto de muralha. Uma rapariga, que voltava da fonte, pousara à porta da cabana, sobre uma pedra, o seu cântaro de barro; e vendo aquele velho, de imensas barbas, em farrapos, que avançava tropegamente na poeira do caminho arrimado ao seu bordão, ficou como à espera dele, com uma piedade nos seus largos olhos negros. Onofre estendeu a mão para uma esmola. Ela entrou na cabana onde uma criança chorava lentamente, num choro cansado, doente.
Quando voltou com um pedaço de pão duro e velho, já Onofre se abatera, de fadiga, sobre o chão, com a cabeça encostada ao muro, os olhos tristemente perdidos no céu, naquele céu, para onde em vão a sua alma aspirava. Os íbis esvoaçavam, recolhendo aos ninhos. Longos raios de ouro pálido passavam através das palmeiras, e longe, do lado do rio, vinha o mugir lento dos búfalos. Onofre comeu o pão da esmola; – e a boa rapariga inclinou, para a sua pobre boca ressequida e poeirenta, a borda do cântaro, murmurando: «Que esta água alegre o teu coração!»
Ele bebeu, louvando o Senhor, que manda a água aos que têm sede: – depois apanhou o seu bordão, e, ajudado pela boa rapariga, de novo se ergueu, com um suspiro tão doloroso, que os dois belos olhos negros se humedeceram.
E seguia – quando à porta da cabana uma mulher, pálida e magra, apareceu, trazendo ao colo uma criancinha que um farrapo embrulhava. E Onofre parou, tomado de uma infinita piedade por aquele pobre pequenino, todo encolhido nos braços da mãe, com a facezinha caída contra o seu ombro, como uma flor tenra, quebrada pela haste, e já morta. Grossas crostas, de feridas arroxeadas, cobriam a sua miserável cabeça, onde todo o cabelo se despegava; a orelha era uma chaga; um trapo manchado de sangue seco cobria um dos seus olhos, recaía ainda sobre o outro, amortecido, toldado de lágrimas; uma pele lívida e mole recobria os seus ombros; e o seu gemer não cessava, lento e cansado.
Com tanta dor e ternura o considerava Onofre, que a pobre mãe contou como aquele mal lhe viera, quando ele chegara aos dois anos, e ela ficara viúva, e a miséria se abatera sobre o seu casebre. Com o filho nos braços, mendigando o seu pão, ela percorrera os templos, onde os males se curam, escutara os conselhos dos que vêm de longe e conhecem as ervas salutares. Mas o mal de seu filho, nem homens nem deuses lho tinham curado. Tão pobre era que nem um pouco de leite alcançava para o consolar: – e sempre com ele nos braços, adormentando o seu sofrer, e sobre ele chorando, como podia trabalhar? A caridade dos vizinhos, pobres também, já se cansava. E em ninguém tinha esperança. Em ninguém tinha esperança!
Onofre murmurou:
– Jesus foi pequenino, e sofreu!
E então uma Voz, lenta e triste, mas em que havia a certeza e o orgulho de uma Força, murmurou dentro dele: «Ah! se tu quisesses, Onofre!...»
Todo ele tremeu. Se quisesse! Era outra vez o Inimigo incansável que lhe soprava na alma o calor do Pecado. Sim! se ele quisesse – aquelas feridas secariam, e aquele gemer findaria, e o pobre corpinho, como um galho seco, reverdeceria, cheio de seiva nova. E logo nele, para sua perdição, se desencadearia o orgulho do seu Poder! Não, não! Ele bem sentia o Inimigo, tentando penetrar nele pela porta da sua piedade entreaberta. E sempre a sua perdição estava onde estivesse a humanidade! Só no ermo havia segurança. Murmurou uma bênção à mãe desgraçada, e ia partir, desesperado. Mas a criancinha gemeu – ele parou ainda com um longo suspiro. Oh doce inocentinho, que toda a longa noite ia assim gemer tão dolorido, talvez com fome!... E ninguém o curava. E não tinha ninguém! Os lábios de Onofre tremiam.
– Oh meu pobre menino, meu pobre menino! – exclamou.
Então a criancinha ergueu a cabeça devagar, e com um gemido maior, um ai tão triste, levou a tremer a mãozinha magra ao seu pobre olho coberto de trapos.
Uma violenta, desesperada piedade invadiu o coração de Onofre. Arrojou o cajado, gritou:
– Pois bem, que importa! Que a minha alma se abisme no orgulho e no mal!
E com a face que flamejava, os cabelos eriçados de terror divino, arrebatou a criança, levantou-a toda para o Céu. E diante da mãe espavorida, Onofre bradava:
– Meu Deus, dá-me o meu salário. Setenta anos te servi. Por ti sofri todos os tormentos do Deserto! E, sem descanso, sem um queixume, sem um pedido, trabalhei na tua obra. Dá-me o salário que me deves! Que esta criancinha me sare aqui entre as mãos – e estou pago. Depois, se quiseres, abandona a minha alma!
Os seus braços trémulos, sem força, deixaram cair a criança – que a mãe agarrou, apertou sofregamente. Mas, oh prodígio! estava sã! Secas todas as feridas da face! Redivivos e límpidos os olhos, que num momento se alargavam e sorriam! Fresca, e cheia, e rosada por um sangue novo, a criancinha, que o mal chupara, colhida agora nos braços da mãe, já adormecera num longo, doce, infinito e profundo repouso.
Com ele assim no colo tão quieto, tão são, ela, na grande alegria do prodígio, nem se movia, sufocada: – e dos seus lábios trémulos, só fugira por fim um grito abafado de inquietação:
– E para sempre? E para sempre?!
Mas Onofre já desaparecera.
Deslumbrado, espavorido, corria tropeçando, ao longo da velha muralha, com os cabelos ao vento, as mãos ao céu.
Furiosamente, na sua alma, se erguera logo a certeza da sua santidade. E debalde ele queria recalcar, sufocar aquela afirmação do orgulho, que nele se desenroscava como uma serpente acordada e faminta. «Não! Não era tanto. Fora Deus, só Deus que fizera o prodígio. Só ele devia ser louvado, na sua Misericórdia sublime!
Mas vozes confusas, violentas, silvavam, cantavam nas profundidades do seu ser: «Foste tu! Deus só escuta aqueles que ama. Tu és o amado de Deus. A manifestação do seu amor é a concessão da Bem-aventurança. O Céu é teu. Em ti reside a virtude celeste! Toca com as tuas mãos um galho seco e ele reverdecerá!» Estava, pois, plenamente invadido pelo irremediável Orgulho. Só aniquilando o seu espírito, ele poderia destruir o Mal que nele habitava. Toda a mortificação da carne era inútil – porque sempre aquela luz de Inteligência, que dentro dele tremia, seria feita de fogo do Inferno. Estava perdido! Estava perdido!
Caiu com a face no chão, junto às muralhas que o Sol poente cobria de cor-de-rosa, e ali ficou, para sempre, e para morrer. Aquela alma perversa, que ele trazia em si como uma fera indomável, estava destinada aos tormentos sempiternos. Pois bem! que neles se afundasse depressa – porque, quanto mais errasse sobre a Terra, mais afrontaria o Senhor. Adeus, pois, oh Vida! Quão estéril, e inútil lhe fora, pois que lhe não servira para vencer a Morte!
E com a face no pó, os braços estendidos no pó, colando-se a todo aquele pó, em que queria abismar o seu ser, soluçava:
– Vida inútil, vida estéril!...
Mas, então, pensou naquela criancinha que, agora, dormia, sã, livre de toda a dor, e tão docemente nos braços de sua mãe. Inútil a sua vida? Não. Ele descia aos abismos arrastado pelo orgulho – mas, ao menos, no mundo ficava, por obra dele, esse pobre pequenino, que já não sofria, nem levava, gemendo, a mãozinha à sua pobre face cheia de chagas!
Então, uma Voz muito doce, murmurou sobre ele:
– Onofre!
O velho ergueu a face lentamente, depois o corpo trémulo, e começou a caminhar. Mas os seus passos tremiam tanto, que se encostou ao velho muro que ele mal via já, sob a névoa de lágrimas, e no desmaio, que lho velava.
Assim se arrastou um momento, tremendo, gemendo.
Mas, doce e cheia de carinho, a Voz ao seu lado murmurou:
– Onofre!
Então Onofre voltou a face – e avistou uma forma que resplandecia toda, de brancura, na solidão do crepúsculo. Mudo, já todo frio, deu para ela um lento passo – e desfaleceu, caiu sobre o seio de Jesus Cristo, Nosso Senhor, que o apertou docemente nos braços, e o levou consigo para o Céu, no esplendor de ouro da tarde.