Últimas Páginas (1912)/Ultima carta de Fradique Mendes
(INÉDITO DA «CORRESPONDÊNCIA DE FRADIQUE MENDES»)
A EDUARDO PRADO
Meu caro Prado:
A sua tão excelente carta foi recebida no devoto dia de S. João, neste fresco refúgio de arvoredos e fontes onde estou repousando dos sombrios esplendores da Amazónia, e da fadiga das águas Atlânticas.
Não esquecerei as queijadas da Sapa; Ficalho, que aqui jantou e filosofou ontem sub tegmine fagi, recebeu das minhas mãos o exacto estudo e as estampas do seu compatriota sobre a Mucuna Glabra; os dois vasos do Rato, com a cruz de Avis, partem domingo, e Deus lhe faça abundar dentro deles, sempre renovadas e frescas, essas rosas da vida que Anacreonte promete aos justos. Tudo isto foi fácil e de amável trabalho. Mais duro e complicado é que eu lhe dê (como V. reclama tão azafamadamente) a minha opinião sobre o seu Brasil... E V., menos céptico que Pilatos, exige a Verdade, a nua Verdade, sem chauvinismos e sem enfeites... Onde a tenho eu, a Verdade? Não é, infelizmente, na quinta da Saragoça que se esconde, sob o cipreste e o louro, o poço divino onde ela habita. Só lhe posso comunicar uma impressão de homem, que passou e olhou. E a minha impressão é que os Brasileiros, desde o Imperador ao trabalhador, andam a desfazer e, portanto, a estragar o Brasil.
Nos começos do século, há uns 55 ou 60 anos, os Brasileiros, livres dos seus dois males de mocidade, o ouro e o regime colonial, tiveram um momento único, e de maravilhosa promessa. Povo curado, livre, forte, de novo em pleno viço, com tudo por criar no seu solo esplêndido, os Brasileiros podiam, nesse dia radiante, fundar a civi-lização especial que lhes apetecesse, com o pleno desafogo com que um artista pode moldar o barro inerte que tem sobre a tripeça de trabalho, e fazer dele, à vontade, uma vasilha ou um Deus. Não desejo ser irrespeitoso, caro Prado; mas tenho a impressão que o Brasil se decidiu pela vasilha.
Tudo em redor dele, desde o céu que o cobre à índole que o governava, tudo patentemente indicava ao Brasileiro que ele devia ser um povo rural. Não se assuste, meu civilizadíssimo amigo. Eu não quero significar que o Brasil devesse continuar o patriarcalismo de Abraão e do livro do Génesis, reproduzir Canaã em Minas Gerais, e pastorear o gado em torno das tendas, vestido de peles, em controvérsia constante com
Jeová. Menos ainda que se adoptasse o modelo arcádico, e que todos os cidadãos fossem Títiros e Marílias, recostados sob a copa da faia, tangendo a frauta das Éclogas...
Não; o que eu quereria é que o Brasil, desembaraçado do ouro imoral, e do seu D. João
VI, se instalasse nos seus vastos campos, e aí quietamente deixasse que, dentro da sua larga vida rural e sob a inspiração dela, lhe fossem nascendo, com viçosa e pura originalidade, ideias, sentimentos, costumes, uma literatura, uma arte, uma ética, uma filosofia, toda uma civilização harmónica e própria, só brasileira, só do Brasil, sem nada dever aos livros, às modas, aos hábitos importados da Europa. O que eu quereria, (e o que constituiria uma força útil no Universo) era um Brasil natural, espontâneo, genuíno, um Brasil nacional, brasileiro, e não esse Brasil, que eu vi, feito com velhos pedaços da Europa, levados pelo paquete, e arrumados à pressa, como panos de feira, entre uma natureza incongénere, que lhes faz ressaltar mais o bolor e as nódoas.
Eis o que eu queria, dilecto amigo! E considere agora como seria deliciosamente habitável um Brasil brasileiro! Por toda a parte, ricas e vastas fazendas. Casas simples, caiadas de branco, belas só pelo luxo do espaço, do ar, das águas, das sombras. Largas famílias, onde a prática das lavouras, da caça, dos fortes exercícios, desenvolvendo a robustez, aperfeiçoaria a beleza. Um viver frugal e são; ideias claras e simples; uma grande quietação de alma; desconhecimento das falsas vaidades; afeições sérias e perduráveis...
Mas, justos Céus! estou refazendo o Livro II das Geórgicas! Hanc olim veteres vitam coluere Sabini... Assim viveram os velhos Sabinos; assim Rómulo e Remo; assim cresceu a valente Etrúria; assim Roma pulquérrima, abrangendo sete montes, se tornou a maravilha do mundo! Não exijo para o Brasil as virtudes áureas e clássicas da Idade de Saturno. Só quereria que ele vivesse de uma vida simples, forte, original, como viveu a outra metade da América, a América do Norte, antes do Industrialismo, do Mercanti-lismo, do Capitalismo, do Dolarismo, e todos esses ismos sociais que hoje a minam, a tornam tão tumultuosa e rude – quando os colonos eram puritanos e graves; quando a charrua enobrecia; quando a instrução e a educação residiam entre os homens da lavoura; quando poetas e moralistas habitavam casas de madeira que as suas mãos construíam; quando grandes médicos percorriam a cavalo as terras, levando familiar-mente a farmácia nas bolsas largas da sela: quando Governadores e Presidentes da República saíam de humildes granjas; quando as mulheres teciam os linhos de seus bragais e os tapetes das suas vivendas; quando a singeleza das maneiras vinha da candidez dos corações; quando os lavradores formavam uma classe que, pela virtude, pelo saber, pela inteligência, podia ocupar nobremente todos os cargos do Estado; e quando a nova América espantava o mundo pela sua originalidade, forte e fecunda.
Pois bem, caro amigo! em vez de terem escolhido esta existência que daria ao Brasil uma civilização sua, própria, genuína, de admirável solidez e beleza – que fizeram os Brasileiros? Apenas as naus do Senhor D. João VI se tinham sumido nas névoas atlânticas, os Brasileiros, senhores do Brasil, abandonaram os campos, correram a apinhar-se nas cidades e romperam a copiar tumultuariamente a nossa civilização europeia no que ela tinha de mais vistoso e copiável. Em breve o Brasil ficou coberto de instituições alheias, quase contrárias à sua índole e ao seu destino, traduzidas à pressa de velhos compêndios franceses. O Jornal, o Artigo de Fundo, a balofa Retórica Constitucional, a tirania da Opinião Pública, os descaros da Polémica, todas as intrigas da politiquice, se tornaram logo males correntes.
Os velhos e simples costumes foram abandonados com desdém: cada homem procurou para a sua cabeça uma coroa de barão, e, com 47 graus de calor à sombra, as senhoras começaram a derreter dentro dos gorgorões e dos veludos ricos. Já nas casas não havia uma honesta cadeira de palhinha, onde, ao fim do dia, o corpo encontrasse repouso e frescura: e começavam os damascos de cores fortes, os móveis de pés dou-rados, os reposteiros de grossas borlas, todo o pesadume de decoração estofada com que Paris e Londres se defendem da neve, e onde triunfa o micróbio. Imediatamente alastraram as doenças das velhas civilizações, as tuberculoses, as infecções, as dispepsias, as nevroses, toda uma surda deterioração da raça. E o Brasil radiante – por-que se ia tornando tão enfezado como a Europa, que tem três mil anos de excessos, três mil anos de ceias e de revoluções!
No entanto já possuía a Democracia, o Industrialismo, a Sociedade por acções em todo o delírio das suas formas infinitas, a luz eléctrica, o «veneno francês» sob as marcas principais do Champanhe e do Romance. Estava maduro para os maiores requintes, e mandou então vir pelo paquete o Positivismo e a Ópera bufa. Foi uma tremenda orgia: ensinou-se aos sabiás a gorjear Madame Angot, e vendedores de retalho citavam Augusto Comte... Para que prolongar o inventário doloroso? Bem cedo, do Brasil, do generoso e velho Brasil, nada restou: nem sequer brasileiros, porque só havia doutores – o que são entidades diferentes. A Nação inteira se doutorou. Do Norte ao Sul, no Brasil, não há, não encontrei senão doutores! Doutores, com toda a sorte de insígnias, em toda a sorte de funções! Doutores, com uma espada, comandando soldados; doutores, com uma carteira, fundando bancos; doutores, com uma sonda, capitaneando navios ; doutores, com um apito, dirigindo a polícia; doutores, com uma lira, soltando carmes; doutores, com um prumo, construindo edifícios; doutores, com balanças, misturando drogas; doutores, sem coisa alguma, governando o Estado! Todos doutores. O Dr. Tenente-Coronel... O Dr. Vice-almirante... O Dr. Chefe de Polícia... O Dr. Arquitecto... Homens inteligentes, instruídos, polidos, afáveis – mas todos doutores! E este título não é inofensivo: imprime carácter. Uma tão desproporcionada legião de doutores envolve todo o Brasil numa atmosfera de doutorice.
Ora o feitio especial da doutorice é desatender as realidades, tudo conceber a priori, e querer organizar e reger o mundo pelas regras dos compêndios. A sua expressão mais completa está nesse doutor, Ministro do Império, que em todas as questões públicas nunca consultava as necessidades da Nação, mas folheava com ansiedade os livros, a procurar o que, em casos vagamente parecidos, Guizot fizera em França, Pitt em Inglaterra. São estes doutores, brasileiros de nacionalidade, mas não de nacionalismo, que cada dia mais desnacionalizam o Brasil, lhe matam a originalidade nativa, com a teima doutoral de moralmente e materialmente o enfardelarem numa fatiota europeia feita de francesismo, com remendos de vago inglesismo e de vago germanismo.
Assim, o livre génio da Nação é constantemente falseado, torcido, contrariado na sua manifestação original – em tudo; em Política, pelas doutrinas da Europa; em Literatura, pelas escolas da Europa; na Sociedade, pelas modas da Europa.
A famosa carta de alforria de 29 de Agosto de 1825 não serviu para as inteligências. Intelectualmente o Brasil é ainda uma colónia – uma colónia do Boulevard. Letras, ciências, costumes, instituições, nada disso é nacional; – tudo vem de fora, em caixotes, pelo paquete de Bordéus, de sorte que esse mundo, que orgulhosamente se chama novo, o Novo Mundo, é na realidade um mundo velhíssimo, e vincado de rugas, dessas rugas doentias, que nos deram, a nós, vinte séculos de Literatura.
Percorri todo o Brasil à procura do novo e só encontrei o velho, o que já é velho há cem anos na nossa Europa–as nossas velhas ideias, os nossos velhos hábitos, as nossas velhas fórmulas, e tudo mais velho, gasto até ao fio, como inteiramente acabado pela viagem e pelo sol. Sabe o que me parecia (para resumir a minha impressão numa imagem material, como recomenda Buffon)? Que por todo o Brasil se estendera um antigo e coçado tapete, feito com os remendos da civilização europeia, e recobrindo o tapete natural e fresco das relvas e das flores do solo... Concebe V. maior horror? Sobre um jardim perfumado, em pleno viço, tudo tapar, tudo esmagar, rosas abertas e botões que vão abrir, com um tapete de lã, esburacado, poeirento, cheirando a bafio!
E haverá remédio para tão duro mal? Decerto! Arrancar o tapete sufocante. Mas que Hércules genial empreenderá esse trabalho santo? Não sei.
Em todo o caso, creio que o Brasil tem ainda uma chance de reentrar numa vida nacional e só brasileira. Quando o império tiver desaparecido, perante a revolução jacobino-positivista que já lateja nas escolas, e que os doutores de pena hão-de necessariamente fazer de parceria com os doutores de espada; quando, por seu turno, essa República jacobino-positivista murchar como planta colocada artificialmente sobre o solo e sem raízes nele, e desaparecer de todo, uma manhã, levada pelo vento europeu e doutoral que a trouxe; e quando de novo, sem luta, e por uma mera conclusão lógica, surgir no Paço de S. Cristóvão um novo imperador ou rei – o Brasil, repito, nesse momento tem uma chance de se desembaraçar do «tapete europeu» que o recobre, o desfeia, o sufoca. A chance está em que o novo imperador ou rei seja um moço forte, são, de bom parecer, bem brasileiro, que ame a natureza e deteste o livro.
Não vejo outra salvação. Mas no dia ditoso em que o Brasil, por um esforço heróico, se decidir a ser brasileiro, a ser do novo mundo – haverá no mundo uma grande nação. Os homens têm inteligência; as mulheres têm beleza – e ambos a mais bela, a melhor das qualidades: a bondade. Ora uma nação que tem a bondade, a inteligência, a beleza (e café, nessas proporções sublimes) – pode contar com um soberbo futuro histórico, desde que se convença que mais vale ser um lavrador original do que um doutor mal traduzido do francês.
Não me queira mal por toda esta desordenada franqueza, e creia-me tão amigo do Brasil como seu.
Paris, 1888.
FRADIQUE MENDES.