Dois anos eram já passados sobre os tristes acontecimentos que narramos, e ninguém mais na província se lembrava dos execrandos fatos do convento de *** e da horrenda morte de Tancredo. A justiça, se a pintam vendada, completamente cega ficou, e os assassinatos do apaixonado mancebo e do seu fiel Túlio impunes.

E o sudário do esquecimento caíra sobre eles; porque a lousa do sepulcro os tinha encerrado para sempre!

E as pesquisas da justiça cansaram de mistérios e tergiversações e também foram abandonadas.

Só um homem conhecia o assassino; mas esse homem era incapaz de uma denúncia – esse homem só curava da alma, e a sua missão era toda de paz. A Deus, pois, pertencia o castigo do culpado.

No convento dos carmelitas, havia dois anos, entrara um homem que pedira o hábito, e logo depois começara o seu noviciado.

Esse homem era um velho, com a fronte e o rosto sulcados de rugas, a pele macilenta, e o corpo vergado e encarquilhado como do convalescente de moléstia atroz, debilitante e prolongada.

Quem era ele ninguém o sabia no convento. Chamava-se frei Luís de Santa Úrsula.

Afirmavam alguns leigos que esse velho era um louco; porque às vezes, rompendo fervorosa oração, possuía-se de frenesi, os olhos chamejavam-lhe, rangia os dentes, e caía por terra em delíquio.

Trazia cilícios, jejuava rigorosamente, e as noites velava-as inteiras.

E se lhe pudessem ver o coração aí encontrariam escrito com caracteres de fogo:

– Úrsula!

A noite ia já alta. Era uma destas noites invernosas, em que o céu se tolda de nimbos espessos e negros. Nem uma estrela se pintava no céu, nem a via láctea esclarecia um ponto sequer do firmamento. Era tudo trevas. O vento zunia com estampido e a chuva caía em torrentes com fragor imensos, como sói acontecer nas regiões equatoriais.

Então o sino, lugubremente tangido, anunciou aos irmãos carmelitas que um dos seus tocava as portas da eternidade. E logo no convento agitou-se um longo e lúgubre murmúrio.

Era o salmo que recorda ao pecador que é pó, e encaminha-o no transe derradeiro.

E o cântico misterioso e solene ecoou nas abóbadas do santuário.

O irmão, que gemia a derradeira dor, era o noviço frei Luís de Santa Úrsula, a quem chamavam – o louco.

— Meu filho! – murmurou-lhe um piedoso monge – não nos faltam consolações no seio da igreja. Aquele que confia no Senhor parte em sua santa paz.

Depositai no meu coração o segredo de vossas culpas: a penitência é um sacramento, que nos aplaina o caminho do céu.

— Confessar-me, irmão? E para quê?

— Para que as vossas culpas vos sejam perdoadas.

— Não – tornou o moribundo. — Sabeis vós o que vai por esta alma de torturas e ódio? Sabeis? Oh! Tenho o inferno no coração!

— Jesus! Meu Deus! – exclamou o religioso fazendo o sinal da cruz sobre o moribundo. — Irmão, em nome de Deus arredai do mundo o pensamento.

O inferno no coração! Que estais aí a dizer?! O Senhor esclareça as trevas da vossa alma para que possa ela purificar-se. O arrependimento sincero, meu irmão, cura as mais profundas chagas do coração e apaga os mais atrozes crimes.

Entretanto o moribundo não parecia comover-se. Então o frade saiu, e voltando apresentou-lhe um Crucifixo.

— Irmão! – exclamou-lhe. — Eis o Filho de Deus, aquele cujo sacrifício sublime remiu o homem da cadeia da culpa. Encarai-o. É Deus, que vos vem pedir por preço do seu sangue a contrição da vossa alma. Negar-lha-eis?

Frei Luís de Santa Úrsula, ou antes o comendador Fernando P., volveu os olhos já baços pela morte, olhando para o Crucificado e depois para o padre, e disse:

— Amei-a, padre; amei-a mais que ao Filho de Deus, mais do que a salvação da alma, e por amor dela despenheime no inferno!... – e as lágrimas começaram a cair-lhe pelas áridas faces.

— Não, meu filho! – objetou-lhe o religioso – Deus perdoa ao arrependido. Lembrai-vos de Madalena.

— Arrependido! – exclamou o moribundo – Arrependido, eu? Oh! Não, meu padre. Compadeceu-se Deus do meu martírio? Nunca. Matou-me a esperança no coração. Deixou lavrar o amor frenético no peito, que o rasgou, que deu-lhe a coragem do crime, sem dar-lhe a saciedade da vingança. Cometi muitos crimes, e ainda até hoje não serenou-se-me o coração sedento de ódio e de vingança.

Feri o homem a quem ela adorava, vi correr-lhe o sangue que derramei, vi-o expirar a meus pés, sorri-me de prazer, e oh! Maldição! Não fiquei vingado!

— Oh! – exclamou o monge transido de pavor – Que horror!

— Esse homem fora preferido, fora o eleito do seu coração. Ela, ainda após a morte dele, dedicou-lhe o mesmo amor.

— Em nome do Senhor, arrependei-vos!

— Tancredo! – continuou com ódio – Tancredo, roubaste-ma! Cedo tornar-nos-emos a encontrar no outro mundo e lá ainda te pedirei contas como neste!

— Tancredo?! – interrompeu o frade com admiração. – Tancredo! Filho, quantos crimes pesam sobre vós! Ao pé do cadáver de Tancredo estava um outro cadáver, e ambos pareciam feridos da mesma mão. Fostes também vós que o assassinastes?

— Sim. – disse. – Assassinou-o a minha vingança. Susana, Túlio, Tancredo e Úrsula, meu padre, todos fizeram de mim um objeto de zombaria.

— E ela? – perguntou o confessor.

— Ela?!... Ela morreu amaldiçoando-me!!... A infeliz enlouqueceu de dor, e eu não a pude salvar!

Meu padre, – continuou – eu a vi no sepulcro, e não sei como não morri então!

— Não podeis por ventura suportar a vida sem ela?

— Oh! Não!... Não, meu padre!

— E não sabeis então que estais separado dela para sempre?

— Para sempre?! – indagou ele com aflição veemente, e um profundo suspiro agitou seu peito.

— Para sempre! – tornou-lhe o monge.

— E por quê? – murmurou ele com humildade.

— Porque, meu filho, ela está no céu, e vós, homem criminoso e impenitente, vos despenhais no inferno.

Houve então uma longa pausa. Faltavam as forças ao moribundo, cujo peito ansiava como combatido por uma luta terrível e renhida.

Fez um último esforço, porque sentia as prisões da vida despedaçarem-se, e estendendo os braços, tomou o Crucificado, levou-o aos lábios, e pondo-o sobre o coração, exclamou demonstrando o mais profundo arrependimento:

— Perdoai-me, Senhor! Porque na hora derradeira sufoca-me a enormidade das minhas culpas.

Lágrimas de sincera dor verteram seus olhos, que para sempre se cerraram; e a morte imprimiu-lhe no rosto a tranquilidade da contrição.

Nesse dia chorava Adelaide suas primeiras lágrimas de dor, porque a opulência, e o fausto não bastavam para lhas estancar.

Seu primeiro esposo era já morto, envenenado por acerbos desgostos. Ela ludibriara o decrépito velho, que a roubara ao filho; e ele, em seus momentos de ciume, impotente, amaldiçoava a hora em que a amara.

Ela depois também chorou, e chorou muito; porque as dores que o céu lhe enviou foram bem graves. Casou segunda vez, e o novo esposo, que não amava a sua deslumbrante beleza, a arrastou de aflição até o desespero.

E o remorso, que lhe pungia na alma, aumentava a grandeza das suas mágoas, porque a imagem daquela mulher, que tanto a amara, e cujos dias ela torturou sem piedade até despenhá-la no sepulcro, se lhe erguia melancólica na hora do repouso, e a amaldiçoava.

E depois eram já tão amargos os seus dias, que buscou afanosa a morada do descanso e da tranquilidade.

De todas essas vítimas do amor, apenas restam vestígios sobre a terra da desditosa Úrsula.

No convento de ***, junto ao altar da Senhora das Dores encontra-se uma lápide rasa e singela com estas palavras – ORAI PELA INFELIZ ÚRSULA!

FIM