Muitos dias se passaram já, e Túlio, menos preocupado, mostrava-se feliz e comunicativo. Luísa B. o tinha incumbido do serviço exclusivo do seu hóspede, que começava a recobrar as forças, o que ele atribuía aos cuidados do jovem negro e da formosa donzela, e ao ar puro que ali respirava. Com efeito ele ia a melhor, e cada dia dava esperanças de próxima convalescença. Aprazia-se com essa notícia a boa senhora Luísa B.; mas a encantadora Úrsula, melancólica, e mais bela que nunca, sentia um indefinível pesar ao lembrar-se que em breve volveria para o seu antigo exulamento, e ainda maior que dantes: o cavaleiro falava de sua próxima partida.
Túlio acompanhava-o.
Tinha-se alforriado. O generoso mancebo, assim que entrou em convalescença, dera-lhe dinheiro correspondente ao seu valor como gênero, dizendo-lhe:
— Recebe, meu amigo, este pequeno presente que te faço, e compra com ele a tua liberdade.
Túlio obteve pois por dinheiro aquilo que Deus lhe dera, como a todos os viventes. Era livre como o ar, como o haviam sido seus pais, lá nesses adustos sertões da África; e, como se fora a sombra do seu jovem protetor, estava disposto a segui-lo por toda a parte. Agora Túlio daria todo o seu sangue para poupar ao mancebo uma dor sequer, o mais leve pesar; a sua gratidão não conhecia limites. A liberdade era tudo quanto Túlio aspirava; tinha-a – era feliz!
E Úrsula invejava vagamente a sorte de Túlio e achava maior ventura do que a liberdade poder ele acompanhar o cavaleiro.
Pobre menina! Toda entregue a uma preocupação, cuja causa não podia conhecer ainda, engolfava-se de dia para dia em mais profunda tristeza, que lhe tingia de sedutora palidez as frescas rosas de suas faces aveludadas. Pouco e pouco desbotava-se-lhe o carmim dos lábios, e os olhos perdiam seus vívidos reflexos, sem que nem ela própria desse fé dessa transformação!
Alguém havia, porém, que reparava nessa mudança, que o coração já lho havia denunciado, fazendo-lhe vibrar nas suas cordas todos os simpáticos eflúvios que emanavam do peito cândido e descuidoso da virgem. Esse alguém amava a palidez de Úrsula, esse alguém adorava-lhe a suave melancolia, e o doce langor de seus negros olhos. Mas ela nem sequer descobrira tal, não sabendo explicar na sua inocência o que sentia.
À proporção que se adiantavam as melhoras do seu hóspede, Úrsula com precaução ocultava-se às suas vistas, limitando-se unicamente a informar-se com Túlio da sua saúde, e empregando as horas de seu mortal enfado no generoso desempenho de sua filial solicitude.
Dias inteiros estava à cabeceira do leito de sua mãe, procurando com ternura roubar à pobre senhora os momentos da angustiada aflição: mas tudo em vão porque seu mal progredia, e a morte se lhe aproximava a passo lento e impassível; porém firme e invariável.
À noite, após compridas horas de vigília ao pé desse leito materno, onde ela consumia seus primeiros anos de juventude, a donzela, recolhida em seu gabinete, meditava profundamente. Ela antes tão descuidosa, ela no arrebol da vida, no primeiro despontar da existência, tão bela, tão pura, tão ingênua e tão louçã; porque sentia esse desejo irresistível de engolfar-se em tristes pensamentos, que lhe davam a um tempo prazer e pena?! Onde a levava o ardor da mente? Úrsula, interrogada, mal o saberia dizer.
E as noites tornavam-se para ela longas e fatigantes; porque o sono não lhe abreviava as horas do cismar acerbo, nem lhe reparava as forças, e por isso a aparição da aurora era-lhe quase uma felicidade.
À hora em que os pássaros despertam alegres e amorosos, em que o vento mais queixoso cicia por entre as franças das árvores, em que a relva, orvalhada pela noite, ergue suas folhinhas mais verdes e mais belas, à essa hora mágica em que toda a criação louva ao Senhor, e que o coração sente que nasceu para amar, a donzela, procurando fugir a suas meditações, saía a respirar a pureza da aragem matutina.
Quantas vezes ela, sentada sobre a relva ou recostada a algum tronco colossal, que decepado e meio combusto brada contra a barbaria e rotina da nossa lavoura semisselvática, via despontar o sol por sob a orla azul dos horizontes, espalhando com seus raios de fogo a luz por toda a parte e destruindo como por encantamento a neblina, que qual denso véu encobria aos olhos madrugadores toda aquela paisagem!...
Aí de novo entregue a seus pensamentos, Úrsula perguntava a si própria a causa de seus sofrimentos, e às vezes chegava a persuadir-se que seu fim estava próximo, e sorria-se. Pobre menina!...
Quando o sol tingia de cor dourada os cocares das palmeiras, ela voltava ao lar materno para continuar a desempenhar a penosa tarefa de que se havia incumbido. E a pobre mãe exultava de vê-la tão meiga, tão generosa, e tão compassiva.
Ninguém em casa sabia dos seus passeios matinais, e ninguém os adivinhava, e por isso esperava com ânsia o romper do dia: e a hora em que a natureza desperta, só, e sem temor, tomava o caminho que bem lhe convinha e ia conversar com a solidão, essa conversa que só Deus compreende, e quando voltava achava-se mais aliviada.
Úrsula enganava-se – cada dia mais se agravavam seus males.
E o cavaleiro, quase que inteiramente restabelecido, apenas ressentindo-se algum tanto do pé, dispunha-se com efeito para a partida; e em seu coração havia bem profundas saudades; porque nessa habitação encontrara vida e acolhimento. Aí alguém lhe prendera o coração, e o mancebo, cheio de amor e de gratidão, sentia deslizarem-se-lhe os dias breves e risonhos. Entretanto a sua partida era infalível; mas ele não podia afastar-se daqueles lugares sem ter uma explicação. Era preciso ver Úrsula, e Úrsula fugia-lhe como a caça foge ao caçador. E o dia passava, e vinha a noite, e sucedia-se outro, e mais outro dia, e o moço dilatava a sua viagem.
Em uma madrugada, contudo, após uma noite de atribulada vigília, mais cedo ainda que de costume, a mimosa donzela entranhou-se por acaso no mais espesso da mata, onde não bulia a mais pequena folha, e onde apenas o reflexo do sol nascente penetrava a custo. Divagando por ela sem tino, vencida pelo cansaço sentou-se, ou deixou-se cair sobre as raízes de um jatobá, cuja altura chamaria a atenção de outra que não fora Úrsula, de outra que não sentira, como ela, o coração oprimido por mortal desassossego. Este jatobá, sobre cujas raízes Úrsula se deixara cair, parecia em anos rivalizar com a criação; sua copa altaneira, balançando-se no espaço, derramava grata sombra em larga distância. Aí em seu tronco, a natureza, melhor que um hábil artista, entalhara em derredor espaçosos degraus, como outros tantos assentos preparados para descanso dos que à sua sombra buscassem uma hora de repouso, ou de meditativo cismar.
Úrsula sentou-se sem o menor reparo num desses degraus, e continuou nos seus pensamentos loucos, ou talvez inocentes como a sua alma; mais profundos, penosos para ela, que pela vez primeira sentia a necessidade de uma alma que compreendesse a sua, de um pensamento que se harmonizasse como o seu.
Mas amava ela a alguém? Ao cavaleiro? Talvez! Úrsula sentia uma vaga necessidade de ser amada, de amar mesmo; mas em quem empregar esse amor, que devia ser puro como a luz do dia, ardente como o fogo de madeira resinosa?! Em quem? Não o sabia ainda.
Úrsula, malgrado seu, experimentava todo o fogo de um primeiro amor, bem o conhecia, e revoltava-se contra esse sentimento, que supunha não ser compartilhado, e atribuía-o a simples amizade. Embalde o coração lhe gritava, esclarecendo-a, ela julgava-se humilhada, reassumia toda a sua dignidade em face do cavaleiro, e só na solidão derramava o pranto de amargo e oculto padecer.
Entretanto, nessa madrugada em que Úrsula, ferida pela mais profunda angústia, sentara-se junto ao altivo jatobá que ficava a cavaleiro às demais árvores, pensava em que o mancebo ia nesse mesmo dia partir, e esse pensamento era-lhe como o leito de Procusto. O coração desfalecia-lhe de dor, a vida parecia-lhe agora inútil e fastidiosa. Sentiu leve arruído de folhas secas como que calcadas sob os pés que se moviam cautelosos, e despertou. E o arruído não cessou. Então a jovem donzela, meio assustada levantou os olhos, e perscrutou em derredor; mas nada viu. Seria talvez alguma fugaz cotia que atravessa o bosque correndo. Então Úrsula de novo voltou aos seus sonhos; mas um momento depois os passos eram já mais próximos, ela tornou o olhar, e mais amedrontada, quis erguer-se, quis sair correndo; porém uma força oculta, irresistível, a deteve, e os passos muito perto estavam dela. Úrsula, temerosa, e sem poder atinar com quem seria, estremeceu, mas não de verdadeiro medo, antes por um pressentimento incompreensível e que às vezes pressagia vagamente algum acontecimento futuro da nossa vida. Úrsula tudo ignorava; mas alguém com íntima satisfação descobriu seus passeios matinais, alguém, que sentia a necessidade de vê-la, de falar-lhe um momento, e que devassou-lhe o retiro e foi perturbá-la em sua meditação.
E de repente ela ouviu uma voz, que a essa hora do amanhecer, nesse lugar, onde se julgava só, a surpreendeu, assustou-a, e lhe arrancou um grito.
— Úrsula! – dizia-lhe a pessoa que estava ante seus olhos. – Úrsula, perdoar-me-eis?
— Oh! Pelo céu, Senhor! – exclamou a moça a tremer. – Que viestes aqui fazer?!
E levantou-se resolvida a deixá-lo, castigando assim tanta ousadia. O mancebo, antevendo a sua resolução, caiu-lhe aos pés e, suplicante, disse-lhe:
— Oh! Não, não, Úrsula, por amor de vossa mãe, não me deixeis sem ouvir-me.
E tanta singeleza havia nestas palavras, e tanta expressão nos olhos do mancebo, que a donzela estacou indecisa e confusa.
Era o cavaleiro convalescente o homem que assim falava, como o leitor perspicaz tê-lo-á já adivinhado.
Nesse momento tão solene para Úrsula, sentiu profundo arrependimento de seus passeios da alvorada, e rápido pela mente repassou todos os últimos atos de sua vida, sem atinar com o motivo que a levou tão longe de sua morada, e a um bosque que nunca vira, e porque fatalidade aquele homem a viera aí surpreender.
Úrsula, amando vê-lo, arrependia-se, e quase que maldizia o sentimento de seu coração, que a obrigara a ir tão longe, e a ter, a seu pesar, aquela entrevista que tanto começava a inquietá-la, e lembrando-se de sua mãe, que tudo ignorava, exprobava-se a si acremente de tão leve procedimento.
— Úrsula, – continuou o mancebo, reconhecendo sua perturbação – Úrsula, mimosa filha da floresta, flor educada da tranquilidade dos campos, porque tremeis de me ouvir a voz?! Julgais acaso que vos possam ofender as minhas palavras?! Sossegai, em nome do céu, Úrsula, sossegai!... Donzela! Eu vos juro que sou leal, e que o respeito que vos consagro, e de que sois digna, nem o silêncio deste bosque, nem a solidão do lugar o quebrará jamais.
— O que sinto por vós – continuou comovido – é veneração, e a mulher a que se venera rende-se um culto de respeitosa adoração, ama-se sem desejos, e nesse amor não entra a satisfação dos sentidos.
— Úrsula, – prosseguiu com voz que inspirava confiança – compreendo, e avalio a perturbação em que vos achais; porque é inocente e pura vossa alma; mas se me escutardes, se vos dignardes ouvir-me, conhecereis que também puras são as minhas intenções, e que o amor que inspirastes é cândido como a vossa alma.
Então Úrsula, erguendo as mãos com aflição, disse:
— Oh! Senhor, por quem sois, deixai-me voltar agora mesmo para ao pé de minha mãe! – e deu um passo; mas esse passo foi vagaroso e trêmulo, e o mancebo eletrizado, encantado por essa cândida timidez, que revelava a mais angelical pureza, correu para ela com indefinível transporte, misturado de amorosa veneração, e docemente obrigando-a a sentar-se, curvou-se-lhe aos pés, e mudo, e contemplativo, e enlevado no rubor que tingia as faces da donzela, guardou silêncio por alguns instantes, e depois rompendo-o, disse-lhe:
— Úrsula, casto é o meu amor, e se o não fora, por prêmio de tanto desvelo e generosidade, não vo-lo oferecera. No meu delírio, Úrsula, não credes vós quem me aparecia. Oh! Não. Uma outra mulher eu via! Era terrível essa visão infernal, e julguei morrer de desesperação; porque dia e noite ela, implacável, desdenhosa, e fria estava ante meus olhos!... Sim, julguei morrer; mas vós aparecestes junto ao meu leito, vi-vos, e as dores se amodorraram, e como se eu visse a Senhora dos Aflitos levando à minha cabeceira um dos anjos que a rodeiam, e que lançou bálsamo divinal em minhas feridas, que cicatrizaram e o coração serenou, a alma ficou livre. Então a imagem odiosa, que me perseguia, desapareceu para sempre. Úrsula, pude esquecê-la para sempre, sim! Esquecê-la! E esquecer com ela não o amor que sentia; porque essa há muito que me morreu no coração, mas o ódio, o ódio, que lhe votava.
A vossa bondade deu-me forças para esquecê-la, talvez mesmo para perdoá-la!...
— Eu tinha o coração dilacerado por cruentas dores, – prosseguiu o moço, com voz pausada, após um momento de silêncio – e esse estado de penosa angústia ocasionou a enfermidade que me deu a ventura de conhecer-vos, e se vos não houvesse visto, se prolongaria até o extremo da vida, que não poderia tardar. Vós, Úrsula, aparecestes, e espantastes as trevas de tão apurado sofrimento. Fostes o meu anjo salvador. Úrsula, eu vos amo! E se vossa alma simpatizar com a minha, meu coração vos tem escolhido para a companheira dos meus dias.
— Amais-me, Úrsula?!...
Um súbito rubor, melhor que a rosa, tingiu as faces da delicada virgem, e ela baixando os olhos, disse-lhe:
— Talvez!... – a voz era tão débil que semelhou o doce murmúrio de queixoso ribeiro.
Mas, enquanto os lábios diziam simplesmente talvez, o coração desfeito em transportes de inefáveis doçuras sonhava as venturas do paraíso. E sua inquietação, e suas noites de vigília, já não eram para ela um penoso mistério, ou uma forçada dissimulação. Úrsula confessou a si mesma, que aquilo que sentira, era verdadeiro e ardente amor.
E Adelaide – essa mulher, esse nome proferido em delírio, que lhe aparecia em seus sonhos como uma visão que incomodava, deixava de agora em diante de ocupar-lhe o pensamento; porque o mancebo havia dito: — Esqueci-a, perdoei-a por amor de vós. Mas, inda assim, quem seria ela que tanto amor lhe tinha merecido?
Que lhe importava? Era feliz; porque era amada, e sua vida inteira teria dado por esse momento de ventura.
Amor! Esse sentimento novo – ardente como o sol do seu país, arrebatador como as correntes, que se despenham no vale – foi a varinha mágica que lhe transformou a existência. Julgou tudo um sonho encantador, cujas doçuras começava apenas a apreciar.
Extasiada e louca de amor, a donzela embalde procurava reaver a razão; e mais embalde procurava interrogar-se a si mesma – quem seria aquele homem, que assim atraía o seu coração? Porque este só lhe dizia: – Amá-lo é viver, e a vida assim vivida é a eternidade no gozo.
— Úrsula, – disse o mancebo, comovido, após de um longo silêncio – devo-vos a fiel narração de minha vida. O homem que vos ama, que vos idolatra, o homem que vos escolhe para sua esposa, não vos deve ocultar a mínima particularidade da sua triste existência; e depois que me tiverdes ouvido, depois que souberdes quem é o cavaleiro que tendes ao vosso lado, dai-lhe o vosso coração, dizei-lhe que o amais, e ele será uma vez feliz, uma só na vida; mas esta felicidade deve ser tão grande, que o seu passado cairá para sempre em um abismo de profundo esquecimento. Porém, Úrsula, se me recusardes essa ventura, a única que almejo, a minha vida tornar-se-á um prolongado martírio, e quem sabe se a poderei suportar!?...
— Oh! – exclamou a donzela com interesse – pesa-vos acaso no coração tão pungente mágoa?!
— Sim – tornou ele comovido – sim, grande tem sido o meu sofrimento. Julguei, Úrsula, nunca mais amar, e morrer amaldiçoando meu primeiro amor; mas eu vo-lo disse já – vi-vos e meu coração cobrou nova vida, e novo amor curou-lhe as feridas, que o destruíam. Agora, decidireis da minha sorte: feliz, ou desgraçado, Úrsula, só vós sereis o meu amor.
Então os olhos da donzela desferiram brilhantes reflexos de amor, e cedendo a um transporte de indefinível entusiasmo, exclamou:
— Sejais vós, senhor, quem quer que fordes, quaisquer que sejam os precedentes da vossa vida, que generosamente prometeis confiar-me, aqui, na solidão silenciosa e grave desta mata, onde só Deus nos ouve, onde só a natureza nos contempla, juro-vos pela vida de minha mãe, que vos amarei agora e sempre, com toda a força de um amor puro e intenso, e que zombará de qualquer oposição donde quer que parta.
— Vós?! Repeti, repeti ainda uma vez essas inebriantes palavras que me transportam!
— Sim – tornou ela, cujos olhos cintilavam como dois astros luminosos e diziam mais que os lábios, e cujo coração arfava de amor e de felicidade – sim juro-vos pelo céu, que nos escuta, que hei de amar-vos sempre! Feliz, ou desgraçada, lembrai-vos que por amar-vos desprezarei a vida.
— Oh! – exclamou o jovem convalescente – Eu agradeço-vos, meu Deus, de todo o meu coração!... É verdade então que para mim ainda pode haver felicidade?! Meu Deus, Senhor meu Deus, como sois bom!... – e olhava a donzela com inexprimível transporte.
— Úrsula, – prosseguiu – vós me erguestes do abismo da desesperação em que uma outra mulher me havia despenhado, e apagais da minha alma a derradeira lembrança do seu funesto amor!
E eu amei-a, Úrsula, amei-a com todas as veras de um primeiro amor. Não vos pode ofender esta confissão; porque esse amor tão apaixonado varreu-se da minha alma como a nódoa pela límpida água da fonte cristalina.
Depois de tão longo e apurado sofrimento, depois de ter esgotado até as fezes o meu cálice de amargura, votei ódio àquela que fora tão cara.
Excessivo era o meu afeto; mas ela quebrou-o, deliu-o do meu coração, e hoje sinto por essa mulher fundo e inextinguível desprezo.
— Desprezo?! – continuou meditando sobre esta palavra – Sim, desprezo; mas o tempo e o meu coração, e todas as minhas faculdades revoltadas contra o mais hediondo proceder dessa criatura infame foram que o trouxeram, e agora votava-lhe ódio e maldição; mas tais sentimentos, tão pouco em harmonia com o meu ser, acabo de imolá-los ante os vossos pés, anjo bem-fadado!
— Cumpre que vos confesse como a amava... – aqui, recolheu-se a si, e fazendo um esforço sobre-humano, continuou – Oh! Amava-a como o cativo ama a liberdade, como o ébrio o vício que o mata; seguia-a como o colibri as flores, como a bússola o Norte, como o fiel lebréu a seu dono: era uma paixão que me prendia o coração e os sentidos, era um frenesi, um delírio próximo da loucura perene. Tudo ela destruiu em um momento, como a criança o brinco, cujo valor não sabe!... Via-a na escuridade da noite, no cair da tarde; via-a na erva do prado, no cálice de uma flor, no firmamento entre as estrelas mais brilhantes, no arrulho amoroso das aves, no canto sentido da sororina... Oh! Sempre ela, sempre ela, em todos os lugares, em todos os tempos, e sempre bela, sempre meiga e sedutora, sempre apaixonada!
E eu gemia de amor, e de saudades, e amaldiçoando a separação; porque esse afeto, que me escaldava e se apossara de todo o meu ser, julgava-o igual e tão intenso no seu peito. Engano, engano fatal!...
— Úrsula! Agora todo esse amor, ou inda amor mais sublime, mais digno de vós nutre o meu coração; agora poderei ter forças para contar-vos a história da minha vida.
E depois de breve pausa, prosseguiu, suspirando:
— Quisera que o meu passado fugisse como a sombra de uma ave inquieta, ou como a nuvem que o vendaval desfaz, para nunca mais invocá-lo; porque é triste e pungente, mas é preciso pedir-lhe recordações, que me rasgarão de novo feridas mal cicatrizadas, para patentear-vos todas as minhas longas e profundas dores.
Rogo-vos, pois, que não tomeis a minha narração, quando tenha de ser apaixonada, como desejo do passado e saudades dele. Podeis amar-me sem receio de que ele perturbe o nosso mútuo afeto. Ressentimento, ódio, maldição, tudo, tudo hei sacrificado ao vosso amor.
Oh! De novo jurai-me que sois minha, que o vosso amor é igual ao meu, doce e mimosa Úrsula, para que eu possa falar-vos daquela que foi casta e pura como vós, daquela que foi minha mãe.
E a voz tornou-se-lhe débil, e surda, e dolorosa, como um choro sentido, que fica no coração e não vem aos olhos.