Uma noite, seriam onze passadas, estava eu sentado no adro do convento. Fazia luar, porém o céu nublava-se; o ar era pesado, o mar sem ondulações arquejava como opresso; a chama fosforescente do relâmpago iluminava a fímbria das nuvens escuras. Uma grande tempestade estava iminente.

Enquanto a natureza preparava e dispunha a cena em que os elementos iam representar, estive embebido a contemplar os progressos da borrasca; mas quando a primeira gota, umedecendo as lajes, anunciou-me a chuva, imediatamente e como por encanto acalmou-se a sede ardente de poesia e mistério que me devorava.

Ergui-me, com ânimo de ganhar a casa sem demora.

Mas os joelhos dobraram-se, e um fio de gelo correu-me pelo corpo, arrufando a pele e erriçando-me os cabelos; foi-me preciso grande esforço para dominar-me, e vencer o susto pueril que me tomara de surpresa.

Tinha ouvido uma voz trêmula que rezava cantando à surdina uma ladainha de igreja; e pareceu-me que afinal chegara a ocasião de ver surgir diante de mim um desses fantasmas que nas minhas extravagantes elucubrações, eu tantas vezes evocara.

Revesti-me de coragem; voltei-me para o interior do convento, e adiantei-me alguns passos na direção da voz que murmurava sempre as suas rezas de cantochão.

De repente, numa paveia de luz que enfiava por larga brecha do teto prestes a desmoronar-se, destacou um vulto de alta estatura, envolto numa túnica preta e roçagante, sobre a qual a longa barba branca brilhava com os reflexos da lua. Avançava lentamente, apoiando-se sobre um báculo que trazia na mão esquerda.

Julguei... Nem sei o que julguei, de tantas e tão encontradas que foram as idéias que me assaltaram então. Entre outras pareceu-me ver o fantasma de um dos antigos priores do Carmo, acabando de oficiar em pontifical, e tornando à sua cela.

Recuei instintivamente; e com esse movimento projetando-me no claro de uma janela, fui percebido do vulto, que por sua vez também estacou, soltando uma exclamação de espanto ou de surpresa.

Decorreu um instante em que ambos, com os olhos fitos, nos examinamos reciprocamente; o que se passava no seu espírito não o podia adivinhar; o que se passou no meu, qualquer, ainda o mais destemido, pode bem supor. Afinal o vulto endireitou para mim, e veio aproximando-se; cosi-me com a parede, e esperei-o.

Quando ele chegou a dois passos, conheci o meu engano, e estive para soltar uma gargalhada, escarnecendo de mim mesmo. O meu fantasma era apenas um velho pescador; a túnica preta e roçagante uma rede de malhas; e o báculo de prior não passava de um remo de canoa.

— Bendito e louvado seja o Senhor! foi a saudação que me dirigiu.

— Deus lhe dê boa-noite, respondi eu já de ânimo sereno.

— Para o servir, e a vos'senhoria no que mandar deste seu servo.

— Obrigado, meu velho.

Essa cortesia antiga, inspirada na religião, e a voz grave e arrastada do velho, junto à expressão doce de seu rosto, me excitaram viva simpatia.

— Vai hoje muito tarde para a pesca? disse-lhe eu reatando o fio do diálogo.

— Quem sabe quando irei? A tempestade não tarda conosco. Cuidei que adiantava saindo mais cedo, e afinal de contas atrasei.

— Mora longe daqui?

— Lá embaixo! respondeu apontando para a praia que se prolonga ao norte.

Os relâmpagos fuzilavam amiúde; e a chuva começava a bater no telhado.

— Então tenha vos'senhoria boa-noite; vou ver se me arranjo para passar o aguaceiro, que promete durar.

— Ah! veio abrigar-se aqui? E não tem medo deste teto esburacado e destas paredes rachadas?

— Será o que Deus for servido. Não é a primeira vez que me tem sucedido ficar aqui boa parte da noite, e até hoje nenhum mal disto me veio.

— Ora, diga-me uma cousa?...

— O que é, meu senhor?

— Por que cantava baixinho uma... ladainha, se não me engano?

O velho sorriu com brandura.

— Era o terço. Minha mãe me recomendou que cantasse sempre que houvesse tempestade; e isto me ficou desde menino.

Estava tudo explicado. A minha visão fantástica tinha-se desvanecido, deixando a realidade do encontro simples e natural com um pescador que fora ao convento abrigar-se da chuva.

Pensei em recolher-me.

— Sabe por que lhe fiz esta pergunta?

— Vos'senhoria me dirá, respondeu o velho.

— Pois confesso-lhe que me causou um grande susto. Quando ouvi a sua cantiga, e o vi de longe no meio destas ruínas, tão fora de horas, cuidei que era... Acredite! Uma alma do outro mundo.

— Ainda sou deste, graças a Deus, disse o pescador sorrindo, bem que por pouco tempo.

— Há de sê-lo por muitos anos.

O velho abanou a cabeça.

— Os oitenta já lá vão. Mas deixe-me dizer-lhe... Também a mim, quando o enxerguei, no que a vista me ajuda, sucedeu-me quase a mesma cousa.

— Também causei-lhe susto?

— Susto, não; nesta idade a gente já não se teme, senão daquele que está no céu para nos julgar a todos; porém assim um espanto, como se visse uma pessoa que não se espera mais ver, aqui embaixo.

— Já falecida?

— Senhor, sim.

— Quem?

— Oh! o senhor ainda não era nascido, quando isto foi.

— Há muitos anos então?

— Se eu já lhes perdi a conta!

— Conte-me isso.

— São cousas velhas que já não lembram a ninguém. Levariam muito tempo

— Não faz mal.

— Melhor é que vos'senhoria se guarde da chuva que aí está de pancada; eu vou fazer outro tanto.

Se eu mesmo perdia uma história do século passado, uma anedota de cabelos brancos, uma antigualha qualquer, depois de tê-la procurado inutilmente durante mais de cinco meses!

— Por mim, não tenha cuidado, respondi: trate de acomodar-se, e se não tiver sono, conversaremos.

— Sono de velho é o descanso do corpo. Venha vos'senhoria já que assim o quer.

Chegamo-nos a um dos ângulos do velho convento, onde algumas paredes interiores formavam outrora uma sacristia: o pavimento do primeiro andar não tinha ainda desabado nesse lugar.

O velho enrolou a rede de que fez uma espécie de almofada; tirou fogo do fuzil e acendeu o cachimbo, enquanto eu, sentado sobre um troço de parede, e devorado pela curiosidade, preparava o meu cigarro.