O velho tinha acabado a sua história, que eu ouvira com uma atenção religiosa:
— Por isso é que tanto me alembrei dele!... Foi ali mesmo, assim todo vestido de preto, que me apareceu pela primeira vez.
Não escutava mais o pescador; estava cheio da idéia de possuir os manuscritos que me faziam palpitar, como se fossem um tesouro. E eram realmente um tesouro para mim.
— Diga-me!.. É capaz de acertar com o lugar em que enterrou a caixa?
— Com os olhos fechados!... Os anos que foram já apagaram muita cousa, mas aqueles tempos de menino, parece que estão voltando!
— Pois venha mostrar-me.
O velho ergueu-se. Saímos do convento e beiramos a parede que olha o mar. Depois de alguns passos, ele parou.
— Por que é que o senhor quer saber?
Hesitei; adivinhava o escrúpulo do velho.
— Por simples curiosidade.
— É aqui! disse ele abaixando a mão.
— Está certo?...
— Estou vendo!
E o pescador ajoelhou-se e fez uma oração. Compreendi que ele respeitava aquela cova como se fosse realmente uma sepultura.
Não perturbei o seu recolhimento, e esperei que terminasse.
— Empresta-me o seu remo?
— Para quê? perguntou-me estremecendo.
— Para desenterrar a caixa.
— Isso nunca!
— Por quê?... Pensa que esses livros são realmente a sua alma?
— Ele disse.
— Mas Deus não quer que a alma fique na terra como o corpo; ela deve voltar ao céu. É o que desejo fazer.
O velho abanou a cabeça.
— Ouça!... Se a alma desse moço está nos livros,. para que ela volte ao céu é preciso que entre em outras almas vivas. Aquilo que ele escreveu deve ser lido...
Foi-me preciso aceitar a crença do velho que era muito profunda, para ser abalada.
Procurei tirar dela argumentos que o convencessem de que não entrava nas minhas intenções cometer um sacrilégio.
O pescador refletiu.
— Mas se isso é verdade, por que razão ele me pediu que enterrasse a caixa?...
Tive uma inspiração.
— Quando ele morreu — respondi — ninguém se animaria a tocar no que lhe pertencia, com receio da moléstia. Os livros ficariam perdidos... Por isso pediu-lhe que os enterrasse. Mais tarde devia alguém achar...
— Há de ser isto!
Cavamos três palmos; creio que se abrisse o túmulo de um ente que me fosse caro, não sentiria as emoções por que passei naquele momento. O pescador, na ingenuidade de sua crença, tinha razão: era a alma de um homem, talvez de um poeta, que estava ali sepultada.
A chuva, que caíra a cântaros, amolecera o terreno, e facilitara o trabalho:. depois de um quarto de hora de escavação, o pescador tirou do chão uma caixa de folha, que teria dois palmos de comprimento sobre um e meio de largo, e já inteiramente oxidada.
Despedi-me. do velho, a quem fiz aceitar a muito custo a pequena espórtula que comportavam as magras economias do estudante, e carregado com o meu tesouro, recolhi-me.
Ao despedir-me, o meu companheiro pediu-me um favor.
— Quando o senhor abrir a caixa, se pudesse. ser...
— Fale! Não tenha receio.
— Eu queria saber o que ele escreveu... Talvez não entenda!
— Fique descansado.
Ensinei-lhe a minha casa, onde ele foi muitas vezes, e onde passou horas e horas, a escutar a leitura que eu lhe fazia de alguns trechos dos livros.
Chegando a casa, não dormi; eram quatro horas da madrugada, e não tinha sono. Abri, ou antes arrombei a caixa, e achei dentro três volumes in-fólio, cobertos de pergaminho, uma pequena mecha de cabelos grisalhos, uma flor seca que desfez-se em pó quando a toquei, e uma bolsa com algumas moedas de cobre.
Dos volumes in-fólio; dois escritos de princípio a fim com uma letra grossa e trêmula, continham alguns episódios da guerra holandesa, e da crônica dos tempos coloniais; o seu autor lhes dera o título singelo de — Histórias que me Contou Minha Mãe.
O terceiro volume era um diário, escrito com pequenas interrupções; não tinha titulo, nem fora concluído.
Estavam todos em tal estado que me foi preciso copiá-los á pressa; e assim mesmo em muitos lugares as letras com a umidade tinham-se apagado de modo que só pelo sentido pude adivinhar as palavras.
São estes livros que hoje começo a dar a estampa.
Talvez a alguém cause reparo porque vinte e tantos anos decorreram e só agora. me resolvi a publicá-los?
A razão é simples.
Quando pela primeira vez li o Diário do Lázaro, convenci-me que o estilo, embora simples e terso, carecia de ser retocado ao gosto da época; e dei-me a esse trabalho. Apenas vesti de novo a primeira parte, me arrependi;. quis-me parecer que era uma profanação tirar ao pensamento do escritor a sua frase rude às vezes, mas sempre expressiva: rasguei o que tinha escrito para escrever de novo.
Demais, achava a primeira parte do livro tão triste a cortar-me o coração, que receava publicá-la. Ao mesmo tempo que não me sofria a consciência deixar ignorada a memória do escritor, cujas obras queria dar à estampa: pois essa parte de que falo é o diário.
Foi então que a ambição me veio tomar no melhor dos sonhos da mocidade e conduziu-me ao través de uma vida sempre agitada à quadra dos desenganos, na qual me deixou isolado, mas tranqüilo.
Voltei então para os meus estudos literários, reli com imenso prazer os meus esboços de obras mal alinhavadas, os meus versos truncados, e revi a minha juventude naquelas relíquias das primeiras inspirações.
Entre esses papéis velhos deparei com a cópia ou versão do antigo manuscrito. Lembrei-me do que prometera ao velho, e senti como um remorso de haver por tanto tempo conservado no esquecimento a alma desse ignoto poeta do século passado.
Este livro é pois um voto.