O Cerveira Lobo saira, com o Zeferino, para Braga na sexta-feira de manhã. Estariam aqui até à madrugada de sábado, e partiriam então para a Póvoa de Lanhoso com os três contos de reis, repartidos em libras pelas algibeiras dos dois. Além de um criado de velha libré, avivada de azul, de botas de prateleira e chapéu de sola, levavam bacamartes nos arções dos selotes, todos três. Foram descansar e jantar à hospedaria dos Dois Amigos. O Cerveira vestia casaca no trinque muito lustrosa, e gravata de cambraia com laço; o peitilho postiço atado ao pescoço saía muito rijo de goma reles de entre as lapelas derrubadas do colete de veludo preto. A calça de pregas, ampla, à cavalaria, afunilava-se no artelho, quebrando no peito do pé. As botas de polimento novas rangiam e as esporas amarelas no tacão, com grandes rosetas, tilintavam num estardalhaço de caserna. Comprara chapéu de pasta com molas que faziam saltar a copa, e enchiam como uma bexiga, que parecia pantominice das comédias, dizia o Zeferino.
Às quatro horas o fidalgo de Quadros e mais o pedreiro sentaram-se à mesa redonda. Já constava em Braga que estava ali o Cerveira Lobo, que desde 1835 não saíra da casa-solar de Vermoim. Alguns primos visitaram-no; as famílias legitimistas, e principalmente senhoras velhas, mandavam-lhe bilhetes.
Dizia o Zeferino que o incomodavam tantas etiquetas, que estava morto por se safar, não estava para lérias: que as tais senhoras Sotomaiores, as Peixotas e as Meneses deviam ser mais velhas que a Sé, uns estafermos. Ele segredava ao ouvido do Zeferino coisas, ratices suas em Braga, quando era rapaz. — Que fizera um destroço nas primas, tudo pelo pó do gato. Que pagara bem o seu tributo à asneira; e casquinava com vaidade paparreta, carregando-lhe a mão no verde. Quando entravam pelo assado, chegou um tenente do 8 a contar a um amigo, que estava à mesa, que chegara naquele momento preso ao Governo Civil, vindo da Póvoa de Lanhoso, um maroto que dizia ser D. Miguel, e ouvira dizer a um realista que o vira em Roma, havia três anos, que se parecia bastante com ele.
O Cerveira erguera-se num grande espanto indiscreto a olhar para o oficial, que o fixava com uma curiosidade irónica. Convergiram todos os olhares para o homem das barbas respeitáveis. Quedou-se momentos naquele espasmo, num trémulo, e perguntou:
— E é com efeito o Sr. D. Miguel esse homem que chegou preso?
— Ele diz que é — respondeu o tenente. — Veremos o que se averigua no governo civil.
— Na falta do verdadeiro D. Sebastião, apareceram três falsos — disse enfaticamente. um professor de latim, com um sorriso pedante.
O Cerveira olhou-o de esconso, e saiu da mesa, seguido do Zeferino, muito enfiados, ambos.
— Está tudo perdido! — disse dolentemente o fidalgo.
— El-rei preso!... E não se levanta este Minho a livrá-lo!... Vamos vê-lo, quero ver se lhe posso falar. Dentro de três dias entro em Braga com dez mil homens e arraso a cadeia.
Fez saltar a copa do chapéu de molas e saiu para a rua, a bufar.
O Campo de Santa Ana parecia um arraial. Aglomeravam-se ali as duas Bragas — a fiel, a caipira, pletórica de fidalgos, de grandes proprietários, cónegos, de chapeleiros e da clerezia miúda; — a liberal, muito anémica, encostada ao 8 de infantaria, toda de bacharéis e empregados públicos, o Manso, o Meio Cavacão, o Mota, o Rocha Veiga, o Alves Vicente, negociantes de tendas mesquinhas, professores muito retóricos, o Capela, que ensinava francês, o Pereira Caldas, soneteiro e polígrafo, o velho Abreu bibliotecário, lacrimoso, o Pinheiro, muito grande, filósofo sensualista, mas bom vizinho, todos à volta do Monte Alverne, um cónego muito assanhado, que foi, meses depois, comandante da brigada dos serezinos.
Cerveira Lobo impunha e dominava com as suas barbas, o trajar asseado com muito lustro, e o bater metálico, patarata, das esporas. Abriram-lhe passagem, rodeavam-no cavalheiros da primeira plana, os Vasconcelos do Tanque, os Magalhães, o Freire Barata, o Cunha das Travessas, a gema daquele enorme ovo realista, chocado no seio da religião da Carlota Joaquina, do conde de Basto e do Teles Jordão. O Cerveira perguntava aos seus: — É? — uns encolhiam os ombros, outros negavam gesticulando. E ele, com intimativa:
— Pois saibam que é!
O Manuel de Magalhães dizia ao ouvido do Henrique Freire:
— Deixa-o falar, que está idiota.
O Bernardo de Barros, um fidalgo de Basto que fora capitão de cavalaria, com um bizarro sorriso de corte e ademanes de uma selecção rara:
— Meu tenente-coronel, el-rei, quando vier, não há-de estar ao alcance da canalha. Descanse vossência.
Os janotas acercavam-se, desfrutadores, do Cerveira. Eram o Russel, o António Gaspar, os de Infias, o Bento Miguel de Maximinos, o Paiva Brandão, o D. Manuel de Prelada, o D. João da Tapada, o António Luís de Vilhena, um loiro, muito enamorado, com uma rosa-chá na lapela da casaca azul com botões amarelos.
Daí a pouco fez-se um torvelinho de povo à porta do Governo Civil. A soldadesca afastava a multidão com frases persuasivas de coronha de arma. Formou-se a escolta, e o preso saiu, de rosto levantado e afoito, rara a multidão. Cerveira Lobo fitava-o com uma ansiedade aflitiva. —Que se parecia... e ia jurar que era ele! — quando um realista convencionado e que estava no grupo, o major de Vila Verde, disse com um desdém de achincalhação:
— Olha quem ele é! Oh que traste! que grande mariola! Forte malandro!
— Quem é? quem é? —perguntavam todos.
— É o Veríssimo, foi furriel da minha companhia, andou com o Remexido, e safou-se de Messines com o pré dos guerrilhas.
O Cerveira inclinou-se ao pedreiro e disse-lhe à orelha:
— Ouviste, ó Zeferino?
— Estou banzado! —murmurou o outro.
— Olha que espiga! três contos! hem?
— Raios parta o Diabo! — disse o pedreiro, numa síntese condensada da sua incomensurável angústia.
Minutos depois, o padre Rocha encarava de frente o Cerveira, chamava-o de parte e dizia-lhe:
— Está desenganado, meu amigo? Eu, para corresponder à confiança de V. Exª, impus-me o dever de o salvar de um roubo de três contos, e da vergonha de ser logrado por um impostor. O maior serviço que podemos fazer ao Sr. D. Miguel é entregar à justiça um infame que se serve do seu sagrado nome para roubar os amigos do augusto príncipe. Sr. Cerveira, vá para sua casa; e, quando eu lhe disser que é tempo, então desembainhará a sua espada:
O Cerveira, abraçando-o:
— Honrado amigo, honrado amigo! Ainda os há..
O Veríssimo entrou na cadeia de Braga, e na madrugada do dia seguinte foi transferido para a Relação do Porto.
O nome e apelidos que ele deu no Governo Civil eram verdadeiros: Veríssimo Borges Camelo da Mesquita.
Tinha nascido em 1806 em Alvações do Corgo, no Douro. Ao pai chamavam-lhe o Norberto das facadas, quando já era velho, e meirinho-geral da comarca, em Vila Real Uns diziam que a alcunha facadas lhe vinha de ter esfaqueado a mulher, por ciúmes; outros, de ter levado três facadas, na Campeã, quando pusera cerco a uns salteadores que pernoitavam na estalagem daquela aldeia, nas vertentes do Marão. O certo é que a quadrilha tinha sovado os aguazis, e o comandante da diligência, o meirinho-geral, recolhera à vila numa padiola.
Norberto Borges Camelo tinha pedra de armas na casa de Alvações, uma edificação do século XVII. Dava-se como descendente do bispo do Algarve D. João Camelo. Contava a origem do brasão da sua casa, concedido ao seu sexto avô Lopo Rodrigues. Habituado a contar aos juízes de fora e corregedores da comarca o facto provado por incontestáveis pergaminhos, era convidado muito a miúdo desfrutadoramente à exposição heráldica do seu escudo, que ele fazia numa toada monótona de quem reza.
O Veríssimo era Mesquita pela mãe, que não conhecera. Também florira da cepa ilustre dos Mesquitas de Vilar de Maçada; mas o Norberto, achando-a em flagrante adultério com um primo Pizarro, anavalhou-a mortalmente, escondeu-se, fugiu com o Junot no regimento do conde da Ega, e quando voltou estava esquecido o caso.
Em 1827, o Veríssimo estudava em Coimbra humanidades para seguir a jurisprudência. Era bom estudante, aplicado e sério. Em 28 teve uma vertigem política. Fez-se caceteiro do partido dominante, quis atacar na Ponte a punhal os estudantes presos no Cartaxo como salteadores assassinos. Perdeu o hábito de estudar e a compostura de que fora exemplo. Em 29, abandonou a Universidade e assentou praça em infantaria. Quando o Porto se fechou, era sargento aspirante e bravo. Numa das primeiras surtidas dos liberais, foi ferido numa perna; e, apesar de coxo levemente, não quis a baixa nem a reforma. Era um bonito homem, rosto oval, olhos de rara beleza, nariz ligeiramente aquilino. Diziam-lhe que era o vivo retrato de D. Miguel, aperfeiçoado pelo desaire de coxear.
Depois da convenção, Veríssimo Borges recolheu a Alvações do Corgo, onde encontrou o pai num grande abatimento de tristeza e de recursos. A sua lavoura de vinho era pequena. Privado do ofício e malquisto como ladrão, o representante de Lopo Rodrigues socorria-se à beneficência de uma irmã, a D. Águeda, viúva de um major de milícias que morrera no ataque ao forte das Antas. O convencionado. naquela estreiteza de meios, quis voltar à fileira; mas o pai negou-lhe a licença, arguindo-lhe a baixeza de sentimentos, em querer servir o usurpador, e citava-lhe as cortes de Lamego. O Veríssimo, argumentando contra estas cortes, alegava que antes queria encontrar na casa de seu pai, em vez das velhas instituições de Lamego, os modernos presuntos da mesma cidade.
O Norberto gabava-se de que na sua geração, Camelo liberal não havia um só, e que a sua maldição pesaria como chumbo derretido sobre a cabeça do filho que perjurasse a bandeira do trono e do altar.
A tia Águeda, a viúva do major, tinha pouco. Desde 1828 até 1833 gastara seis mil cruzados em festejar os natalícios e as vitórias do Sr. D. Miguel com banquetes e iluminações que duravam três noites, num delírio de bombas reais e foguetes de lágrimas, com adega franca. Mandava cantar Te-Deum na igreja de Alvações assim que no pais vinhateiro soava a notícia de alguma vitória do exército fiel. Ora, os realistas, a contar por cada Te-Deum de Alvações. entravam no Porto às quinzenas para saírem por uma bªarreira e voltarem logo pela outra. D. Águeda começava a desconfiar que o Deus de Afonso Henriques voltara a casaca.
Restava-lhe pouco; mas não queria que o Veríssimo se fizesse malhado. Sacrificou-se à honra da família, levou-o para casa, deu-lhe mesa farta, e consentiu que o vadio se mantivesse regaladamente, de papo acima, tocando flauta, a trasfegar em si o resto da garrafeira. Aconselharam-na que ordenasse o sobrinho, visto que ele já tinha exames de latim e lógica. O Veríssimo disse que sim, que queria ser padre. Tinha-se esclarecido nos encargos do ofício, observando a vida sossegada e farta dos párocos.
Um seu parente, o abade de Lobrigos, tinha liteira, parelha de machos, matilha de cães e hóspedes na sua residência episcopal. Outros, com menos rendas, eram ainda invejáveis; um viver espapaçado em doce moleza, inofensiva, com grande estupidez irresponsável, um regalado epicurismo. Veríssimo achou que, se não pudesse ser bom padre, havia de pertencer à maioria; e, se desse escândalo, um de mais ou de menos não perturbaria a ordem das coisas. Os seus amigos e parentes abundavam no dilema.
D. Águeda fazia concessões à fragilidade do clero; — que seu sexto avô também fora bispo e pai de sua quinta avó, por Camelos. O parente abade de Lobrigos, em confirmação das preclaras linhagens de coitos sacrílegos, afirmava que a sereníssima casa de Bragança descendia de padres pelo pai de D. Nuno Alvares Pereira, que era prior do Crato, e pelo avô, o padre Gonçalo, que fora arcebispo de Braga; e que os condes de Vimioso e Atalaia, e todos os Noronhas, oriundos de certo arcebispo muito devasso de Lisboa, e muitas outras famílias da corte descendiam de prelados. Estas genealogias orientavam o Veríssimo no futuro do sacerdócio. Queria ser abade, ressalvando tacitamente certas condições a respeito dos rebanhos e particularmente das ovelhas.
Em Outubro de 1835 foi para Braga. Tinha trinta anos: sentia o cérebro moroso na digestão da teologia, andava enfastiado e triste. Acaso encontrou um camarada, sargento do mesmo regimento, o Torcato Munes mias, que andava a estudar para procurador de causas. Eram inseparáveis, identificaram-se numa intimidade de tasca e de alcoice. O Veríssimo nunca mais abriu compêndio nem o outro um processo. D. Águeda mandava regularmente a mesada, e perguntava-lhe quando cantaria a missa.
Em 1836 apareceu no Algarve a poderosa guerrilha de José Joaquim de Sousa Reis, o Remexido, em São Bartolomeu de Messines. Os dois ex-sargentos alvoroçaramse com a notícia e resolveram apresentar-se ao formidável candilho. Veríssimo pediu à tia uma quantia mais avultada para pagar as últimas despesas do sacerdócio. A velha mandou-lhe o preço de uma vinha vendida e a sua bênção. Os aventureiros partiram para o Algarve. O general recebeu-os nos braços, e deu-lhes divisas de capitães. Veríssimo Borges escreveu ao pai, a dar-lhe parte do seu heróico destino: que advogasse a sua nobre causa na presença da tia Águeda, e lhe dissesse que ele não podia largar a espada vencida enquanto visse no campo brilhar o ferro de um realista. Que o general Sousa Reis estava destinado a repor o Sr. D. Miguel I no trono, ou ser o último a morrer em sua defesa; que ele e um seu amigo e camarada tinham saído de Braga juramentados a morder o pó onde caísse o seu general. Que eram já comandantes de companhias, e tinham duas carreiras abertas — uma que levava à glória, outra à sepultura — que também era uma glória morrer pela pátria.
José Joaquim, o Remexido, era um bem figurado homem de trinta e oito anos. Nascera em Estômbar, estudara para clérigo no seminário de Faro, e distinguira-se em perspicácia e subtileza na percepção das teologias. O amor inutilizou-lhe o talento aplicado a um pacífico e humaníssimo destino. Viu uma esbelta moça de São Bartolomeu de Messines quando aí foi pregar um sermão, sendo minorista. As serenas visões do levita deslumbrou-lhas a formosa algarvia. Não hesitou entre o amor da humanidade e o culto egoísta da família. Casou, e de homem estudioso e contemplativo, volveu-se lavrador, lidou rudemente nas searas, e redobrou de esforços à proporção que os filhos lhe multiplicavam o amor e os cuidados.
Insensivelmente compenetrou-se da paixão política. Nesta província, onde em 1808 estalou o primeiro grito contra o domínio francês, a liberdade proclamada em 1820 abriu um abismo entre duas facções que por espaço de dezoito anos se despedaçaram. José Joaquim de Sousa Reis alistou-se entre a clerezia de quem recebera as boas e as más ideias, e manifestou-se em 1823 um ardente sectário das más, perseguindo os afeiçoados à revolução do Porto. Em 1826 emigrou para Espanha, e voltando em 1828 extremou-se entre os aclamadores do rei absoluto. Daí em diante, receoso das retaliações, não teve mais uma hora de remansoso contentamento nem abriu mão da espada tão afoita quanto cruel.
Logo que o duque da Terceira aportou com a divisão expedicionária às praias da Lagoa, em 24 de Junho de 1833, Sousa Reis com alguns cúmplices foragiu-se nos recôncavos do Penedo Grande, cujas veredas montanhosas conhecia. Deixou mulher e filhos, na primeira flor dos anos, inculpados idas paixões de seu pai, fiados na generosidade dos vencedores e na própria inocência. A vingança fez represálias na família do fugitivo. A mulher e os filhos foram espancados pela tropa, depois do roubo e do incêndio da sua casa de Messines. O leão, como se ouvisse bramir os cachorrinhos nas garras do tigre, irrompeu da caverna, precipitou-se dos penhascais à frente da sua alcateia, e atacou Estômbar com irresistível ímpeto. Estava ai a sua família sob a pressão das baionetas que a vigiavam como armadilha à queda do guerrilheiro; mas a tropa não pôde resistir à fúria de pai. Ele atirava-se às descargas, abrindo com a espada a vereda do seu ninho. Os inimigos que o viram nesse dia conservaram longo tempo a lembrança da sua catadura transfigurada pela desesperação. E todavia era um homem gentilíssimo. Depois, senhoreou-se de povoações importantes do Algarve e estendeu até às fronteiras do Alentejo os seus domínios. Moveram-se contra ele muitos regimentos de primeira linha e de batalhões da guarda nacional. Ele tinha adoecido de fadigas incomportáveis, e descansava com algumas centenas de homens num desfiladeiro da serra, chamado a Portela da Corte das Velhas. Ai o atacou uma coluna de caçadores 5. O Remexido, afinal, faltou-lhe a coragem de se fazer matar. Viu talvez a mulher e os filhos, entre a sua agonia e as baionetas. Deu-se à prisão, e cinco dias depois era arcabuzado em Faro.
O regimento em que eram capitães o Veríssimo e o Nunes dispersou, e eles, claro é, fugiram à maneira dos muito discretos e bravos generais de que rezam os fastos militares
O pré dos guerrilhas devia ser quantia diminuta, uma bagatela ridícula, que não merecia a pomposa qualificação de ladroeira. Como não tiveram tempo de fazer o pagamento, retiraram-se com o cofre nas algibeiras. É o que foi, e a história não pode dizer outra coisa. Queria talvez o major de Vila Verde, o denunciante de Braga, que eles andassem à carta das praças dispersas pelas montanhas, a repartir os quatro vinténs diários e o vintém do munício!
Veríssimo foi para Alvações e Nunes para São Gens.
O Norberto morreu por esse tempo de uma congestão cerebral; alguém diz que o esganaram na cama dois malhados de Lobrigos contra os quais ele tinha jurado em 28. D. Águeda recebeu o sobrinho carinhosamente. A herança do pai estava empenhada; foi à praça; sobejaram uns novecentos mil-réis e a casa com as armas, pagas as dívidas. O Nunes dizia-lhe da Póvoa que andava por lá miserável, um piranga, na gandaia; que o pai dava-lhe um caldo de feijões e o tratava como um cão vadio. Que, depois da partida do Algarve, não tinha com quem praticar em Braga para solicitador, nem tinha que vestir. O Veríssimo chamou-o para Alvações com generosidade. Vestiu-o, e dava-lhe meios para ele poder estudar em Vila Real, com advogados miguelistas, que o estimavam muito.
A velha passava os dias a chorar entre o retrato do defunto major e o do Sr. D. Miguel das iluminações, que se parecia muito com o sobrinho.
No Inverno de 1840, D. Águeda morreu de uma indigestão de castanhas, complicada com enterite crónica e saudades da realeza. Deixou ao sobrinho a casa, as vinhas muito delapidadas; e o retrato do Sr. D. Miguel às freiras de Santa Clara de Vila Real e mais dez moedas de ouro com a condição de lhe acenderem quatro velas de cera no dia dos anos de Sua Majestade.
Veríssimo viveu então largamente. Fez-se chefe de partido nas redondezas de Alvações do Corgo, onde era conhecido pelo capitão Veríssimo. Deitou cavalo e mochila; jogou rijo dois anos na Feira de Santo António, em Vila Real, e perdeu tudo. O Nunes, que já solicitava causas na Póvoa, repartia com ele dos seus proventos muito escassos, porque o juiz e os escrivães faziam-lhe guerra implacável, e as partes fugiam dele.
O Veríssimo saiu de Alvações, onde não possuía palmo de terra; e, como tinha boa forma de letra, ofereceu-se para amanuense a um tabelião de Alijó. Ganhava três tostões por dia e jantar. Como era boa figura, a mulher do tabelião, uma trigueira de má casta, entrou a compará-lo com o marido, que tinha os dentes muito lurados e os olhos tortos. Mas o tabelião viu as coisas pelo direito, e pôs o amanuense na rua, e a mulher em lençóis de vinho, dizia-se. Veríssimo conhecia o capitão-mor de Murça, o Campos, uni hebreu realista, muito abastado. Ofereceu-se-me para escudeiro e foi aceite com bom ordenado. O capitão-mor era viúvo; mas tinha uma governanta fresca, de uma fome de pecado irritada pela indiferença judaica do amo em matéria de religião. O Veríssimo tinha a fatalidade femeeira do seu Sósia, do Sr. D. Miguel. O capitão-mor, com o seu fino olho de raça, lobrigou as sentimentalidades da rapariga. Pagou generosamente ao escudeiro, e impô-lo. Voltou ao Douro, e procurou o amparo de um realista poderoso, o António de Melo, de Gouvinhas, o pai do Sr. Lopo Vaz, um grande ministro liberal cheio de embriões de coisas, O fidalgo de Gouvinhas nomeou-o feitor das suas quintas. Estava regalado; feitorizava pouco; o fidalgo admitia-o às suas palestras íntimas de política; mas um sobrinho do Melo, um valente navalhista que chamavam em Coimbra o Malagueta, ganhou-lhe ódio, por ciúmes de uma tecedeira chibante, uma raparigaça de tremer, de quadris roliços, a Libânia de Covas. Travaram-se de razões. O Malagueta correu sobre ele com um punhal. Veríssimo acobardou-se na sua posição dependente e despediu-se.
A Libânia tinha cordões e umas moedas ganhas com o pudor diluído no suor do seu bonito rosto, a corso das algibeiras copiosas dos vinhateiros. Seguiu-o para o Porto em 1844. O neto do bispo D. João Camelo abriu uma escola de primeiras letras em Miragaia. Ao cabo do primeiro mês, dava pontapés impacientes nos garotos, andava ralado, não podia com aquela bestialidade da instrução primária. A Libânia queixou-se um dia de dor de dentes. Foi uma inspiração. O Veríssimo resolveu fazer-se dentista, e foi estudar com o Pinac, à Rua de Santo António, um bom homem. Andava neste tirocínio, quando encontrou no Tívoli, defronte da Biblioteca, o Nunes. A Libânia gostava muito de resvalar pela montanha russa, dava umas risadas argentinas, batia as palmas e queria montar os cavalos de pau que giravam no jogo da argolinha.
Quando se encontraram, o Torcato vinha pedir-lhe dinheiro. O pai tinha morrido, deixando a casa ao outro irmão. Estava casado, e tinha dois filhos. Queria ir tentar a fortuna ao Brasil, trabalhar em mangas de camisa, se fosse necessário. O Veríssimo respondeu-lhe que o único favor que lhe podia fazer era tirar-lhe um dente de graça. Confidenciou-lhe as suas misérias mais íntimas; que aquela boa rapariga tinha gasto com ele quinze moedas e vendera o seu ouro; mas, tão generosa, tão honrada que nunca lhe vira no rosto uma sombra de tristeza. Que estava resolvido a ir estabelecer-se corno dentista na província, logo que pudesse comprar o estojo, que custava 12$000 réis, e não os tinha.
— Se os não tens — disse o Torcato — minha mulher tem um cordão que pesa três moedas; para mim não lho pedia; mas para ti vou buscá-lo amanhã. — E acrescentou, de excelente humor: — Deus permita que na terra onde te estabeleceres sejam tantas as dores de dentes que não tenhas mãos nem queixos a medir.
Saíram alegres do Tívoli. Sentiam-se bem aquelas duas organizações esquisitas. Havia ali duas almas que se amavam deveras, dois náufragos a quererem chegar um ao outro a mesma tábua de salvação. É nestes esgotos sociais que ainda, uma vez por outra, se encontram Pílades e Orestes.
O Veríssimo morava atrás da Sé, na Rua da Lada, uma casa de um andar, muito empenada, com o peitoril de ferro de uma única janela desencravado de uma banda, e uma porta viscosa e negra corno a boca de um antro. Cearam todos. Havia cabeça de pescada cozida com cebolas, sardinhas fritas e pimentões. O Nunes foi buscar duas garrafas da companhia de tostão à Rua Chã, e enfiou no braço uma rosca de Valongo, que comprou na bodega da Caçoila, uma esmamaçada com cordões de ouro, que frigia peixe à porta e dava arrotos.
Cearam numa estúrdia de rapazes, como em Braga, nove anos antes, na tasca do Catrâmbias, na Rua do Alcaide. A Libânia de Covas muito larachenta — que levasse o Diabo paixões, e mais quem com elas medrava; que, em se acabando o dinheiro, faziase cruzes na boca; mas que deixar o seu Veríssimo, não o deixava nem à quinta facada.
— Nós devíamos ir todos para o Brasil — lembrou o Torcato, que tinha meditado num recolhimento extraordinário.
— E chelpa? — perguntou a Libânia.
— Se tu quiseres, Veríssimo, dentro de um mês temos um conto de réis.
— Boa!... —disse o outro.—Bem se vê que as duas garrafas deram o que podiam dar — uma fantasia de um conto de réis. Por dois tostões é barato.
— Estás disposto a ouvir-me sem interrupção de chalaça? Eu não estou bêbedo, palavra de honra!
Libânia pôs a face entre ais mãos e os cotovelos na toalha suja de vinho e migalhas, com os olhos muito fitos e rutilantes na cara do Nunes. O Veríssimo atirou com as pernas para cima da banca, acendeu um charuto de dez-réis e disse que falasse à vontade.
— Tu sabes que te pareces muito com D. Miguel?
— Começas bem. Temos asneira.
— Mau! Não me fales à mão.
— Já sei onde queres chegar. Vais dizer-me que me faça aclamar rei, e, para evitar efusão de sangue, venda a minha sobrinha D. Maria II os meus direitos à coroa por um conto de réis. Dou-os mais em conta.
— Adeus minha vida! — retrucou o Nunes impaciente. — Amanhã conversaremos.
— Deixa falar o homem! — interveio a Libânia. — Ora diga lá, é sê Nunes.
O Torcato expôs a sua teoria do conto de réis, desfez atritos, removeu dificuldades, convenceu afinal. Tinham de partir para o Alto Minho, os dois. Libânia iria para Ramalde trabalhar nos teares da Grainha, que lhe dava comida, cama e doze vinténs por dia. Venderiam a um adeleiro da Rua Chã os trastes para o Veríssimo se enroupar de pano piloto, quinzena e calças com alguma decência, roupa branca, reforma das botas cambadas, chapéu de feltro e um paletó de agasalho.
Na quinta -feira gorda, a Libânia, com exemplar coragem, foi para Ramalde. A Grainha negociava em teias, ia vendê-las ao Douro, tinha visto em Gouvinhas o limpo trabalho da rapariga, e quando a encontrou no Porto:
— Olhe, moça, quando quiser ganhar a vida honradamente, lá estamos em Ramalde. Uma de doze, comer como eu e lençóis lavados na cama.
O Nunes e o Veríssimo foram juntos até perto de Braga. Aí, o de Calvos seguiu para casa, e o outro no sábado gordo partiu para a Póvoa de Lanhoso.