O Zeferino deixou o Cerveira Lobo em Quadros, com os três contos de réis, foi para as Lamelas, e entrou de noite, para que o não vissem. Ele tinha-se gabado aos vizinhos de que estava despachado sargento-mor e seu pai coronel reformado. Ao José Dias de Vilalva e mais ao pai, que era regedor, mandara-lhes dizer que eles brevemente haviam de topar com o seu homem. Da Marta de Prazins dizia trapos e farrapos. A sua paixão não tinha outro respiradouro. Além disso, não podia esquecer-se da nádega exposta pelo cão às descompostas gargalhadas da rapariga. Era uma vergonha crónica. E, para remate de desastres, voltava para as Lamelas, a ouvir as rabugices do pai que lhe chamava cavalgadura — que se deixasse de política e fosse fazer paredes, que é o que ele sabia.
Constava-lhe demais a mais que o José Dias, o estudante, estava sempre em Prazins, e tinha ido com Marta e mais o Simeão ao fogo preso da romaria de Santiago da Cruz. Viram-nos todos três a tomar café de madrugada numa barraca, a cochicharem os dois muito aconchegados, enquanto o velho tosquenejava a dormitar.
O pai de José Dias, o Joaquim de Vilalva, era uni lavrador de primeira ordem. Lavrava quarenta canos de milho e centeio, uma pipa de azeite, dez de vinho, muita castanha, tinha três juntas de bois chibantes e poldros de criação. O José, meeiro no casal, a não se ordenar, era um dos primeiros casamentos do concelho.
O rapaz amava castamente a Marta com a pudicícia do primeiro amor. Ela tinha uma formosura meiga, delicada e suplicante. Parecia pedir que a não imolassem a uma paixão sensual; mas, se o seu amado o exigisse, a vitima coroar-se-ia de flores, e iria risonha e mansamente para o sacrifício. Tinha êxtases a contemplar-lhe os cabelos loiros e a pálida face doentia; deixava-se beijar com a impassibilidade de uma santa de jaspe — um quadro paradisíaco sem frutas nem cobras.
O José não necessitava pedi-la ao pai na incerteza de uma recusa. Disse-lhe que ela havia de ser a sua esposa: a criança contou ao pai as palavras do amado e o Simeão:
— Ora venha de lá esse abraço, amigo e sê Zé! — e apertou o futuro genro com a ternura de pai que arranja a sua filha como se quer.
Mas os pais do estudante já tinham dito ao rapaz que mudasse de rumo, que a moça de Prazins não era forma de seu pé. A mãe, principalmente, protestava que, enquanto ela fosse viva, a tal filha da Genoveva de Prazins não havia de ser sua nora, nem que a levasse o Diabo, e Deus lhe perdoasse, se pecava. Justificava se dizendo que a Marta era de ruim casta; que a mãe, a Genoveva, dera desgostos ao homem, pintava a manta nas romarias, andara muito falada com um frade de Santo Tirso, e um dia pegara a dar gritos na igreja; toda a gente disse que ela tinha o Demónio no corpo, e afinal morrera doida, atirando-se ao rio Ave.
E constava-lhe que o avô dela também não era escorreito, e quando já tinha sessenta anos mandara fazer uma sobrepeliz, abrira coroa, e onde houvesse um defunto lá ia com um ripanço à igreja e punha-se a cantar como os padres. A tia Maria de Vilalva tinha inconsciente mente este horror moderno, científico da hereditariedade mas o que mais a impulsionava na sua resistência aos rogos do filho era ter sido má mulher e mãe de Marta De má árvore, ruim fruto — era toda a sua filosofia, que se encontra diluída modernamente nas explorações fisiopsicológicas de Janet, de Maudsley e no determinismo.
O Joaquim de Vilalva, muito instado pelo filho e pelo padre Osório, o de Caldelas, prometia fazer o que a sua companheira fizesse; mas dizia-lhe a ela em particular:
— Tu aguenta-te, Maria; nunca digas que sim, ouviste?
E ela:
— Deixa-me cá, homem! Vêm barrados. Credo!
A tia Maria era muito rezadeira, erguia-se de noite para não pender a sua missinha no Verão ao romper do dia, e garganteava com uma melopeia fanhosa a via-sacra na Quaresma, à volta da igreja; presenteava os santos dos altares com os mimos da sua lavoura, que se leiloavam ao domingo no adro, dava cama e mesa untuosa aos missionários, confessava-se todos os meses, e sentia pelas suas vizinhas menos beatas o inefável prazer de afirmar que haviam de cair vestidas e calçadas no Inferno. O filho penetrou-se de uma ideia trivial a respeito de sua mãe: — Que os sentimentos religiosos a Levariam a dar o consentimento, se Marta cometesse um desses pecados que se remedeiam com o matrimónio. O padre Osório dizia-lhe que a intenção era honesta, mas o expediente mau. Não lhe citou teólogos nem preceitos de origem divina. Argumentoulhe com a hipótese da pertinaz resistência da mãe. Que não esperava nada da sua religião um hábito de trejeitos de mãos e de beiços, o automatismo idólatra dos selvagens da América, que davam guinchos mecânicos, prostrando-se por terra, quando ouviram a primeira missa; que a religião das aldeias, sobre a dos indianos da catequese dos jesuítas, as vantagens que tinha era a hipocrisia em uns, e o fanatismo em outros, quando não se jantavam ambas as coisas nos mesmos fiéis, O padre Osório paroquiava e conhecia o seu rebanho, joeirando-o pelos crivos do confessionário. Não conhecia menos a tia Maria de Vilalva. Afirmava que a fragilidade de Marta seria para a velha mais um motivo de ódio e desprezo; porque, na sua cartilha e nos ditames dos seus directores espirituais, não se lia nem ouvia que a mãe devia encobrir a desonra de unia rapariga casando-a com o seu filho, sedutor dela.
As reflexões do vigário de Caldelas eram óptimas, mas extemporâneas.
Um oficial de pedreiro de Prazins, que trabalhava com o mestre Zeferino, contoulhe que uma noite se enganara com o luar, e, cuidando que era dia nado, se levantara para ir para a obra; mas que ao passar por diante da casa do Simeão ouvira duas horas no relógio, e vira luz pelas frestas de uma janela. Que se pusera à coca debaixo de um carvalho, a desconfiar que a luz àquela hora não era coisa boa, e estivera, vai não vai, à pernas para que te quero, lembrando-se se seria bruxedo ou alma penada, porque se dizia que a Genoveva do Simeão, a que se deitara ao rio, não podia entrar no Purgatório, e morrera com o Diabo no corpo, salvo seja. Estava nisto quando a luz se sumiu, e se coou pelas frestas de outra janela, e logo depois noutra mais baixa, onde um homem podia chegar com o cabo de um machado. Nisto apagou-se a luz e abriu-se a janela de portadas sem vidros. Dava-lhe a chapada do luar; era como se fosse dia. O pedreiro, muito no escuro da ramaria do carvalho, viu apontar uma cabeça e depois meio corpo de homem, que se pôs às cavaleiras do peitoril da janela, quedou-se a olhar e a escutar a um Lado e outro; depois desmontou-se muito devagarinho, sem tugir nem mugir, pendurou-se no peitoril e deixou-se cair, ficando em pé. A janela fechou-se, e o José Dias, que o operário conheceu como se o visse ao meio-dia, meteu-se ao caminho de Vilalva, por sinal que levava sapatos de borracha que brilhavam ao luar como um espelho.
O oratoriano Manuel Bernardes, como é notório, escreveu um livro edificante, muito piedoso, chamado Armas da Castidade. O místico filho de S. Filipe Néri, com duas palavras sãs, de um realismo seráfico, cabalmente explicou a situação de outro José Dias a respeito de outra Marta, conhecia-lhe o leito, dizia ele. É o mais que se pode dizer sem escandalizar ninguém. Conhecia-lhe o leito.
Mas o Zeferino é que sentiu em cheio no peito amante a facada do escândalo. O oficial viu-o sentar-se sobre uma padieira que estava esquadriando, e, com o rosto entre as mãos, desfazer-se em pranto. Ele tinha amado aquela rapariga desde que a vira aos treze anos. Trabalhara e roubara como galego para a poder comprar ao pai por um conto e quinhentos e pico. Meteu-se na política; fez-se sargento-mor a ver se se levantava a uma altura em que a Marta o achasse digno dela e superior ao estudante. Desabadas as esperanças com a prisão do patife de Calvos, cismava ainda em voltar de novo ao campo quando viesse o D. Miguel autêntico, porque o tenente-coronel de Quadros lhe dizia que el-rei chegava a Portugal na Primavera do ano seguinte — afirmava-lho o padre Rocha, para o consolar juntamente com as bebedeiras quotidianas. Tudo acabado, perdido, como se Lhe morresse a Eva do seu paraíso! E por isso o pedreiro chorava como os grandes poetas traídos, como Camões, como Tasso, como Alfredo de Musset. As lágrimas na cara tostada daquele operário tinham o travo das que a poesia cristalizou no panteão dos mártires do amor.
Depois, levantou-se, limpou as faces à manga da camisa, pegou da esquadria e continuou a trabalhar, assobiando a música triste de uma cantiga desse tempo:
Ó mar, se queres,
Tem dó de mim.
Estes assobios eram o silvo da serpente da vingança; mas o seu rancor não punha a pontaria em Marta. Se deixava de cinzelar a pedra, e fitava os olhos extáticos num imenso vácuo, via passar lucilante a imagem da pequena, pura, angelical como a vira aos treze anos. Um grande romântico — uma explosão de ideias que florejavam daquele pedreiro como um canteiro de boninas nos musgos de um penhascal. Havia destas transigências com os anjos despenhados. Dir-se-ia que ele tinha lido as Confissões de um filho do século, aquela torrente de lágrimas ignóbeis que lava os pés de uma dissoluta ilustrada.
Ele, desde essa hora funesta, pensou em matar o José Dias; mas, nas ricas protuberâncias ósseas do seu grande crânio, a bossa do homicídio era muito rudimentar. Tinha tido várias ocasiões de poder-se gabar dessa perfeição. Haviam-lhe batido dois estudantes num pinhal, por causa das denúncias ao padre-mestre Roque; e, quando o cão do Dias lhe rasgou a calça num sítio melindroso, o Zeferisno desconfiou que, se fosse capaz de matar um homem, deveria ter atirado com o machado à cabeça do caçador. Ele queria espezinhar o cadáver de José Dias, espostejá-lo, trincá-lo, mascá-lo, esmoê-lo, devorá-lo, mas à maneira dos devoristas incólumes que compram um porco já morto na Ribeira Velha, e o esquartejam com um grande regozijo antropófago, com as mãos ensopadas nas banhas da vítima.
O pedreiro denunciante ia contando em segredo a toda a gente a descoberta que fizera naquela noite em que se enganara com o luar. A Marta estava desacreditada na freguesia; as mulheres que sachavam os milharais faziam comentários perpétuos ao texto do pedreiro, recordavam as façanhas da Genoveva, contadas pelas velhas, e as mais antigas diziam que a Brígida Galinheira, avó da Marta, já tinha dado o exemplo à filha. — Uma geração de marafonas do alto, dizia a tia Rosa de Carude, cuspindo no chão, e pondo a soca em cima. Riam-se do Zeferino, que andava como a cobra que perdeu a peçonha, muito escamado; que lhe tinham saído dois casamentos com boas lavradeiras, e ele diz que havia de ir morrer solteiro às Pedras Negras, depois da matar um homem; e houve quem afirmasse que o vira com um bacamarte, debaixo dos carvalhos, por essa noite fora, defronte da casa do Simeão. Uma calúnia.
Avisaram a mãe do José Dias da espera do pedreiro, e ela fez dormir o filho numa trapeira que não tinha janela por onde saltas-se, e fechava-o de noite por fora, rogando pragas à seresma de Prazins: — Que um raio a partisse e o Diabo a levasse para as profundas do abismo! Depois ia rezar a coroa com os criados, e rogava a Deus pelos que andavam sobre as águas do mar e pelas almas de todos os seus parentes e vizinhos, com uma intonação chorada que fazia devoção.
O José Dias vivia amargurado. Tinha sido criado num grande respeito aos pais, e sentia-se inábil para lhes reagir. A doença de peito que principiava a desvigorizar-lhe o como, implicava-lhe com a atonia da alma. Sentia o egoísmo indolente dos enfermos minados pela consumpção lenta. Invejava a robustez do irmão, um trabalhador forte que dormia dez horas, e ao romper da aurora ia lavar a cara ao tanque e pensar o gado com uma grande alegria, de assobios remedando as requintas das chulas. Passava muitas horas com o seu confidente, o padre Osório. Pedia-lhe conselhos — que arranjasse modo de ele poder casar com a Marta.
— Que eu — dizia com desalento — não vou Longe; mas queria remediar o mal que fiz.
A Marta escrevia-lhe para Caldelas, porque a tia Maria de Vilalva, uma vez que lá viu um garoto com carta para o filho, deu sobre ele com um engaço, que por pouco o não apanha pela cabeça com os dentes do instrumento. As cartas eram desconfianças, receio do abandono, lágrimas. O pai não a mortificava. Pelo contrário, dizia-lhe a miúdo:
— Se o Zé de Vilalva não casar contigo, talvez seja a tua fortuna, porque pode ser que teu tio adregue de gostar de ti, e mais mês menos mês ele rebenta por essa porta dentro rico como um porco. O brasileiro da Rita Chasca, que chegou agora, diz que ele tem quatrocentos contos fortes, para riba, que não para baixo.
A Marta escondia-se a chorar; e, às vezes, lembrava-se do fim da mãe — o suicídio; e punha-se a olhar para o Ave e a escutar o rugido cavo de uma levada que parecia trazer-lhe os gemidos agonizantes de muitos afogados.
O Dias falava-lhe na sua doença, no desfalecimento de forças, que já o não deixavam caçar, da tristeza que o consumia, do desamor com que a família o via padecer, do ódio que começava a ter à mãe, e idas saudades dilacerantes que sentia pela sua querida Marta. — Que o seu amigo padre Osório trabalhava para obter o consentimento do pai; mas que, se o não obtivesse, estava resolvido a fugir com ela, mesmo sem recursos, ou com os poucos que o seu amigo lhe podia emprestar.
De tempo a tempo ia vê-la de dia; mas a mãe trazia-o muito espreitado, e ralava-o: — que a tal cróia havia de dar cabo dele. O cirurgião tinha-lhe dito delicadamente que o José abusava do 6º. Ela, como sabia os manda. mentos de cor e salteados, entendeu logo, e dizia a toda a gente que o seu Zé andava assim uni pilharengo por causa do 6º. Era o resultado de saber a doutrina cristã esta decência no explicar-se por números. As vizinhas entendiam-na e diziam-lhe que o José andava forgado, que lhe metesse uma enxada nas unhas e o pusesse a roçar mato oito dias, que ele perdia o cio.
Decorreram alguns meses. Com a Primavera a saúde de José Dias pareceu restaurar-se. Ele atribuiu as suas melhoras ao contentamento. O pai, que era regedor, a pedido do governador civil, que o mandou chamar a Braga, por intervenção do padre Osório, dava o consentimento; mas a mãe recalcitrava. Esperava-se, porém, a vinda dos missionários a Requião, para a reduzirem ao dever de católica. O vigário de Caldelas já tinha prevenido um egresso do Varatojo, Frei João de Borba da Montanha, das terras de Celorico de Basto, de uma força prodigiosa em empresas mais difíceis.
Marta recobrava alegres esperanças, e o Zeferino das Lamelas digeria a sua dor, assobiando a música da melancólica balada:
Ó mar, se queres,
Tem dó de mim.
Para seu desafogo, ia a miúdo a Quadros saber quando chegaria o Sr. D. Miguel. O Cerveira estava relacionado com os setembristas. Formara-se a junção dos dois partidos hostis aos Cabrais, aproximados pelas eleições sanguinárias de 1845. O tenente-coronel reunia espingardas em Quadros e dava dinheiro para o fabrico de cartuchame no concelho da Póvoa de Lanhoso e nos arrabaldes de Guimarães. O padre Rocha comunicava-lhe as notícias enviadas de Londres pelo Saraiva, e conseguiu que ele fosse ao Porto receber o grau de comendador da Ordem de S. Miguel da Ala, a casa do João de Albuquerque, da Ínsua, que representava nas províncias do Norte o Grão- Mestrado. O Zeferino sentia momentos de júbilo de tigre que se agacha a medir o salto à presa. Tinha um riso que era um ringir de dentes. Parecia-lhe que estava a mastigar os fígados do José Dias.