Relatava o vigário de Caldelas:

— O cérebro do Simeão, se era refractário aos golpes da dignidade, não era mais sensível às comoções das pauladas. Duas vezes feliz quanto à cabeça: nem honra nem predisposições inflamatórias. Cicatrizou a ferida; começou a comer galinhas com a fome de um canibal e com o prazer carnívoro de uma raposa. Dera tacitamente Marta o consentimento de casar com o tio; esperava em soturno abatimento que a casassem; e, se minha irmã lhe tocava nesse assunto, dizia: . Quanto ao casamento — prosseguiu o padre Osório — eu cismava se a primeira noite nupcial seria a véspera de escandalosas desavenças, arrependimentos, choradeiras, divórcio, vergonhas, coisas; mas ocorria-me que Feliciano me confessara repetidamente que saíra da sua aldeia aos doze anos e tornara casto e puro como saíra. E eu então, atendendo a que a castidade, além de ser em si e virtualmente uma coisa boa, tem umas ignorâncias anatómicas, e umas inconscientes condescendências com as impurezas alheias, descansava, tranquilizava o meu espírito escrupuloso. Uma falsa compreensão da honra alheia às vezes me aconselhava que mandasse o brasileiro conversar sobre o assunto com o operário que o luar enganara em certa noite; mas a honra, como a consciência, não são quantidades constantes no geral das pessoas; são condições da alma tão variáveis como a matéria exposta às mudanças climatéricas. Ora as condições mentais e morais de Feliciano Prazins eram as melhores e as mais garantidas para a sua felicidade. Com que direito ia eu estragar aquele excelente organismo?

Até aqui o padre Osório com a sua grande prática etnológica dos usos e costumes dos maridos sertanejos do Minho.

O mano lavrador não era mais apontado em melindres de pundonor. Assim como curara em silêncio o coração, golpeado pelas deslealdades da defunta Genoveva, do mesmo modo se acomodara com os estragos sofridos nos tegumentos da cabeça. Dizialhe o administrador que querelasse contra o Zeferino, porque havia testemunhas indicativas que faziam prova. Não quis. — Depois é que me dão cabo do canastro; — dizia com um dom profético, e circunspecção admirável num homem sem instrução primária.

No entanto, Zeferino debatia-se num azedume de desesperado, muito má-língua, insano de paixão, a degenerar para facínora em teorias de escavacar meio mundo. Começou a superar-lhe nas entranhas o vício do pai com sedes ardentes de vinho do Porto e genebra. Sentia alívios, consolações inefáveis, quando se embebedava; rejuvenescia; a vida encarava-se-lhe melhor. Arranchava com vadios nas noitadas das tavernas onde se jogava esquineta e monte. Trocava na mesa da tavolagem peças de duas caras que comprara no tempo em que amealhara dez mil cruzados com dez anos de trabalho. Os parceiros roubavam-no. Vinham de noite de Famalicão a Landim, perto das Lamelas, jogadores professos, armar a forquinha ao pedreiro com cartas marcadas e pego. Depois das perdas, quando se via atascado na esterqueira do jogo e da borracheira, embriagava-se de novo, e nessas alucinações ia a Prazins, de clavina ao ombro, com o Tagarro de Monte Córdova, e falava alto, com petulância, paira que Marta o ouvisse. O brasileiro e o Simeão tinham-lhe medo e não abriam as janelas depois do Sol posto.

Espalhou-se então a notícia de que o brasileiro ia efectivamente casar com a sobrinha.

O Zeferino escreveu ao Feliciano uma carta anónima, que era um traslado aumentado do depoimento do pedreiro que vira o José Dias saltar da janela. E por fim ameaçava-o: — que, se casasse com a Marta, não a havia de gozar muito tempo. O Feliciano mostrou a carta ao irmão. Concordaram que era o pedreiro com a sua paixão, danado de raiva. O brasileiro entrou a cismar que o celerado era capaz de levar a vingança ao cabo — bater-lhe, matá-lo. Os tiros desfechados à sua honra de marido de Marta resvalavam-lhe na couraça da consciência: , dizia ele; mas a ideia de um tiro ao seu físico, inquietava-o deveras. , dizia o brasileiro ao mano, num grande mistério.

Lembrou-lhe o seu compadre, o Francisco Melro da Pena, um taverneiro de olhos estrábicos, de alcunha o Alma Negra, um que o tinha avisado, quando a malta da patuleia tencionava agarrá-lo. O Melro rompera relações com o Zeferino, por causa da partilha de uns dinheiros apanhados na mala do correio de Guimarães, e dizia hiperbolicamente ao seu compadre que o Zeferino, quando andara na patuleia, era ladrão como rato.

O Melro era má bisca. Estivera três anos na Relação como cúmplice num homicídio que se fizera na sua tasca. Vivia apertadamente com mulher e quatro filhos, e não cessava de pedir empréstimos ao compadre desde que o avisara. Quando o Simeão foi espancado, o Melro logo lhe disse era segredo que quem lhe batera fora o Zeferino, com as costas guardadas par dois pimpões do Monte Córdova. E acrescentou: — Ele bem sabe a quem as faz. Havia de ser comigo ou com pessoa que me doesse...

O Feliciano deu um passeio para os lados da Pena, onde morava o compadre. Disse-lhe que ia ver a quinta da Comenda que se vendia; que lha fosse mostrar. Conversaram; e, no regresso, pararam em frente de uma casa com três janelas e um quintal espaçoso.

— É aqui — disse o Melro.

O brasileiro pôs o monóculo e leu um bilhete pregado na porta com quatro tachas: Domingo, às 10 da manhã, depois da missa, vai à praça a quem mais der sobre a avaliação judicial de 500$000 réis esta casa, dízima a Deus, para partilhas. O Feliciano leu, retirou-se apressado para que o não vissem, murmurando quaisquer palavras a que o compadre Melro respondeu:

— Vossoria então está a ler! Tão certo tivesse eu o Céu como tenho a casa...

Feliciano seguiu para Prazins e o Melro disse aos fregueses da taverna que o seu compadre ia comprar a quinta da Comenda, e que estivera a ler o escrito da casa do Cambado que se vendia, e dissera que talvez a comprasse para a dar a um afilhado...

— Ao teu pequeno?! — perguntavam.

— Pois a quem há-de ser! Aquilo é que é um homem às direitas!

— Ele não sabe o que tem de seu. Tanto lhe monta dar-te a casa como a mim pagar-te um quarteirão de aguardente — encareceu uni pedreiro. — Anda agora a trabalhar no palácio da Retorta. Que riqueza! Parece um mosteiro. Pelos modos vai para lá viver logo que case com a Marta. Lá o mestre Zeferino rebenta que o leva os diabos! Isso diz que dá cada arranco...

— O Zeferino, a falar a verdade, tem razão — disse o Melro. — O Simeão tinha-lha prometido. Gente sem palavra que a leve o Diabo! Eu, se fosse comigo... Mas, enfim, é irmão do meu compadre... não devo dizer nada. Que se governem.

O Melro, às 8 da noite, quando os fregueses desalojaram, fechou a taverna; e, espreitando se os pequenos dormiam, disse à mulher:

— A casa do Cambado é nossa, mas é preciso vindimar o Zeferino...

— Credo! — exclamou a mulher com as mãos na cabeça. — Nossa Senhora nos acuda!

— Leva rumar! — e punha o dedo no nariz.

— Ó Joaquim, ó marido da minha alma, lembra-te dos três anos que penaste na cadeia! Olha para aqueles quatro filhos!..

— Já te disse que me não cantes — e relançava-lhe o seu formidável olhar vesgo incendido como os lampejos da candeia em que afogueava o cachimbo de pau. Depois, foi tirar de entre a cama de bancos e a parede uma velha clavina. Sentou-se à lareira e disse à mulher que tivesse mão na candeia. Enroscou o saca-trapo na ponta da vareta de ferro e descarregou a arma, tirando primeiro a bucha de musgo, e depois, voltando o cano, vazou o chumbo na palma da mão.

— Ó Joaquim, vê lá o que vais fazer! — insistia a mulher, limpando os olhos com a estopa da camisa. E ele, assobiando o hino da Maria da Fonte, despejava a pólvora da escorva, desaparafusava a culatra e tirava as duas braçadeiras. A mulher soluçava, e ele cantando numa surdina rouca:

Leva avante, portugueses,
Leva avante, e não temer...

— Pelas chagas de Nosso Senhor, lembra-te dos nossos pequenos.

E o Melro numa distracção lírica:

Pela santa liberdade,
Triunfar ou padecer...

Depois, bufava para dentro do cano e punha o dedo indicador no ouvido da culatra para sentir a pressão do sopro, que fazia um frémito áspero impedido pelas escórias nitrosas. Pediu à mulher umas febras de algodão em rama, enroscou-as numa agulha de albarda e escarafunchou o ouvido do cano.

— Está suja — disse ele — dá cá um todo-nada de aguardente.

— Joaquim, vamo-nos deitar, pelas almas. Não te desgraces!

— Traz aguardente e cala-te, já to disse, mulher, com dez diabos! — E pôs-se a assobiar a Luisinha. Enroscou algodão embebido em aguardente no saca-trapo e esfregou repetidas vezes o interior do cano até saírem brancas e secas as últimas farripas da zaracoteia. Soprou novamente e o ar saia sem estorvo pelo ouvido com um sibilo igual. Parecia satisfeito, e cantarolava, mezza voce:

Agora, agora, agora,
Luisinha, agora.

Armou a clavina, aparafusou as braçadeiras, a culatra e a fecharia, introduzindo a agulha. Aperrou e desfechou o cão repetidas vezes, acompanhando o movimento com o dedo polegar, paira certificar-se de que o desarmador, a caixeta e o fradete trabalhavam harmonicamente. Levantou o fuzil de aço, que fez um som rijo na mola, e friccionou-o com pólvora fina; e, com o bordo de um navalhão de cabo de chifre, lascou a aresta da pederneira que faiscava.

— Valha-me a Virgem! valha-me a Virgem! — soluçava a mulher. E ele, zangado com as lástimas da mulher, com expansão raivosa, num sfogato:

E viva a nossa rainha,
Luisinha
Que é uma linda capitoa...

— Vai à loja atrás da seira dos figos e traz o maço dos cartuchos e uma cabacinha de pólvora de escorvar que está ao canto.

A mulher dava-lhe as coisas, a tremer, e fazia invocações ao Bom Jesus de Braga, e às almas santas benditas. Ele encarou-a de esconso, e regougou:

— Mau!... mau!..

Carregou a. clavina com a pólvora de um cartucho; bateu com a coronha no sobrado, e deu algumas palmadas na recâmara para fazer descer a pólvora ao ouvido. Fez duas buchas do papel do cartucho, bateu-as com a vareta ligeiramente, uma sobre a pólvora e a outra sobre a bala.

Agora, a gora, agora,
Luisinha, agora.

Depois, pegou da clavina pela guarda-mata, e pôs-se a fazer pontarias vagamente, passeando um olho, com o outro fechado, desde a mira ao ponto.

A mulher fora sentar-se no sobrado, à beira da enxerga de três filhos a chorar; o mais novo esperneava, dava vagidos na cama a procurá-la. Ó Alma Negra fora dentro beber uns tragos de aguardente, voltou enroupado num capote de militar, despojo das batalhas da Maria da Fonte.

— Ora agora — disse ele — ouviste? porta da cozinha e a cancela da horta aberta, porque eu venho pelo lado do pinhal.

— Vai com Nossa Senhora — disse a mulher; e pôs-se de joelhos a una estampa do Bom Jesus a rezar muitos padre-nossos, a fio.

Era uma noite de Fevereiro, de névoa cerrada, um céu de carvão pulverizado em brumas molhadas, sem clareira onde lucilasse uma estrela. Não se agitava um galho de árvore nua movido pelo ar nem ondulava uma erva. Era a serenidade negra e imota das catacumbas. As vezes rugia nas folhas ensopadas de nebrina no chão esponjoso das carvalheiras a fuga rápida das hardas, dos toirões e das raposas que se avizinhavam do povoado a fariscarem as capoeiras. O Joaquim Melro estremecia e punha o dedo no gatilho. O restolhar de um gato-bravo, o pio da coruja no campanário distante punham arrepios de medo na espinha daquele homem que ia matar outro — chamá-lo à janela e vará-lo à traição com uma bala. — Era o traçado.

— Que raio de escuro! — dizia, esbarrando nos espinheiros perfurantes.

Em noites assim, o Universo seria o imenso vácuo precedente ao Fiat genesíaco, se os viandantes não esbarrassem com as árvores e não escorregassem nos silvedos das ribanceiras. O noctívago sente na sua individualidade, nos seus calos e no seu nariz, a doce impressão panteísta das árvores e dos calhaus. Que este globo está muito bem feito. Os transgressores do descanso que Deus estatuiu nas horas tenebrosas, os celerados das aldeias que larapeiam o presunto do vizinho, que fisgam a moça incauta ou empunham o trabuco homicida, se não temem encontrar as patrulhas cívicas das grandes municipalidades, encontram os troncos hostilmente nodosos das árvores que são as patrulhas de Deus. Alguns, porém, protegidos pelo Mefisto a quem venderam a alma pelo preço da consciência eleitoral, ou mais barata, chegam incólumes ao delito, passando ilesos como o lobo e o javali por entre os troncos das carvalheiras esmoitadas, hirtas, com os galhos a esbracejarem retorcidos numa agonia patibular.

O Melro, como o porco-montês e o lobo-cerval, embrenhara-se por pinhais e carvalheiras; às vezes, parava a orientar-se pelo cucuritar dos galos tresnoitados e latir dos cães. Ao fundo das bouças ladeirentas, rugia o rio Pele nos açudes das azenhas e nas guardas dos pontilhões. Lamelas era da parte de além. Mas o rio, de monte a monte, rugia intransitável nas pequenas pontes. Foi à de Landim, uma aldeia engravatada, onde ainda se avistavam clarões de luz nas vidraças das famílias distintas que jogavam a bisca em ricos saraus do faubourg Saint-Honoré, com uns deboches sardanapalescos de sueca a feijões.

Havia também um rumorejo de vozes que altercavam na taverna do Chasco. Tinia dinheiro lá dentro. Jogava-se o monte.

O Melro cuidou ouvir proferir o nome do Zeferino. Abeirou-se, pé ante pé, do postigo da taverna, e convenceu-se de que estava ali o pedreiro. Era ele quem reclamava um quartinho que pusera de porta, e o banqueiro recolhera com as paradas que estavam dentro, quando tirou a contrária de cara.

Que não admitia ladroeiras!

E o banqueiro desfeiteado observava-lhe que nada de chalaças a respeito de ladroeiras; que todos os que estavam daquela porta para dentro eram cavalheiros. O Zeferino replicava que não queria saber de cavalheiros; que queria o seu quartinho ou que se acabava ali o mundo. Que quem queria roubar que fosse para a Terra Negra.

A alusão era muito certeira e inconveniente. Estavam na roda dos cavalheiros alguns veteranos da antiga quadrilha do Faísca, na Terra Negra, muito desfalcada pelo degredo e pela força. Travou-se a luta a soco e pau; havia lampejos de navalhas que davam estalos nas molas; o Tagarro de Monte Córdova tinha feito afocinhar o banqueiro sobre os dois galhos do baralho com um murro hercúleo, fenomenal. O taverneiro abriu a porta para escoar o turbilhão. Eles saíram de roldão; e, quando entestaram com a treva exterior, quedaram-se cegos como num antro de caverna. Um, porém, dos que estavam, não saiu; encostara-se ao mostrador com as mãos no baixo ventre, gritando que o mataram; e, vergando sobre os joelhos, num escabujar angustioso, caiu de bruços, quando o taverneiro e o Tagarro o seguravam pelos sovacos. Era o Zeferino.

Quando, à meia-noite, o Alma Negra entrava em casa pela porta do quintal, encontrou a mulher ainda de joelhos diante da estampa do Bom Jesus do Monte. Ao lado dela estavam duas filhas a rezar também, a tiritar, embrulhadas numa manta esburacada, aquecendo as mãos com o bafo.

O Melro mandou deitar as filhas, e foi à loja contar à mulher, lívida e trémula, como o Zeferino morreu sem ele pôr para isso prego nem estopa. Ela pôs as mãos com transporte e disse que fora milagre do Bom Jesus; que estivera três horas de joelhos diante da sua divina imagem. O marido objectava contra o milagre — que o compadre não lhe dava a casa, visto que não fora ele quem vindimara o Zeferino; e a mulher — que levasse o demo a casa; que eles tinham vivido até então na choupana alugada e que o Bom Jesus os havia de ajudar.

Ao outro dia, o Joaquim Melro convenceu-se do milagre, quando o compadre, depois de lhe ouvir contar a morte do pedreiro, lhe disse:

— Enfim, você ganha a casa, compadre, porque mátava Zéférino, se os outros não matam ele, hem?