Chegára o dia de principiar a moagem.

Já de vespera tinham os negros andado em uma faina a varrer a casa no engenho, a lavar os cochos e as bicas, a arear, a polir as caldeiras e o alambique, com grandes gastos de limão e cinza.

Mal amanhecera entrou-se a ver no cannavial fronteiro uma fita estreita de emmurchecimento que augmentava, que avançava gradualmente no sentido da largura. Era o córte que começára. As roupas brancas de algodão, as saias azues das pretas, as camizas de baeta vermelha dos pretos punham notas vivas, picantes, naquelle oceano de verdura clara, agitado por lufadas de vento quente.

No casarão do engenho, varrido, aceado, quatro caldeiras e o alambique de cobre vermelho reverberavam polidos, reflectindo a luz que entrava pelas largas frestas. As fornalhas afundavam-se lobregas, escancarando as grandes bocas gulosas.

A agua, ainda presa na calha, espirrava pelas junctas da comporta sobre as linguas da roda, em filetes crystallinos. As moendas brilhavam limpas, e os eixos e endentações luziam negros de graxa. Compridos cochos e vasta resfriadeira abriam os bojos amplos, absorvendo a luz no pardo fosco da madeira muito lavada.

Ao longe, quasi indistincto a principio, mas progressivamente acentuado, fez-se ouvir um chiar agudo, continuo, monotono, irritante. Nuvens amarelladas de pó ergueram-se do caminho largo do cannavial. A crioulada reunida em frente ao engenho levantou uma gritaria infrene, tripudiando de jubilo.

Eram os primeiros carros de cannas que chegavam.

Arrastados pesadamente por morosos mas robustos bois de grandes aspas, avançavam os ronceiros vehiculos estalando, gemendo, sob a carga enorme de grossas e compridas cannas, riscadas de verde e roxo.

Carreiros negros, altos, espadaudos, cingidos na altura dos fins por um tirador de couro cru, estimulavam, dirigiam os ruminantes com longas aguilhadas, com brados estentoricos :

—Eia, Lavarinto ! Fasta, Ramalhete ! Ruma, Barroso !

Os carros entraram no compartimento das moendas. Negros ageis saltaram para cima delles, a descarregar. Em um momento empilharam-se as cannas, de pé, atadas em feixe com as proprias folhas.

Fez-se fogo na fornalha das caldeiras, abriu-se a comporta da calha, a agua despenhou-se em queda violenta sobre as linguas da roda, esta começou de mover-se, lenta a principio, depois accelerada.

Cortando os atilhos de um feixe a golpes rapidos de facão, o negro moedor entregou as primeiras cannas ao revolvêr dos cylindros. Ouviu-se um estalejar de fibras esmagadas, o bagaço vomitado picou de branco o desvão escuro em que gyravam as moendas, a garapa principiou a correr pela bica em jorro farto, verdejante. Após pequeno trajecto foi cahir no cocho grande, marulhosa, gorgolante, com grande espumarada resistente.

Os negros banqueiros, empunhando espumadeiras de compridos cabos, tomaram logar juncto ás caldeiras.

Levada por uma bica volante, a garapa encheu-os em um átimo. A fornalha esbrazeou-se, encandesceu, irradiando um calor doce por toda a vasta quadra. As espumadeiras destras atiravam ao ar em louras espadanas o melaço fumegante, que tornava a cahir nas caldeiras, refervendo aos gorgolões.

Dominava no ambiente aroma suave, sakkharino, cortado a espaços por uma lufada tepida de cheiro humano aspero, de catinga suffocante exhalada dos negros em suor.

O coronel gostava da lavoura de canna: vencendo o seu rheumatismo, passava os dias da moagem sentado em um banco de cabreuva, alto, largo, fixo entre duas janellas, a distancia razoavel das caldeiras. Dirigia o trabalho, tomando o ponto ao melaço em um tachinho de cobre muito limpo, muito areado, remechendo com uma pá o assucar na resfriadeira, quando este, tranvazado os reminhóes por uma bica volante especial, ahi parava, coalhando-se por cima em crosta amarella, quebradiça.

Lenita não sahia do engenho: tudo queria ella saber, de tudo se informava.

O coronel passava por verdadeiros interrogatorios—quaes os meses do plantio da canna; que tempo levava esta na terra até ficar prompta para o córte; quando e quantas vezes devia ser carpida; como se cortava; que era baixar, que era levantar o podão ; quaes os signaes de maturidade ; como se conhecia a canna passada ; que era carimar ; porque tinha menos viço e mais doçura a canna de terra safada ; como se plantavam as pontas.

Entrava em detalhes de lavoura, tomava notas : sabia que um alqueire agrario paulista tem cem braças cincoenta ; que a quarta parte dessa area, em relação á lavoura de cannas, chama-se quartel ; que um quartel de terra propria, em annos favoraveis, dá de quarenta a cincoenta carros de cannas ; que um carro de cannas boas produz cinco arrobas de assucar ; que o assucar sem barro, mascavo, faz mais conta em commercio do que o assucar com barro, alvo ; que o barro é supprido com vantagem pelo estrume bovino.

Subia ao tendal, contava as fôrmas, duas em cada pau ; computava o producto em assucar das quatro tarefas de cada dia ; calculava o que haviam de produzir, em aguardente, os residuos, a espuma, o mel ; avaliava a capacidade dos caixões, dos estanques, dos vasos de tanôa de grande arqueação ; punha-se ao facto dos preços ; comparava os do anno corrente com os dos nove annos anteriores do decennio ; generalisava, induzia, chegava a conclusões positivas sobre a renda do municipio em futuro proximo, dada mesmo a eliminação do factor servil.

O coronel admirava-a. Um dia disse-lhe:

—Com uma mulher como você é que eu devia ter casado. Pobre eu não sou, mas estaria podre de rico si a tivesse tido para minha administradeira desde os meus principios. Inda si eu tivesse um filho ou um neto da sua idade para se casar com você…

—Por fallar em filho, quando vem o seu que está em Paranápanema ? perguntou Lenita.

—Eu sei lá ?! Aquillo é um exquisitão, sempre foi. Mette-se com os livros e fica meses e meses sem sahir de casa, e até ás vezes sem sahir do quarto. De repente, vira-lhe a mareta, e lá se vai elle para o sertão, põe-se a caçar e adeus ! Não se lembra mais de nada.

—É casado, parece-me ter ouvido dizer.

—Desgraçadamente.

—Onde está a mulher ?

—Na terra della, em França.

—Com que, então, é franceza ?

—É, elle casou-se por extravagancia em Paris : no fim de um anno nem elle podia supportar a mulher, nem ella a elle. Separaram-se.

—Não sabia que seu filho tinha estado na Europa.

—Esteve, esteve lá dez annos : quando voltou até já fallava mal o Portuguez.

—Em que paizes esteve ?

—Um pouco em toda a parte : esteve na Italia, na Austria, na Allemanha, em França. Na Inglaterra foi que parou mais tempo : demorou-se lá, aprendendo com um typão que affirma que nós somos macacos.

—Darwin ?

—Exactamente.

—Então seu filho é homem muito instruido?

—É : falla umas poucas linguas, e conhece bastantes sciencias. Sabe até medicina.

—Deve ser muito agradavel a sua companhia.

—Ha occasiões em que é de facto, ha outras em que nem o diabo o pode aturar. Está então com uma cousa que elle chama em Inglez… um nome arrevesado.

Blue devils ?

—Ha de ser isso. Então você tambem pesca um pouco da lingua dos bifes ?

—Fallo Inglez soffrivelmente.

—Bem bom, quando Manduca vier e estiverem de veneta, temperarão lingua para matar o tempo.

—Estimarei muito ter occasião de praticar.

E Lenita dahi em diante pensou sempre, mesmo a seu pezar, nesse homem excentrico que, tendo vivido por largo espaço entre os esplendores do mundo antigo, a ouvir os corypheus da sciencia, a estudar de perto as mais subidas manifestações do espirito humano ; que, tendo desposado por amor, de certo, uma das primeiras mulheres do mundo, uma parisiense, se deixára vencer de tedio a ponto de se vir encafuar em uma fazenda remota do oeste da provincia de S. Paulo, e que, como si isso lhe não bastasse, lá se ia para o sertão desconhecido a caçar animaes ferozes, a conviver com bugres bravos.

Sabia que era homem de quarenta e tantos annos, pouco mais moço do que lhe morrera o pae. Figurava-o em uma virilidade robusta que, si já não era mocidade, ainda não era velhice ; emprestava-lhe uma plastica fortissima, athletica, a do torso do Belvedere ; dava-lhe uns olhos negros imperiosos, profundos, dominadores. Anciava por que lhe chegasse a noticia de que elle vinha vindo, de que já tinha pedido os animaes para transportar-se da estação á fazenda.

E continuava na sua alegria progressiva : a saudade do pae já não era dolorosa, era apenas melankolica.

Bebia garapa, mas preferia-a picada. Gostava muito de chupar cannas : que era melhor do que garapa, dizia ; que a canna descascada, torneada a canivete, triturada pelos dentes tinha um frescor, uma doçura especial, que o esmagamento pelas moendas lhe tirava.

Detestava o furú-furú, mas em compensação adorava o ponto, o puxa-puxa. Quando o melaço começava na resfriadeira a engrossar, a cobrir-se de espuma amarella, ella corria-lhe o indice da mão direita pela superficie quente, tirava uma dedada grande, lambia-a com prazer, dando estalinhos com a bocca, fechando os olhos. Um dia um preto que tinha a seu cargo guiar a carroça de bagaço para o bagaceiro, e que trazia ao pé esquerdo uma grande pêga de ferro, fallou-lhe :

—Sinhá, olhe como está esta perna ; está toda ferida. Ferro pesa muito, falle com sinhô para tirar.

E mostrava o tornozello ulcerado pela pêga, fetido, invôlto em trapos muito sujos.

—Mas, que fez você para estar soffrendo isto?

—Peccado, sinhá, fugi.

—Era maltratado, estava com medo de apanhar ?

—Nada, sinhá : negro é mesmo bicho ruim, ás vezes perde a cabeça.

—Si você me promette não fugir mais, eu vou pedir ao coronel que mande tirar o ferro.

—Promette, sinhá: negro promette, palavra de Deus ! Deixa estar, S. Benedicto hade dar a sinhá um marido bonito como sinhá mesmo.

E deu uma grande risada alvar.

Lenita gostou do bom desejo, e do cumprimento, sorriu-se.

De tarde fallou ao coronel—que aquillo não tinha razão de ser, que era uma barbaridade, uma vergonha, uma cousa sem nome, que mandasse tirar o ferro.

—Ai, filha ! você não entende deste riscado. Qual barbaridade, nem qual carapuça ! Neste mundo não existe cousa alguma sem sua razão de ser. Estas philantropias, estas jeremiadas modernas de abolição, de não sei que diabo de igualdade, são patranhas, são cantigas. É chover no molhado—preto precisa de couro e ferro como precisa de angú e baeta. Havemos de ver no que hade parar a lavoura quando esta gente não tiver no eito, a tirar-lhe as cocegas, uma boa guasca na ponta de um pau, manobrada por um feitor destorcido. Não é porque eu seja maligno que digo e faço estas cousas ; eu até tenho fama de bom. É que sou lavrador, e sei o nome aos bois. Emfim você pede, eu vou mandar tirar o ferro. Mas são favas contadas—ferro tirado, preto no matto.

A moagem continuava, o cannavial se ia convertendo em palhaça : á verdura clara, viva succedia um pardo fosco, sujo, muito triste. O vento esfregava as folhas mortas, resequidas, arrancando dellas um som aspero de attrito, estalado, metallico, irritantissimo.

O bagaceiro crescia, avultava : na brancura esverdinhada punham notas escuras os suinos, bovinos e muares que ahi passavam o dia, mastigando, mascando, esmoendo. De repente armava-se uma grande briga ; ouviam-se grunhidos agudos, mugidos roucos, orneios feros. Uma dentada obliqua, um guampaço, uma parelha de couces tinha dado ganho de causa ao mais forte.

O odor suave do primeiro ferver da garapa no começo da moagem se accentuára em um cheiro forte, entontecedor, de assucar cozido, de sakkharose fermentada, que se fazia sentir a mais de um quarto de legua de distancia.