Os negros "cambindas" do Rio guardam com terror a história de um branco que lhes apareceu certa vez em pleno sertão africano. Quando o rei deu por ele, que por ali vinha calmo, com as suas barbas de sol, precipitou-se mais a tribo em atitude feroz. O branco tirou da cinta um pequeno feitiço de metal e prostrou morto, golfando sangue, o babaláo.
- Exu! Exu! ganiu a tribo, recuando de chofre.
- Quem és tu, santo que eu não conheço? perguntou trêmulo o poderoso rei.
- Sou o que pode tudo, bradou o branco. Vê.
Estendeu a mão de novo e matou outros negros.
- Só te deixarei em paz se me mostrares todos os teus feitiços.
Sua Majestade, apavorada, levou-o à tenda real e durante o dia e durante a noite, sem parar, lhe deu tudo quanto sabia.
- Perdôo-te, disse o branco. Adeus! Levo para o mistério a rainha.
Aconchegou o feitiço, que parecia egum, o deus da guerra, no seio da preferida, deixou-a cair, e partiu devagar pela estrada a fora...
Não precisei dos meios violentos do Caramuru da África, para saber do mais terrível mistério da religião dos minas: - o egum ou evocação das almas. Naquela mesma noite em que encontrara Antônio, o negro serviçal levou-me a uma casa nas imediações da praia de Santa Luzia.
- Em tudo é preciso mistério, dizia ele. V. S. vai à casa do babaloxá, finge acreditar e depois é convidado para uma cerimônia na casa das almas. Poderá então ver o segredo da pantomima. Quem descobre o segredo do egum, morre. Eu me arrisco a morrer.
A sua voz era trêmula.
- Tens medo?
- Não, mas se morrer amanhã, todos os feiticeiros dirão que foi o feitiço. Do egum depende toda a traficância. O negro parou. Não imagina! Abubáca Caolho, que mora na rua do Resende, é um dos tais. Quando há uma morte, vai logo dizer que foi quem a fez. Se fôssemos acreditar nas suas mentiras, Abubáca tinha mais mortes no costado que cabelos na cabeça. V. S. já o viu. É um negro que usa gravata do lado e pontas - as roupas velhas dos outros... Apotijá é outro.
- Mas há desse gênero de morte, Antônio? indaguei eu acendendo o cigarro com um gesto shakespereano.
- Ora se há! Vou provar quando quiser. De morte misteriosa lembro a Maria Rosa Duarte, sogra do mama Pão Baltazar, alufá muito amigo de um político conhecido; o Salvador Tapa, a Esperança Laninia, Larê-quê, Fantuchê, o Jorge da rua do Estácio, Ougu-olusaim... Todos morreram por ter descoberto o egum. Na Bahia, então, esses assassinatos são comuns. Hei de lembrar sempre o velho feiticeiro Aguidi, coitado! Era dos que sabem. Um dia, farto de viver, descobriu a traficância e logo depois morria no incêndio do Tabão, com os braços cruzados, impassível e a sorrir. Aguidi na minha língua significa: - o que quer morrer... Ele quis.
Pela praia de Santa Luzia o luar escorria silenciosamente, e de leve o vento, sacudindo as folhas das árvores em melancólico sussurro, entristecia Antônio.
- Ah! meu senhor. Não é só por causa do egum que negro mata. Quando as iauô não andam direito, quando não fingem bem, quase nunca escapam de morrer. Há vários processos de morte, a morte lenta, com beberagens e feitiços diretos, a morte na camarinha por sufocação... Muitos negros apertam uma veia que a gente tem no pescoço e dentro de um minuto qualquer pessoa está morta. Outros dependuram as criaturas e elas ficam bracejando no ar com os olhos arregalados.
A Morte e a Loucura nem sempre se limitam ao estreito meio dos negros. As beberagens e o pavor atuam suficientemente nas pessoas que os freqüentam. A Assiata, uma negra baixa, fula e presunçosa, moradora à rua da Alfândega, dizem os da sua roda que pôs doida na Tijuca uma senhora distinta, dando-lhe misturadas para certa moléstia do útero. Apotijá, o malandro da rua do Hospício, que aproveita os momentos de ócio para descompor o Brasil, tem também uma vastíssima coleção de casos sinistros.
A Morte e todas as vesânias não são apenas os sustentáculos dos seus ritos e das suas transações religiosas, são também o meio de vida extra-cultual, o processo de apanhar heranças. Alikali, lemamo atual dos alufás, e Amando Ginja, cujo nome real é Fortunato Machado, quando morre negro rico vão logo à polícia participar que não deixou herdeiros. Alikali é testamenteiro de quase todos e bicho capaz de fazer amuré com as negras velhas, só para lhes ficar com as casas. A certidão de óbito é dada sem muitas observações.
- Mas, você conhece mais feiticeiros, Antônio?
- Pois não! O João Mussê, alufá feiticeiro tremendo, que mora na rua Senhor dos Passos, 222 e é respeitado por todos; Obalei-ié, Obio Jamin, Ochu-Toqui, Ochu-Bumin, Emin-Ochun, Oumigi, Obitaiô-homem, Obitaiô-mulher, Ochu Taiodé, a Ochu-boheió, da rua do Catete, Siê, Xangô-Logreti, Ajagum-baru, Eçu-hemin, Angelina, o ogan Conrado... Mais de cem feiticeiros, mais cem.
- Quase todos com os nomes dos santos...
- Os negros usam sempre o nome do santo que têm no corpo...
Mas de repente Antônio parou entre as árvores.
- Temos ebó de iê-man-já. A negralhada vem ..... Se quer ver, esconda-se detrás de algum tronco.
Com efeito, sentiam-se vozes surdas ao longe, cantando.
O despacho, ou ebó, da mãe-d'Água salgada, é um alguidar com pentes, alfinetes, agulhas, pedaços de seda, dedais, perfumes, linhas, tudo o que é feminino.
Detrás da árvore, pouco depois eu vi aparecer no plenilúnio a teoria dos pretos. À frente vinha uma com o alguidar na cabeça, e cantavam baixo.
Baô de ré se equi je-man-já
Pelé bé Apotá auo yo tô toro fym la cho
Ere...
Era o ofertório. Ao chegar à praia, na parte em que há uns rochedos, a negra desceu, depositou o alguidar. Uma onda mais forte veio, bateu, virou o vaso de barro, quebrou-o, levou as linhas e todos balbuciaram, rojando:
- Iê-man- já!
A santa aparecera na fosforescência lunar, agradecendo...
Depois os sacerdotes ergueram-se, reuniram e nós ficamos de novo sós, enquanto o oceano rugia e, ao longe, tristemente a canzoada ladrava.
- Ainda apanhamos o candomblé, disse Antônio. É preciso que o babaloxá convide V. S. para o egum...
Noutro dia, pouco mais ou menos à meia-noite, estávamos no ilê-saim ou casa das almas.
O egum é uma cerimônia quase pública, a que os feiticeiros convidam certos brancos para presenciar a pantomima do seu extraordinário poder. Esses curiosos fetiches, que para fazer o guincho de santo Ossaim amarram nas pernas bonecas de borracha, com assobio; cujos santos são uni produto de bebedeiras e de hipnose, têm na evocação dos espíritos a máxima encenação da sua força sobre o invisível. Quando morre alguém, quando todos estão diante do corpo, um dos pretos esconde-se e dá um grito. No meio da confusão geral, então, mudando a voz, esse negro grita:
- Emim, toculoni mopé, cá-um-pé, emim! Eu que morri hoje, quero que chamem por mim.
Os donos do defunto arranjam o dinheiro para a evocação, pessoas estranhas ajudam também com a sua quota para aproveitar e saber do futuro. O babaloxá não faz o egum enquanto não tem pelo menos trezentos mil réis. Arranjada a quantia, começa a cerimônia.
Quando entramos na sala das almas, à luz fumarenta dos candeeiros a cena era estranha. Havia brancas, meretrizes de grandes rodelas de carmim nas faces, mulatas em camisa, mostrando os braços com desenhos e iniciais em azul dos proprietários do seu amor, e negros, muitos negros. Estes últimos, sentados em roda do assoalho, estavam quase nus, e algumas negras mesmo inteiramente nuas com os seios pendentes e a carapinha cheia de banha.
- Por que estão eles assim?
- Para mais facilmente receber o espírito.
Junto à porta do fundo, três negros de vara em punho quedavam-se estáticos. Eram os annichans, que faziam guarda ao saluin ou quarto-dos-espíritos. Ouvi dentro do saluin um barulho de pratos, de copos tocados, de garrafas desarrolhadas; um momento pareceu-me ouvir até o estouro forte do champanha barato.
- Há gente lá dentro?
- As almas. Está-se banqueteando. O banquete foi pago pelos presentes. Mas, psiu! Daqui a pouco começarão as cantigas, que ninguém compreende. Os africanos inventam nomes para a cena parecer mais fantástica.
Com efeito, minutos depois, aos primeiros sons dos atabaques, as negras bradaram:
- Aluá! o espírito! e romperam uma cantiga assustadora e trôpega.
Anu-ha, a o ry au od á
San-ná-elê-o ou baba
Locá-aló
A porta continuava fechada, mas eu vi surgir de repente um negro vestido de dominó com os pés amarrados em panos. Os três annichans ergueram as varas, o dominó macabro começou a bater a sua no chão, os xeguedês sacudiram-se, e outra cantiga estalou medrosa:
Lou-â gége ou-rou ó uá
Xó la-ry la-ry lary
Que què oura ô uchô
La-ry la mamau rú nam babá
Quando o santo aos pulos aproximava-se de alguma mulher, ela recuava bradando com desespero:
- Afapão!
- Vão aparecer as almas, avisou Antônio, a cantiga diz: Procuramos a alma de Fulano e de Sicrano e não a encontramos dormindo. Cansamos sem saber o mistério que a envolvia. A alma está aqui e entrou pela porta do quintal.
- Mas quem é este dominó?
- É Baba-Egum. As almas têm vários cargos. O que traz uma gamela chama-se Ala-té-orum, o 2.º Opocó-echi, o 3.º Eguninhansan, e no meio de sete espíritos aparece o invocado.
Entretanto o dominó Baba-Egum batia furiosamente no chão com a sua vara de marmelo, e no alarido aumentado apareceu aos pulos outro dominó, o Alabá, que por sua vez também se pôs a bater. Era o ritual da entrega das almas. Por fim apareceu Ousaim, enfiado numa fantasia de bebê, de xadrez variado, com duas máscaras: uma nas costas, outra tapando o rosto.
- Quem é esse?
- O Bonifácio da Piedade, um malandro de cavaignac, que faz sempre de Eruosaim.
Eruosaim também dançava. Entre as cantigas, os annichans ergueram de novo as varas, a porta abriu-se, dois negros ficaram um de cada lado, o atafim, ou confidente, e o anuxam, secreta. De dentro saíram mais três dominós cheios de figas e espelhinhos, com os pés embrulhados nos trapos. As negras aterrorizadas uivavam, com o amarelo dos olhos virados e os espíritos, naquela algazarra, pareciam cambalear. Havia gente porém que os reconhecia.
- Eles fingem os gestos dos mortos, segredou-me Antônio. Palmas ressoavam estridentes saudando a chegada do invisível, as varas de marmelo lanhavam o ar e as almas, e naquele círculo silvante, ao som dos xeguedés e dos atabaques batiam surdamente no chão aos pulos da dança demoníaca.
Um dos espíritos, porém, sentiu-se numa espécie de trono de mágica. Como por encanto a dança cessou e naquela pávida atmosfera, em que o medo gemia, as mulheres de borco, os homens contorsionados, o negro fantasiado guinchou do alto.
- Guilhermina ocê percisa gostá de Antônio... José tem que fazê ebô para espírito mau.
Chica, um home há de vi aí, ocê vai com ele...
- Veja V. S. a chantage, murmurou Antônio. Os negros recebem dinheiro antes dos homens e obrigam as criaturas pelo terror a tudo quanto quiserem. Por isso quem descobre o egum, morre.
A Chica, uma mulatinha, coitada! tremia convulsivamente, mas já outras, nuas, em camisa, sacudindo os membros lassos, ganiam de longe, batendo as varas num terror exaustivo.
- E eu? e eu?
- E eu? e eu?
- Ocê tá dereita, sua vida vai pr'a frente.
- E eu? e eu? gargolejaram outras bocas em estertores.
- Ocê está pra traz, percisa ebô.
Aproximei-me de um dos espíritos; cheirava a espírito de vinho; estava literalmente bêbedo.
Quando a cerimônia atingia ao desvario e já os espíritos tinham pastosidade na voz, caiu na sala, como um bedengó, Inhansam, um negro fingindo de santo materializado e, em meio do pavor geral, ao som das cantigas, esticou a mão sinistra, foi pedindo a cada criatura 16 obis, 16 orobôs, 16 galos, 16 galinhas, 16 pimentas-de-costa, 16 mil réis, um cabrito, um carneiro. Ao chegar às meretrizes brancas, Inhansam ferozmente exigia peças de chita, fazendas e objetos caros. A turba gritava toda: Inhansam! Inhansam! gente nova entrava na sala, e de repente, como todos se voltassem a um grito da porta, os espíritos desapareceram... Tinham fugido tranqüilamente pelo corredor.
- Está acabado, fez Antônio. Os espíritos vão se despir, e voltam daí a pouco para ver se o pessoal acreditou mesmo...
A cena mudara entretanto. Dissipado o sudário apavorado, todas aquelas carnes hiperestizadas erguiam-se ainda vibrantes para a bacanal.
O álcool e a queda na realidade estabeleciam o desejo. Negros arrastavam-se para quintal, para os cantos, longos sorrisos lúbricos abriam em bocejos as bocas espumantes, risinhos rebentavam e negros fortes, estendidos no chão, rolavam as cabeças numa sede de gozo.
Há entre as negras uma propensão sinistra para o tribadismo. Em pouco, naquela casinhola suja e mal-cheirosa, eu via como uma caricatura horrenda as cenas de deboche dos romances históricos em moda. Mais dois negros entraram.
- Então egum esteve bom?
- E eu que não cheguei em tempo...
- Veja, mostrou Antônio, lá está o Bonifácio Eruosaim, vendo se causou efeito fantasiado de bebê. Venha até o quarto do banquete.
Fomos. Antônio empurrou uma porta e logo nos achamos numa sala com garrafas pelo chão, pratos servidos, copos entornados, rolhas, os destroços de uma fome voraz. Num canto a Chica dizia baixinho para um lindo rapaz de calças bombachas:
- É você que o espírito disse?...
Quando reaparecemos o babaloxá murmurava:
- A festa está acabada, companheiros... É não deixar de trazer o que Inhansam pediu.
Saímos então. Vinha pelo céu raiando a manhã. Palidamente, na calote cor de pérola, as estrelas tremiam e desmaiavam. Antônio cambaleava. Chamei um carro que passava, meti-o dentro. Em torno tudo dizia o mistério e a incompreensão humana, o éter puro, os vagalhões do mar, as árvores calmas. Tinha a cabeça oca, e, apesar dos assassinatos, dos roubos, da loucura, das evocações sinistras, vinha da casa das almas julgando babalaôs, babaloxás, mães-de-santo e feiticeiros os arquitetos de uma religião completa. Que fazem esses negros mais do que fizeram todas as religiões conhecidas?
O culto precisa de mentiras e de dinheiro. Todos os cultos mentem e absorvem dinheiro. Os que nos desvendaram os segredos e a maquinação morreram. Os africanos também matam.
E eu, perdoando o crime desse sacerdócio mina, que se impõe e vive regaladamente, tive vontade de ir entregar Antônio negro e a dormir à casa de Ojô, para que nunca mais desvendasse a ninguém o sinistro segredo da casa das almas.