XV


E agora, entre roseiras que rebentam, e vinhas que se vindimam, já cinco annos passaram sobre Tormes e a Serra. O meu Principe já não é o ultimo Jacintho, Jacintho ponto final — por que n’aquelle solar que decahira, correm agora, com soberba vida, uma gorda e vermelha Theresinha, minha afilhada, e um Jacinthinho, senhor muito da minha amisade. E, pae de familia, principiára a fazer-se monotono, pela perfeição da belleza moral, aquelle homem tão pittoresco pela inquietação philosophica, e pelos variados tormentos da phantasia insaciada. Quando elle agora, bom sabedor das cousas da lavoura, percorria comigo a quinta, em solidas palestras agricolas, prudentes e sem chimeras — eu quasi lamentava esse outro Jacintho que colhia uma theoria em cada ramo d’arvore, e riscando o ar com a bengala, planeava queijeiras de cristal e porcellana, para fabricar queijinhos que custariam duzentos mil réis cada um!

Tambem a paternidade lhe despertára a responsabilidade. Jacintho possuia agora um caderno de contas, ainda pequeno, rabiscado a lapis, com falhas, e papeluchos soltos entremeados, mas onde as suas despezas, as suas rendas se alinhavam, como duas hostes disciplinadas. Visitára já as suas propriedades de Montemór, da Beira; e concertava, mobilava as velhas casas d’essas propriedades para que os seus filhos, mais tarde, crescidos, encontrassem «ninhos feitos». Mas onde eu reconheci que definitivamente um perfeito e ditoso equilibrio se estabelecera na alma do meu Principe, foi quando elle, já sabido d’aquelle primeiro e ardente fanatismo da Simplicidade — entreabrio a porta de Tormes á Civilisação. Dous mezes antes de nascer a Theresinha, uma tarde, entrou pela avenida de platanos uma chiante e longa fila de carros, requisitados por toda a freguesia, e acuculados de caixotes. Eram os famosos caixotes, por tanto tempo encalhados em Alba de Tormes, e que chegavam, para despejar a Cidade sobre a Serra. Eu pensei: — Mau! o meu pobre Jacintho teve uma recahida! Mas os confortos mais complicados, que continha aquella caixotaria temerosa, foram, com surpreza minha, desviados para os sotãos immensos, para o pó da inutilidade: e o velho solar apenas se regalou com alguns tapetes sobre os seus soalhos, cortinas pelas janellas desabrigadas, e fundas poltronas, fundos sofás, para que os repousos, por que elle suspirára, fossem mais lentos e suaves. Attribui esta moderação a minha prima Joanninha, que amava Tormes na sua nudez rude. Ella jurou que assim o ordenára o seu Jacintho. Mas, decorridas semanas, tremi. Apparecera, vindo de Lisboa, um contra-mestre, com operarios, e mais caixotes, para installar um telephone!

— Um telephone, em Tormes, Jacintho?

O meu Principe explicou, com humildade:

— Para casa de meu sogro!... Bem vês.

— Era rasoavel e carinhoso. O telephone porém, subtilmente, mudamente, estendeu outro longo fio, para Valverde. E Jacintho, alargando os braços, quasi supplicante:

— Para casa do medico. Comprehendes...

Era prudente. Mas, certa manhã, em Guiães, accordei aos berros da tia Vicencia! Um homem chegára, mysterioso, com outros homens, trazendo arame, para installar na nossa casa o novo invento. Soceguei a tia Vicencia, jurando que essa machina nem fazia barulho, nem trazia doenças, nem attrahia as trovoadas. Mas corri a Tormes. Jacintho sorrio, encolhendo os hombros:

— Que queres? Em Guiães está o boticario, está o carniceiro... E, depois, estás tu!

Era fraternal. Todavia pensei: Estamos perdidos! Dentro d’um mez temos a pobre Joanna a apertar o vestido por meio d’uma machina! Pois não! o Progresso, que, á intimação de Jacintho, subira a Tormes a estabelecer aquella sua maravilha, pensando talvez que conquistára mais um reino para desfear, desceu, silenciosamente, desilludido, e não avistamos mais sobre a serra a sua hirta sombra côr de ferro e de fuligem. Então comprehendi que, verdadeiramente, na alma de Jacintho se estabelecera o equilibrio da vida, e com elle a Gran-Ventura, de que tanto tempo elle fôra o principe sem Principado. E uma tarde, no pomar, encontrando o nosso velho Grillo, agora reconciliado com a serra, desde que a serra lhe dera meninos para trazer ás cavalleiras, observei ao digno preto, que lia o seu Figaro, armado de immensos oculos redondos:

— Pois, Grillo, agora realmente bem podemos dizer que o Snr. D. Jacintho está firme.

O Grillo arredou os oculos para a testa, e levantando para o ar os cinco dedos em curva como petalas d’uma tulipa:.

— S. ex.a brotou!

Profundo sempre o digno preto! Sim! Aquelle resequido galho de Cidade, plantado na serra, pegára, chupára o humus do torrão herdado, creára seiva, afundára raizes, engrossára de tronco, atirára ramos, rebentára em flôres, forte, sereno, ditoso, benefico, nobre, dando fructos, derramando sombra. E abrigados pela grande arvore, e por ella nutridos, cem casaes em redor a bemdiziam.