Canto 1°
 
Venturosos aqueles, sim aqueles,
que a vista levantando a toda parte,
vêem os grossos chuveiros, vêem as ondas,
as ondas furiosas que se espraiam,
que inundam as campinas, que submergem
as serras levantadas; que não poupam,
que não respeitam nada: mas divisam
uma arca mais extensa, e mais segura
que foi a de Noé, em que se metam,
e suas vielas salvem, bem que a onda,
umas vezes descendo, outras subindo,
umas vezes os leve ao baixo fundo
que tem o mar cavado, e outras vezes
sobre si os levante, até que cuidem
que sobem a tocar nos próprios astros.
Venturosos aqueles que descobrem
esta arca salvadora, mui distante
das terras em que vivem: mas que podem
gozar do seu amparo, apenas queiram
para ela encaminhar ligeiros passos:
mas inda mais ditosos os aflitos,
que querendo salvar-se de um naufrágio,
que sobre erguidas serras já se espraia,
sem largas diligências, sem fadigas
a podem encontrar em toda parte:
em qualquer parte sim, aonde estejam,
e levantem aos céus, que a todos ouvem,
 




 
que te ergueram em Chipre, mais em Pafos;
sobre as infames piras, onde o filho
as chamas devorantes ascendia
com o vento da boca, e mais das asas.
Ainda isto, que disse, é tudo pouco:
queimei o coração, que é mais que tudo,
e dei ao pé de ti suspiros tantos,
tão fortes, tão ardentes, que puderam
fazer incendiar os frescos ares.
Quantas vezes a mãe do cego infame
vendo tantos extremos, invejosa
só para não os ver, voltou a cara?
Quantas vezes se irou com o seu filho
porque era disto a causa, e lhe pedia
que a sua honra vingasse, e me ferisse
com outra penetrante, oposta farpa?
Quantas vezes o filho por mostrar-lhe
a falsa submissão lho prometia,
e depois de voltar à mãe as costas
a todas as promessas lhe faltava?
Verti sangue, verti; queimei as reses.
Provera o pio céu que o não vertesse,
provera o pio céu que as não queimasse!
Ah como estou diverso! Muitas vezes
depois da feia noite tormentosa
aparece a manhã serena, e limpa,
seguida por um sol ardente, e claro.
Muitas vezes aquele que se via
já quase moribundo, vê seu corpo
vigoroso, e robusto, e só por isso
que morto se julgava, e que reputa
a vida, e a saúde um bem celeste
que não tem outra dita a quem se iguale.
Venturoso daquele, que já pode
 




 
Canto 3º
 
A protetora Palas, que não pode
sofrer a corrupção dos Portugueses,
a quem pelo valor, que ousados mostram,
como um povo de heróis estima e preza.
Esta Deusa propícia receando
o encontro segundo que ajustaram
com as ninfas de Vênus, que só buscam
nos peitos acender-lhes vivas chamas,
a fim de que se esqueçam de vitórias,
de tesoiros, conquistas, e de palmas,
que são os bem sublimes, por que sempre
os peitos Portugueses se abrasaram.
Esta Deusa que sabe que um veneno,
bem que ele seja fraco, repetido
por diversas porções, inficiona
o sangue pouco a pouco até que mata:
intenta socorrer os Portugueses
com empenho tão forte, que cogita
quando isto necessário, defendê-los
lutando com a mesma Deusa Vênus,
que perdê-los intenta, braço a braço.
Quanto tem de formosa a sã virtude!
que até quando se esfria ainda encontra
no peito protetor o forte amparo
dirigido a que as forças já perdidas
de novo se restaurem, ou que ao menos
essas pequenas forças que inda restam
com repetidas quedas não se acabem.
 
Apenas viu a Deusa que os guerreiros
alegres se aprontavam por que fossem
à vizinha cidade atrás do encanto
e fingidos prazeres que esperavam.
Ela muda o seu rosto, e muda o traje;
toma o traje modesto, mais o rosto
de um seu próprio ministro douto, e grave,
que os expostos guerreiros acompanha.
 
Mal mudou o semblante foi meter-se
no meio dos já prontos navegantes.
O semblante carrega, e apenas fita
nos seus rostos a vista assim lhes fala.
Que é isto, Portugueses? Vós correndo
aos prazeres de Amor? A uns prazeres
que afrouxam dos heróis as fortes almas?
que voltam os leões, e mais os tigres
numas pombas cobardes, que não podem
fazer outro serviço que não seja
o conduzir da mãe o torpe carro?
Quem entrega os seus braços às cadeias
que lhe bota a beleza inerme e fraca
pode ter a constância que é precisa
para se expor aos riscos de um combate?
Para ver junto aos muros altos montes
de corpos inda quentes palpitando,
de amigos, e parentes; uns vertendo
aos borbotões o sangue; outros sujos
de negro pó a dar finais arrancos,
sem que feche de horror os olhos turvos?
Sem que volte também ao sítio a cara?
 
Pois isto, Portugueses, inda é pouco?
Terá, terá valor, terá virtude,
para correr ao muro, e sobre o corpo
até do próprio pai firmar a escada?
Subir, e já disposto a que não deve
deixar os seus degraus, sem que consiga
o muro cavalgar, ou sem que dele
precipitado caia, dando aflito
o último suspiro sobre os ares?
Os jardins, Portugueses, só produzem
as flores sem valia. O loiro, a palma
que servem para insígnias do heroísmo
só se cortam nos sítios que se regam
com rios de suor, e mais de sangue.
 
Enquanto a Protetora assim dizia
os fortes portugueses increpados
se olhavam confundidos, e as rosetas
que a vergonha levanta lhes subiam
sobre as modestas faces: então Palas
que via estes efeitos da virtude
que estava adormecida, conhecendo
que ainda as suas vozes poderiam
ter forças de cautério que avivassem
os brios outra vez das frouxas almas,
fitando com mais força a vista neles
reforça, e continua desta sorte
a interrompida fala. Portugueses:
Cupido fez de Aquiles zombaria
fazendo com que Aquiles se assentasse
no estrado das belezas, que o cercavam?
que despindo o arnês vestisse a saia?
que pusesse à cintura a roca indigna
tirando da cintura a mesma espada
e vós, Portugueses (com que custo
este nome vos dou), vós, Portugueses,
julgais que podereis chegar às chamas
sem que elas vos abrasem? Por ventura
vós sois melhores do que foi Aquiles?
Tendes almas mais fortes? Sois mais sábios?
Os vossos Patriotas, que inda existem,
Portugueses no nome, e mais nas obras,
estarão combatendo os inimigos
vertendo o ilustre sangue, e vós, Lusos,
gastais o vosso tempo a enfeitar-vos
para ir, quais Narcisos, às campanhas
de Vênus, e Cupido? Estareis surdos?
Estareis insensíveis? Não vos movem
as vozes dos amigos, e parentes
que ao socorro vos chamam? Portugueses,
para gozar deleites, para estardes
nos braços das belezas, carecíeis
cortar os tormentosos, verdes mares?
Não há também belezas em Lisboa?
Não tem, não tem recreios vossa pátria?
O valor, Portugueses, não se alcança
por serem nossos membros só nutridos
com nervos de serpentes, e tutanos
dos ursos, e dos tigres: quem pretende
ter valor, e virtude é necessário
ganhar essa virtude e valentia
por meios concernentes: sim, ó Lusos,
não deve obrar ação sem que primeiro
a sua ação conheça, e sem que faça
nas leves conseqüências que ter pode
maduras reflexões em tudo sábias,
abrindo o coração a quanto pode
a virtude excitar: fechando o peito
a tudo quanto pode corromper-lhe
os são desejos que residem n'alma.
Enquanto a protetora discorria
desta maneira forte, os Portugueses,
pondo no chão os olhos, não diziam
unia palavra só, e muitas vezes
sentidos suspiravam, forcejando
por que a sábia Deusa não sentisse
os ardentes suspiros que eles davam.
 
A Deusa, que isto observa, continua
desta sorte o discurso. Portugueses,
se quereis ir aos brincos tão impróprios
do guerreiro caráter, ide embora:
porém debaixo ao menos de um disfarce.
Imitai, imitai o bravo Aquiles,
depondo os ferros, e vestindo as saias.
Eu irei procurar os bons patrícios,
eu assim lhes direi... Valentes Lusos,
não olheis para a barra. Os companheiros
ficarão engolfados nos prazeres
próprios das frouxas almas. Ide à guerra.
Combatei os guerreiros que vos chamam,
fiai-vos no valor dos próprios braços:
vencereis, e tereis a glória toda,
que os vossos patriotas não pretendem
entrar na partição das vossas palmas.
Repartiu-se a campanha: a vós pertence
soldados combater, soldados homens,
inimigos da pátria: a eles toca
os peitos combater de inermes damas.
E de damas vencidas, sim daquelas
que buscam nas vitórias os remédios
que lhes curem do peito as vivas chagas.
Uma vitória destas, bem que fosse
na verdade vitória, só faria
ao peito generoso muito infame.
Quando a honra tivermos de dobrarmos
ante o trono os joelhos, mostraremos
ao nosso Augusto os peitos; porém como.
Os nossos peitos nus, cobertos todos
de feridas honradas; e os seus peitos
cobertos com as fardas nunca rotas
e de mimosas flores enfeitadas.
Fujamos, Portugueses. deste Porto,
que é um porto empestado: sim fujamos.
Não queirais que correndo atrás da glória,
só venhamos buscar a nossa infâmia.
 
Apenas isto disse, a Deusa os cobre
com seu brilhante escudo, que trazia
sem que os guerreiros vissem, no robusto,
no firme esquerdo braço. Neste instante
os tentados guerreiros recuperam
o seu quebrado esforço, qual a planta
abatida do sol, que mal recebe
os orvalhos que nutrem, se levanta:
ou qual vergôntea nova, que se inclina
à violência do peso, e apenas sente
o peso de si fora, já se move,
de novo se apruma sobre os ares.
 
A Deusa, que lhes nota o novo alento,
o seu semblante alegra, e já risonha
lhes fala desta sorte. Portugueses,
a virtude dos homens é sujeita
a despenhar-se em faltas. O sol mesmo
não brilha sempre igual: as suas luzes
que são no meio-dia tão intensas,
quando nasce, e se põe, já são mais fracas.
Os justos também erram:: mas dos erros
só tiram argumentos da fraqueza
que os fazem mais prudentes, e mais sábios.
Os Deuses são somente os que são justos
em todo o tempo, e parte. Aquele peito
que menos vezes erra é entre todos
quem se mostra em segui-los mais exato.
Fujamos, Portugueses, deste sítio:
que se hoje inda podemos fugir dele
amanhã pode ser que a enfermidade
as forças nos consuma, e não possamos,
qual o enfermo que corre à sepultura
se o seu mal no princípio não se atalha.
Os Lusos navegantes que isto escutam
na já frouxa virtude mais se inflamam:
os deleites desprezam, e se haviam
à cidade correr, depõem as galas.
Uns sobem para as vergas, e desferram
os enrolados panos: outros correm
ao grosso cabrestante, e nele enrolam
a corpulenta amarra. O lenho vira,
põe para a barra a proa, e já navega
rompendo sossegado as mansas águas.
Ó Deusa valerosa! que proteges
os da minha nação, e mais a quantos
os buscam imitar no esforço d'alma!
Eu não tenho cem toiros, que degole
nos teus santos altares; porém posso
cantar os teus louvores, que isto vale
muito mais do que vale o sacrifício
em que se alaga o chão de quente sangue.
 
Vênus, que tudo observa, em iras arde,
corre à vizinha praia, busca o nume
que no porto preside e assim lhe fala.
Já não me chames Vênus; nem ainda
como Deusa me trates. Noutro tempo
bastava o ver meu rosto para ver-se
o mar; em que nasci, envolto em chamas.
Tenho vencido os Deuses; mas agora
já não tenho poder sobre os humanos.
Queria mais dizer: mas os suspiros
lhe cortam as palavras. A Deidade
que preside no porto, surpreendida
deste estranho sucesso nunca visto,
pretende consolá-la: mas debalde,
que quanto mais o busca, mais excita
a força impia do corrente pranto,
qual menino mimoso, que suspira
inda mais, quando a mãe lhe faz afagos.
 
Apenas o tormento lhe permite
um pequeno repouso, o Deus do porto
com sentido semblante assim lhe fala.
Que é isto, ó grande Vênus? Tu suspiras?
Tu aflita desmaias? Porventura
no céu, aonde habitas, também pode
entrar motivo que produza a mágoa?
A Deusa lhe responde: Sim, no Império
também entra o ultraje, e há de sempre
entrar no céu o crime, enquanto Jove
o castigo poupar do ousado humano.
O Nume se horroriza e assim lhe torna.
E Jove já não tem ardentes raios?
Ou se os tem. já não quer punir ofensas
que aos mesmos céus ultrajam? Quem te insulta
ao ver que um tal delito não tem pena,
não pode aos seus insultos animar-se?
Esse peito insolente, que te ultraja,
é livre do furor e da justiça
do teu potente braço? Dize, aonde
está o teu Cupido? As suas setas
só têm poder nos peitos inocentes;
para punir os peitos que te insultam
não têm mãos, não têm forcas, não têm armas?
Os ultrajes da mãe não são ultrajes
que ao filho honrado abraçam? Vênus, dize,
quem é, quem é o monstro, que te falta
ao devido respeito. A ser daqueles
que estão nas minhas águas, te seguro
um desagravo tal, que servir possa
de freio e de escarmento aos mais humanos.
Assim; ó grande Deusa, assim o juro
pela sagrada Esfinge, a quem não falta
nem o supremo Jove. Eu também tenho
na tua ofensa parte; pois ainda
que sejas uma Deusa de outra esfera,
nasceste como nós também das águas.
 
A Deusa assine responde. Eu bem conheço
que tens um coração em tudo digno
de ser o coração da Divindade
que manda as águas deste porto extenso.
Se tu assim não foras, não viera
buscar agora em ti o desagravo
da minha própria ofensa. Aquele, aquele
que ali vês ancorado é o navio
que excita a minha raiva. Enquanto a Deusa
estas vozes dizia, com o dedo
apontava o navio Marialva.
Eu quero, eu quero ver este navio
(continua a dizer) naquelas pedras
em vingança quebrado. Aqueles homens
ao meu favor ingratos se atreveram
a voltarem as costas aos prazeres
que eu mesma lhes buscava. Que mais queres
ouvir da minha boca? Sou Divina,
estou queixosa deles. Este agravo
pede a justa vingança, e isto basta.
Se os homens não temerem os celestes,
dentro em mui pouco tempo não teremos
nem templos, nem altares. Isto é pouco:
pararão sobre a terra os sacrifícios,
e talvez se convertam nos ultrajes.
 
O Nume lhe responde. Ó Deusa! Os Lusos
são senhores do porto, e eu os amo.
Mas isto nada Importa. A tua ofensa
deve ser preferida, pois que vence
sem menor exceção os outros males.
Nem pode ter valia o sacrifício
se a mão, que ao ar levanta o ferro agudo,
as reses avalia em pouco, ou nada.
Apenas isto disse, as águas fere
com o cetro, que traz: as águas correm
com força nunca vista, e arrebatam
o grande Marialva sobre as pedras,
que rodeiam a ilha dilatada,
que da grande cidade está defronte,
e é uma fortaleza guarnecida
que da Ilha das Cobras tem o nome.
 
O navio se salva por influxo
da protetora Palas: vai dar fundo
num lugar à saída acomodado,
que o Poço se apelida: novamente
as águas o arrebatam e vão pô-lo
em cima da restinga pedregosa
que parte como uma ilha inculta e breve
que o nome tem dos Ratos. Toca o leme
na encoberta restinga, e se levanta.
A gente, que o guarnece, se perturba.
Corre à popa da nau a grande Palas:
põe os olhos acesos na corrente;
a corrente parou, no mesmo instante.
O leme levantado cai e torna
ao primeiro lugar aonde estava.
O navio do sítio se retira,
dá fundo noutro sítio mais seguro,
de mais fundo, e mais limpo, e desta sorte
deste segundo risco enfim se salva.
 
Apenas o navio lançou fundo
em lugar oportuno, a justa Deusa
ao portaló se chega. e estas vozes
soltou do fundo peito ardendo em raiva.
Ministros desse Nume, que perturba
deste porto o sossego, moderai-vos.
Dizei ao vosso Nume que repita
a essa injusta Deusa, a quem agrada,
este fiel recado. Quem procura
os caminhos da glória, só merece
das mãos dos altos Deuses, que são justos,
benigna proteção, e não estragos.
Que se isto a meio modera, que eu lhe digo
que ponha as suas forças por que busque
dos Lusos a desgraça; pois as minhas
estarão vigilantes a salvá-los.
Que se ela é uma Deusa, eu sou o mesmo,
E sendo ambas iguais, bem poderemos
medir as nossas forças braço a braço.
 
O navio levanta finalmente
o grosso unhado ferro: os mares corta,
e sai do porto infausto. Tu, ó Palas,
defende os Portugueses, que eles correm
atrás do seu naufrágio. Sim, que as Deusas,
inda que Densas sejam, são mulheres:
mulheres que não deixam que se curem
as chagas do rancor, quando elas nascem
da injúria da beleza, bem que corram
depois da chaga aberta os longos anos:
os anos sim, os anos, que consomem
as mais profundas chagas, que se abriram
pelas ousadas mãos dos mais agravos.
 
Valerosos Guerreiros, animai-vos:
que os peitos virtuosos, que padecem
em ódio da virtude, por fim podem
dos males triunfar, e quando chegam
os dias do triunfo, ó quanto, ó quanto
formosos lhes parecem os trabalhos!
Não é digno das ditas quem não pensa
que as ditas são uns bens que os céus fizeram
para prêmio dos peitos sofredores,
que mostram os seus rostos sempre inteiros
no fundo abismo dos maiores males.
 
 
Canto 4º
 
No dia, que era o sexto da viagem,
a ofendida Vênus determina
tomar vingança nova: sobe ao carro
que puxam brancas pombas: rompe os ares,
a Éolo procura, mal o encontra,
lhe fala deste modo... Ó Rei potente,
de cujo arbítrio pende a sorte toda
de quem o mar navega. Escuta, escuta
as queixas de uma Deusa maltratada;
dá-lhe o remédio que te pede, e pronto.
Eu tenho imensas ninfas, e na terra
não acharás belezas que se possam
com elas comparar. Se me servires
no que te peço agora, eu te concedo
o número de nove, e também deixo
só na tua eleição a sua escolha.
 
O Rei assim lhe diz ... ó Deusa bela,
a paga, que me ofertas, é mui grande
mas por isso, que é grande, eu a contemplo
à honra injuriosa. Dize, ó Vênus,
para que eu te obedeça é necessário
que tu me incites c'o valor do prêmio?
Eu hei de, ó grande Vênus, comprazer-te
sem olhar para a paga; pois não quero
que ela tire o valor ao meu serviço
mudando o meu serviço em vil contrato.
Contudo, grande Vênus, não me exponho
a que te persuadas que eu desprezo
vaidoso a tua graça. Sim, eu quero,
eu quero que entre nós se aperte o laço
de uma estreita amizade; entrar na conta
daqueles que compõem a tua casa.
Alcançando este bem, não tenho, ó Deusa,
mais outro bem igual, aonde possa
bater o meu desejo ás suas asas.
Escolhe entre essas ninfas que me ofertas
aquela que quiseres; que eu procuro
fazer-te um sacrifício mais completo
dá rendida vontade: à que me deres
sem reparar qual seja, eu hei de dar-lhe
por ser escolha tua alegre está alma.
 
A Deusa lhe responde - Ó Rei, eu tenho
uma ninfa que é bela, conhecida
pelo nome que tem de Danopéia.
Não te quero afirmar que a todas vence
na beleza, e nas graças; que estes dotes
não têm nos olhos todos igual peso.
Só te afirmo que ela é entre as mais todas
a quem mais amo, e prezo. Danopéia
será, será, ó Rei, aquela ninfa
que deste feliz dia para sempre
com dobradas prisões nos una, e prenda.
O Rei assim lhe torna. Eu já me abraso
nos ardentes desejos dessa posse;
porque sendo esta escolha escolha tua
não pode escolha haver mais digna e nobre.
Mas nós, ó grande Deusa, depusemos
de parte o teu negócio. Vênus, Vênus
este insulto perdoa; e por que possas
perdoar-me este insulto, ah tu repara
que a causa dele não foi minha toda!
Deixemos os ajustes, Deusa, fala,
que quando se cogita da vingança
que procuras tomar aos teus insultos,
não é, não é decente, ó grande Deusa,
que o tempo se consuma em tais contratos.
A Deusa o modo atento lhe agradece
e prossegue a queixar-se assim dizendo.
Aqueles Portugueses que navegam
no leve Marialva, me fizeram
uma afrontosa ofensa. Mal chegaram
à corte do Brasil, busquei fazer-lhes
alegres seus trabalhos. Fui eu mesma...
O Rei, que estas palavras escutava,
lhe interrompe o discurso assim dizendo.
Suspende á voz, ó Deusa, que eu não posso
consentir que me contes teus sucessos
sem que nisso te ofenda. Se eu quisesse
saber os teus agravos para dar-lhes
castigo equivalente, me faria
desta sorte o juiz dá tua ofensa.
Tu és só o juiz, e és só por isso
quem à pena lhe arbitra: a mim só toca
fazer executar qualquer sentença;
e em ser executor do que mandares
já tenho glória, que não é pequena.
 
A Deusa novamente lhe agradece
uns tão puros desejos, que se fazem
mais dignos de valor por se explicarem
por tão urbanos termos. Depois disto
seus desejos explica assim dizendo.
Despede, ó grande Rei, o vento irado;
açoita este navio: agita os mares
e bate o seu costado: faz nele
os estragos maiores; mas não mandes
que estes estragos passem ao excesso
de o fazer submergir nas verdes ondas.
Não cuides, grande Rei, que o meu pedido
assenta em piedade; pois assenta
nos desejos ardentes que me abrasam
de querer despicar a minha afronta.
Eu quero que estes Lusos não acabem;
porque quero acabá-los pouco a pouco
ao peso sucessivo dos trabalhos,
que é mal inda pior que a mesma morte.
 
O Rei assim lhe torna... ó Deusa, espera,
espera um breve instante por que vejas
que o teu pedido é ordem, e tal ordem,
que bem que o coração se oponha a ela,
tem sempre execução inteira, e pronta.
Apenas isto disse, o cetro move;
fere um grande penedo que servia
de robusto postigo a uma cova
onde encerrados tem os ventos todos,
por que dela não saiam sem que tenham
para saírem dela expressas ordens.
Mal tocou o penedo com o cetro,
retirou-se o penedo ao lado um pouco,
e mal se afasta a pedra, sai bramindo
o furioso Noto. Os outros ventos
no profundo da casa se revolvem,
e vêm como em tropel também correndo
para a pequena porta. O Rei previsto
o seu cetro maneia, e com a ponta
fere a pedra de novo; a pedra corre
e caminha a tapar a negra cova.
 
O Rei se vira ao Noto, que inda firme
as ordens esperava, e carregando
o rosto respeitoso assim lhe fala.
O que Vênus mandar, que tu lhe faças,
isso deves cumprir exato, e pronto:
reputa os seus preceitos os meus próprios.
Não digo bem. Reputa os seus preceitos
que os meus próprios preceitos mais forçosos,
que eu posso perdoar se me faltares;
faltando a ela perdoar não posso.
 
A Deusa e mais o Noto vão seguindo
O rumo do Brasil, e já descobrem
o grande Marialva que rompia,
como quem de tormenta não pensava,
com todo o pano cheio as mansas ondas.
Apenas viu a Deusa o Marialva
subiu-lhe a cor as faces, e apontando
para ele com o dedo, ao vento o mostra,
e soltando um suspiro assim lhe fala.
Aquele é o navio em que navegam
os loucos Portugueses que me ultrajam.
Despica, pois é tempo. a minha afronta:
agita os mansos ares, que lhe rompam
as velas desrinzadas; move as ondas,
que açoitem seu costado. Veja o mundo,
que se tem atrevidos que me insultem,
eu tenho também ondas, e mais ventos,
que vinguem meus ultrajes; e se forem
outros meios precisos, terei inda
os ministros do céu, que são os raios.
 
Apenas isto disse a Deusa busca
do sitio retirar-se: talvez fosse
para evitar impia que os lamentos,
mais os humildes rogos dos aflitos,
não pudessem fazer que se abrandasse
o fogo em que se abrasa o duro peito.
 
Mal do sítio se aparta, o fero Noto
a vingança começa: alarga, e enche
as rugosas bochechas; curva o corpo,
põe na cintura as mãos: respira, e sopra.
As águas pouco a pouco se encapelam;
E dentro em pouco tempo está formada
a tormenta medonha. O bom piloto,
ao catavento firme, agora manda
que o leme se alivie: agora ordena
que se meta de encontro. Os joanetes
e mais as grandes gáveas já se arriam
para assim se quebrar do impulso a força.
Os punhos do traquete e mais da grande
ligeiros se carregam; os mancebos
pelas escadas sobem por que ferrem
as já descidas velas que, batendo,
os mastaréus açoitam: quais se fazem
em mais velas partidas, quais rompendo
as bem atadas cordas que as seguram
as longas vergas pelos ares voam.
Não se escutam senão sentidas vozes
de quem manda, e trabalha, e o sussurro
do Noto furioso, que assobia
nos moitões e nas cordas, misturado
c'o sussurro também das bravas ondas.
 
Uma onda se levanta mais crescida
e se deixa cair com toda a força
na proa do navio. O grande beque
depois de levantar-se sobre as nuvens
desce ao profundo infernos já vem outra
mais forte que a primeira, nele bate,
e o grande beque treme: já se enrolam
a terceira, e a quarta, e não podendo
o beque resistir a tanta força
um grande estalo deu e fez um rombo
apesar das cavilhas, que o sustentam.
 
Com a vitória o Noto mais se alenta:
aperta os beiços outra vez de novo,
ajunta mor porção na. funda boca
dos comprimidos ares; quer soltá-los
e neste mesmo instante ao mal acode
a Deusa Protetora. Corre, e chega
ao portaló que está de barlavento,
e toma o seu semblante. Aqui se mostra
já como Deusa Palas, aos contrários,
ao mar embravecido, e ao fero Noto.
O Noto mal conhece a grande Deusa
turbado se confunde, e sacudindo
as negras asas, deste sítio foge.
Mal o vento se ausenta, os verdes mares
aplacando se vão, já se convertem
em mares de bonança e já parece
que de cansados dormem. O Moreira
um só pequeno instante não sossega,
e sem que perca o tempo determina
que se passe a fazer aos graves danos
que a tormenta causou, o necessário,
o possível conserto. A ordem sábia
com prontidão se cumpre, e sem falência.
Ao beque já se lançam duras cordas
que o fazem reduzir ao velho estado.
Depois de reduzido se lhe pregam
firmes castanhas, três de cada parte.
que fortes o sustentam Pela proa
sai o deitado mastro, e este mesmo
também solto ficou, porque faltara
o beque a que se prende. Já lhe passam
uma forçosa trinca, que o segura
ao beque consertado, e além da trinca
o seguram também com grossos cabos.
 
Depois que o mar serena se descobre
uni mui formoso carro que voava
sobre as já mansas ondas, mais ligeiro
que as setas voadoras. Ele vinha
puxado por Delfins, em cuja conta
não entrava o Delfim astuto e sábio
que ajustou de Netuno o casamento
com a bela Anfitrite, que este em prêmio
está nos altos céus mudado em astro.
Em cima deste carro majestoso
se assentava Anfitrite, e o seu semblante
enchia de prazer o ar em torno,
enchia de prazer também os mares.
As ninfas, que este carro acompanhavam,
mil círculos faziam sobre as ondas
só por darem prazer à sua Deusa;
umas vezes nas águas mergulhavam
as erguidas cabeças e surgiam
dos rostos apartando os seus cabelos.
Outras vezes corriam à porfia
as águas dividindo com os peitos.
Quais depois de cansarem se apegavam
ao carro de Anfitrite; quais imóveis
nas águas se sustinham e formavam
uma bela alcatifa matizada
da cor do mar e corpos, branca, e verde.
Os peixes sobre as águas se moviam
saltando de contentes, e as famintas
gaivotas, que voam, não desciam
dos ares mansos a pegarem neles.
Até os mesmos peixes inimigos,
amigos se mostravam, nem os grandes
sustentar-se buscavam nos pequenos.
 
A esta Deusa segue um vento brando
que os ares refrescava; e muitas vezes
pasmado na beleza do semblante
se esquecia bater as leves asas.
Move-se o catavento: os navegantes
desferram o seu pano, e vão seguindo
o rumo para as costas Africanas
compensando com esta nova dita
todo o desgosto dos passados males.
 
Os Lusos navegantes atravessam
o cabo Tormentoso, a quem diria
que houveram de passar com mansos mares
um sítio, a quem chamaram tormentoso
à triste custa de desgraças tantas.
Aqui se aprontam todos para verem
o deforme gigante, que pôs medo
ao mesmo ousado Gama; porém ele
só de longe aparece, e levantando
sobre o sereno mar o corpo imenso,
em profético sorri assim lhes fala.
O que fazer não pude farão outros,
que eu tenho quem despique o meu ultraje.
 
O deforme gigante que preside
neste medonho cabo é um gigante
de uma estatura imensa. Os seus cabelos
são limos estirados que lhe descem
pelo grosso costado, e são de limos
também as suas barbas, que lhe pendem,
e tocam da cintura muito abaixo.
A testa é espaçosa, e atrás cingida
com folhas de espadana: as sobrancelhas
compridas e fechadas. Os seus olhos
acesos, e rasgados: beiços grossos;
como troncos as pernas, pouco menos
os dois nervosos braços. O seu corpo
tão forte, e tão fornido, que pudera
suster o céu inteiro, se o céu todo
nos seus fornidos ombros se assentasse.
Traz na direita um pau, em que se encosta,
que formado não foi de um grande ramo;
mas de um crescido tronco. Se levanta
a sua rouca voz o ar impele,
vence o rijo trovão que o mundo assusta,
e faz estremecer o inteiro monte.
 
Os Lusos navegantes se perturbam
mal ouvem tão funesto vaticínio:
intentam aplacar o Deus Netuno
com puros sacrifícios: não degolam
os enfeitados toiros; mas derramam
nas águas do seu mar o puro vinho.
 
Netuno o sacrifício não aceita,
que Vênus enfadada é como filha
e a quantos animais beber puderam
das águas com o vinho borrifadas,
para o ódio mostrar tirou as vidas.
Não pára nisto a força do seu ódio.
Ele leva o navio sobre a costa
da Ilha São Lourenço, aonde espera
que o dano não evite: pois que corre
sem que saiba que corre, e sem que possa
prever, e acautelar tão certo risco.
 
A protetora Palas, que vigia
sobre os amados Lusos, não sossega.
A ilha vai buscar, e sobre a praia
acende uma fogueira. Os navegantes,
mal este fogo avistam, estremecem.
Conhecem que estio perto desta praia.
Arreiam prontamente as soltas gáveas,
com que só navegavam, e conservam
todo o resto da noite a nau à capa.
Com esta prevenção prudente, e justa
apesar dos desejos de Netuno
do naufrágio iminente a nau se salva.
 
Ó Deusa sem igual! Ó grande Palas!
Tu sim, tu sim proteges a Virtude:
és uma Deusa de ser Deusa digna
por isso mesmo, que a virtude amparas.
Portugueses, correi pelo caminho
da honra, e do valor: correi afoitos,
como sempre correstes. Desta sorte,
não tendes que tremer a dura sanha
dos peitos inimigos, bem que sejam
muito mais que os humanos. Portugueses,
se uma mão se levanta contra o justo,
há outra mão talvez mais forte ainda,
que o dano, que ela busca, lhe repara,
e não só lho repara: mas às vezes
os trabalhos permite, por que o leve
as ditas, e às venturas, que ela mesma
por estes úteis meios lhe prepara.