Com a prisão do Arrocha, que a justiça acabava de condenar a dois anos de cadeia por crime inafiançável, depois de haver a polícia lhe dado busca na casa de jogo e apreendido o que lá encontrara, viu-se Ambrosina obrigada a voltar de novo a atividade prostibular, mas agora, não já como vagabunda ovelha, e sim como abelha mestra de quatro raparigas, entre as quais Eva Rosa era a de melhor cotação.
E Gabriel, que a despeito dos conselhos "in extremis" do padrasto, fora pouco a pouco, com a última aragem da fortuna, recaindo na primitiva prodigalidade, um belo dia, quando deu por si, depois de uma noite de dissipação em que adormeceu inconscientemente nos braços de Estela, acordou, sem mesmo saber como, nos da sua velha amante, e entre bocejos de apatia se deixou quedar.
Já não tinha, porém o relapso, ao lado de Ambrosina, vislumbres dos arroubos da sua paixão de outrora; amava-a de cara fechada, como traga um bêbado a indispensável dose de aguardente, que lhe exige o vício.
Mas, ainda assim, existiram juntos quase um ano, ao fundo de um policromo hotelzinho de gente de teatro, por cima do recém-criado Casino da rua do Espírito Santo, que se propunha substituir o Alcazar de saudosa memória popular. E durante esse tempo, valha a verdade, nada de notável ocorreu entre eles, a não ser o próprio fato que de novo os desuniu — um doido capricho de Ambrosina por um hércules francês, que se exibia todas as noites no Círculo do Lavradio; homem belo e brutal, com músculos de bronze, a cujo áspero peso gemia a outonada loureira, sentindo esmagarem-se-lhe as dormentes gelatinas em que se lhe havia derretido pelo corpo o palpitante e branco mármore do passado.
A desgraçada o idolatrava, sem a si própria explicar a razão por que. Ele comia-lhe o dinheiro que lhe fariscava nas meias, e batia-lhe com os pés; ela, entre soluços de mulher adorada, dizia-lhe abjeções, cuspia-lhe nas barbas, mas ia, lacrimejante de amor, rebuscá-lo ao fundo das bodegas, para lhe pedir perdão e lhe suplicar que não estivesse a matá-la de ciúmes.
O francês levou-a a esfocinhar nas últimas degradações da crápula rasteira, enquanto teve de partir para Buenos Aires com a companhia de funâmbulos a que pertencia, esgueirou-se à sorrelfa, receando que o seu crampon lhe estorvasse a saída.
Ambrosina reparou então que o miserável, ainda pior do que fez D. Felipe, lhe carregara com os poucos objetos de valor imediato que lhe restavam, e tratou logo de arranjar meios de encostar-se de novo a Gabriel.
Este porém, já de frouxos recursos poderia dispor por esse tempo; achava-se quase completamente esgotado em todos os sentidos. Dera ultimamente para beber e jogar por vício, equilibrando a existência pelas alternativas da roleta e do álcool. Tornava-se desleixado em extremo, e até desbriado.
Ambrosina conseguiu empolgá-lo de novo, e agora mais do que nunca fazia dele o que bem queria, insultava-o constantemente, e lhe não abria a porta, quando o desgraçado fora de horas lhe chegava ébrio e sem dinheiro.
— Vá dormir na estação de polícia, que isto aqui não é lugar de vagabundos! exclamava ela, pondo a cabeça entre as folhas da janela.
E, se insistia, despejava-lhe o balde das águas servidas.
Mas, nem assim, o pobre diabo a deixava de vez.
Uma ocasião afinal, largos meses depois do último aferramento dos dois, Ambrosina, passando de manhã cedo pela rua do Ouvidor, para ir ao Mercado regatear as compras do almoço, viu em uma das vitrinas do Farani, um belo e rico broche de brilhantes.
Eram apenas duas pedras, muito fundas, porém, e muito limpas. Ao lado um cartão com letras de ouro dizia que a jóia custava quatro contos de réis.
— Ah! meu tempo!... suspirou a filha do comendador Moscoso, a fitar, enamorada e triste, as duas sedutoras gemas.
E, depois de muito as contemplar em platônico desejo, soltou um novo e mais fundo suspiro, e lá se foi seguindo o seu caminho, mal amanhada e bamba, levando cravada na alma uma agonia que toda por dentro a encharcava de fel.
Ao mercado, inteiramente fora dos seus hábitos de lambareira, fez as compras nesse dia sem se demorar na escolha das vitualhas e sem desfranzir o rosto, passando alheada e torva por entre a pilhas do legumes viçosos e peixes cor de prata que espalhavam no ar o quente aroma das hortas e o frio olor das maresias; e não se deteve um só instante, como costumava, a olhar gulosamente para os montões de frutas frescas e caças despojadas, ou para as relumbrantes serpentes de chouriços e salpicões banhados de gordura, em que das outras vezes deixava a alma pendurada pelos olhos.
É que os dois belos brilhantes não lhe saíam da imaginação.
Chegou a casa possuída de uma raiva dolorosa e surda, uma como íntima revolta contra a certeza do seu aniquilamento, a dura certeza de que ela, nunca mais seria ninguém.
Chorou, chorou muito, arrepelou-se, e pensou em morrer.
— Mas por que não hei de eu possuir aqueles brilhantes?! exclamou a miserável a sós com a sua agonia, entre arquejos desabridos. Sim, hão de ser meus! Ainda há nesta carne fibras da Condessa Vésper !
E quando o amante lhe apareceu à tarde, disse-lhe ela secamente:
— Ó Gabriel! tens ainda algum dinheiro em depósito?
— Quase nada, filha; por quê?
— Porque preciso que me compres um broche de brilhantes que vi no Farani; um de duas lindas pedras, levemente azuladas, e engastadas num simples alfinete de ouro. Custa quatro contos...
— Estás bêbeda!
— Parece-te? Pois fica então sabendo que não tornarás a pôr os pés neste quarto, se não trouxeres os brilhantes contigo!
— Vai dormir! Isso passa!
À noite, porém, Ambrosina não lhe abriu a porta, como lha não abriu no dia seguinte, nem no outro.
Gabriel, que havia caído numa estranha tristeza, resignada e fria, foi então à casa bancária onde depositava o seu dinheiro, e perguntou de quanto ainda dispunha.
— Quatro contos e tanto, responderam-lhe.
— Passe o recibo.
— De tudo?
— Sim.
Embolsou o dinheiro, tocou para a casa do Farani.
Parou defronte do mostrador. Os dois brilhantes, as duas tentações de Ambrosina lá estavam em toda a sua refulgente glória; e o desgraçado estremeceu ao trocar com eles um rápido olhar, como se desse com efeito de surpresa com os olhos de alguém, de algum demônio, do cruel demônio que implacavelmente o perseguia desde o seu primeiro sonho de amor.
No meio de um ardente eflúvio de cintilações, feito de acesas cores em que parecia transluzir a alma fulgurante dos minerais preciosos, destacavam-se, a fitar Gabriel, as duas irrequietas pupilas de carbone vivo. Havia a granada e o rubi, com as suas luzes quentes e sangüíneas, que lembram os sorrisos do pecado; a esmeralda, matinal e alegre como a lágrima do mar gotejada dos cabelos de Afrodite, ao lado da safira, triste e sombria. como as gotas da noite; e opalas, misteriosas e sinistras em contraste com turquesas cor do céu em dias felizes, e pérolas que guardam no rijo e imaculado seio secreta: luzes do fundo do oceano, e místicas ametistas, sensuais cornalinas, topázios cheios de sol, e camafeus mais polidos e trabalhados que um verso de Virgílio. Mas a todo esse refulgir da ardente e rica pedraria, sobrelevava-se o fulgor das duas lúcidas pupilas de luz diamantina, que provocadoramente desafiavam Gabriel para um supremo desvario.
O amante de Ambrosina entrou na loja.
— Deseja alguma cousa?... perguntou-lhe o moço do balcão, a medi-lo com certo ar desconfiado.
— Aquele broche que está exposto...
— A que broche se refere o senhor?
— Ao de quatro contos, com dois brilhantes..
— É só para ver?...
— Não; é para comprar.
— Pronto!
— Separe-lhe as pedras.
— Separar-lhe as pedras?!.
— Sim; desengaste os dois brilhantes.
— O senhor dessa forma estraga a peça...
— Não faça caso; separe-as.
— Mas...
— Compreendo... Aqui tem o dinheiro.
— Pois não! É um instante!
E o caixeiro, depois de conferir e recolher o pagamento, isolou as duas belas gemas, que entregou ao comprador juntamente com os engastes e o cofre.
— Está servido, disse; quando precisar de mais jóias...
— Obrigado, resmungou Gabriel, guardando aqueles objetos no bolso do sobretudo.
E dirigiu-se então a uma casa de armas. Aí comprou um jogo de pistolas de carregar com bala pela boca. Depois pediu ao armeiro que a carregasse com pólvora seca, muniu-se de espoletas, e saiu.
Estava a cair de fome. Foi ao Mangini, meteu-se num gabinete reservado, e, enquanto esperava que lhe servissem o jantar, carregou as duas pistolas com um brilhante cada uma.
Acabada a refeição, acendeu tranqüilamente um charuto, e seguiu, sem alterar os passos, para a casa de Ambrosina.
Eram cinco horas da tarde, mas anoitecia já quando ele lá chegou, porque junho orçava pelo seu meado e viera muito nebuloso esse ano.
— Ainda?! berrou a loureira, ao ver entrar Gabriel. Não lhe disse que não voltasse sem os brilhantes?! É birra!
— E quem te diz que não te trago?...
— Hein?! interrogou ela, correndo para o amante, de braços abertos. Não estás gracejando?...
Ele mostrou o estojo.
— Meu amor! Oh! deixa ver! Dá-me! dá-me cá!
E Ambrosina beijava o infeliz, a bater palmas, a rir e a saltar numa alegria igual às dos seus melhores tempos do passado.
— Prepara então o teu colo... exigiu Gabriel. Quero-o nu, todo nu!
Ela, num gesto rápido e frenético, rasgou o corpete do vestido, patenteando os infecundos e carnudos peitos.
— Agora, bem! dá-me o teu lenço... acrescentou ele.
— Meu lenço?... Aí o tens... Para quê?...
— Espera... É uma fantasia... Deixa vendar-te os olhos...
Ambrosina submeteu-se, com arrepios de gozo, a perguntar se o broche então armava também em colar.
— Sim, respondeu o amante, empunhando as pistolas, que já tinha engatilhado. E quero que só o vejas defronte ao espelho... com os teus brilhantes no colo.
— Pronto! disse ela afinal, de olhos vendados.
Gabriel, fazendo-lhe pontaria sobre os peitos clamou:
— Aí os tens, demônio!
E disparou ao mesmo tempo as duas armas.
Ambrosina, soltando um gemido, caiu de costas, banhada em sangue.
Semanas depois, recebia Gabriel na casa de Detenção a visita da mãe do finado cocheiro Jorge. De todos os seus conhecidos, foi essa, foi a velhinha Benedita, a única pessoa que se lembrou de ir vê-lo.
E a pobre de Cristo estava cada vez mais engelhadinha, mais seca e mais curvada, e também mais agarrada à vida, sempre com um terrível medo de morrer, e sempre a terminar os seus intermináveis aranzéis com o grato provérbio: "Viva a galinha com a sua pevide!"
Foi ela a encarregada pelo assassino de Ambrosina de trazer-nos o manuscrito e a carta de que falamos no começo deste livro, e foi ela igualmente quem nos informou mais tarde de que o infeliz preso, no dia em que tinha de embarcar para Fernando de Noronha, a cumprir sentença de galés perpétuas, aparecera morto na prisão, conservando ainda cravada no peito a arma com que se arrancara do mundo, um belo punhalzinho de cabo de marfim com incrustações de ouro, entre as quais se lia o nome de Violante.