— Eu sentia um bom humor extraordinário, prosseguiu Violante: o ar puro e consolador da manhã, pulverizado no espaço em vapores cor-de-rosa, enchia-me toda como de uma grande alma nova, feita de cousas alegres e generosas. Tive vontade de rir e cantar.
O sol principiava a destacar o contorno irregular das árvores e derramava-se transparente e suave. Sentia-me expansiva, alegre, tinha repentes de criança; e, não sei por que, Paulo nessa ocasião se me afigurou muito melhor do que das outras. Cheguei a achar-lhe graça e a desfazer-me em risadas com algumas pilhérias suas que fora dali me fariam bocejar.
Em certa altura paramos. Ele ajudou-me a descer, prendeu o cavalo, abriu a minha sombrinha, e começamos a andar de braço dado por debaixo das árvores.
Que delicioso passeio! O Senhor não pode imaginar quanto eu me senti feliz... Mais alguns passos, e tínhamos chegado a um caramanchão ou, melhor, a um alpendre de verdura misterioso, tépido, todo impregnado dos perfumes do campo e das sombras da folhagem. Ao lado uma cascata corria em sussurros, e as suas águas quebravam-se nas pedras, irradiando a fulguração do sol.
Paulo deixou-me por um instante, para ir buscar o carro. E nesse momento de independência, quando senti que não era observada por ninguém, levantei-me, bati palmas e pus-me a dançar como uma doida; depois galguei aos saltos o lado da cascata e recebi no rosto o pó úmido das águas. Abaixei-me, colhi água na concha das mãos e bebi. Afinal assentei-me no chão, e abri a cantar.
Paulo voltou com o carro e recolheu ao pavilhão o cesto do almoço. Estendeu a toalha sobre uma mesinha de pedra que havia, e pousou nesta uma máquina de café, duas garafas de bordeaux, uma de champanha, uma botija de curaçau, uma empada, um assado, queijo, frutas e pão.
Eu sentia apetite, e confesso que estava encantada com tudo aquilo. Era a primeira vez que me animava a fazer uma folia desse gênero — um almoço ao ar livre ao lado de um rapaz.
E Paulo não me parecia o mesmo homem, descobria-lhe maneiras e qualidades, para as quais jamais atentara enquanto o vira somente nas frias atitudes circunspectas da vida, notava-lhe agora a distinta estroinice dos pândegos de boa família, criados e animados entre senhoras finas e orgulhosas; um certo pouco caso, fidalgo e elegante, pelas virtudes comuns e pelos vícios vulgares; um ar altivo e másculo de quem está habituado a gastar forte com os seus prazeres; uma linha moderna, libertina e gentil a um tempo, feita de extravagâncias de bom gosto, e um pouco de viagens, alguns conhecimentos de música, um nada de política, anedotas francesas, algum dinheiro, charutos caros, um monóculo, o uso de várias línguas, um bigode, duas gotas de mel inglês no lenço, um fato bem feito, um chapéu de palha, luvas amarelas, polainas e uma bengala.
E o grande caso é que estava um rapagão, cheio de gestos largos, de atiramentos de perna, e de grandes exclamações em inglês.
Assentei-me no banco que circundava a mesa, e ele fez o mesmo defronte de mim. Informou-se se eu estava satisfeita com o passeio, falou em repeti-lo. Era preciso aproveitar o verão! Mas aos domingos nada! havia muita gente!
E abria garrafas, dava lume à máquina de café, servia-me de mariscos e falava-me do seu amor. Eu contei-lhe francamente as impressões que recebera àquela manhã, e mostrei-me satisfeita.
"Se soubesse, minha amiga, dizia-me ele, quanto me sinto bem ao seu lado!... Nem mesmo me reconheço, creia! Fico tolo só com pensar em nossa futura felicidade, em nossa casa e em nossos...
Ia falar nos filhos, mas deteve-se e ficou a olhar-me com uma grande insistência humilde. Parecia haver um pranto escondido por detrás das suas pupilas azuis.
"Descanse. Falta pouco!" respondi eu, possuída de alguma cousa, que não sei bem se era compaixão.
"Falta um século!..." emendou ele com um suspiro. E chegou-se mais para mim. Tinha o ar tão respeitoso que não fugi.
"Por que não fica mais à vontade?" disse-me. E ajudou-me a tirar o chapéu e desfazer-me do mantelete.
Houve um silêncio. Ele queixou-se da falta de gelo, abriu uma nova garrafa de bordeaux e encheu os copos. Depois, leu-me uns versos, que a mim fizera no tempo do colégio. Vieram logo as recordações da infância, o nosso namoro. — Quanta criancice!
" — E o bofetão?..."
Esta lembrança trouxe-me uma risada, que me fez engasgar. Sobreveio-me tosse, fiquei um pouco sufocada; ele levantou-se logo, começou a bater-me delicadamente nas costas. E, a pretexto de auxiliar-me, afagava-me os cabelos e a fronte.
"Não é nada! Não é nada!" dizia Paulo; "vá um gole de champanha!"
"Não! antes água!..."
Ele correu à cascata, e voltou com um copo dágua.
Tornamos à palestra, e eu não reparei logo que o rapaz desta vez ficara inteiramente encostado a mim. Passamos à sobremesa. As pilhérias repetiam-se mais amiúde.
Paulo pôs-se a fumar.
Consenti nisso e disse até que gostava do cheiro do fumo. Ele fez saltar a rolha do champanha.
Sentia-me enlanguecer; os olhos ardiam-me um tanto e o corpo me pedia repouso. Insensivelmente fui perdendo alguma cousa da minha cerimônia e me pondo à vontade; estiquei mais as pernas, recostei-me nas costas do banco e inclinei para trás a cabeça.
Ele ficou a olhar-me muito, com um ar sério e infeliz. Eu tive vontade de dizer alguma cousa, e nada mais consegui do que sorrir. Estava prostrada.
Paulo aconselhou-me que fumasse um cigarrinho, e essa idéia extravagante não me pareceu má. Fumei o meu primeiro cigarro.
Em seguida senti um vago desejo de dormir. Ele serviu o café e o licor.
E continuamos a conversar.
As recordações do tempo do colégio vinham a todo o instante.
"Isto sempre teve gênio!" dizia ele, ameigando-me o queixo. Chamava-me criaturinha má, sem coração; ameaçava-me com vingançazinhas, que se realizariam quando fôssemos casados. Tinha ditos maliciosos, palavras de sentido dúbio e olhares cheios de paixão. Eu estendia-me cada vez mais no banco, amolecida por um entorpecimento agradável; as pálpebras fechavam-se-me. Sentia vontade de ser menos severa com aquele pobre companheiro de infância; tanto que me não sobressaltei quando senti a sua mão empolgar-me a cintura.
"Como eu te amo! murmurou ele, com a boca muito perto do meu rosto. O seu hálito abrasava-me as faces.
"Não faça isto!", pedi, repelindo-o frouxamente.
Mas ele passou-me a outra mão na cintura e puxou-me para si.
Fiz ainda alguma resistência. Sentia-me, porém tão mole, e além disso sabia-me tanto ser abraçada naquela ocasião, que me deixei levar e caí sobre ele, com a cabeça desfalecida no seu ombro.
Paulo segurou-me o rosto e estonteou-me de beijos. Eram ardentes, vivos, repetidos, como os tiros de uma metralhadora.
E Violante calou-se, respirando forte, enquanto Gaspar, de olhos muito abertos, lhe acompanhava todos os movimentos.
— Depois desse fatal passeio, continuou ela ao fim de uma pausa, a situação mudou completamente. Paulo se tinha convertido em meu legítimo amante. Entretanto, escreviam-me daqui a respeito do inventário de meu marido, e eu respondia com evasivas às repetidas reclamações. Afinal, autorizada por Paulo, declarei abertamente que só voltaria a Montevidéu acompanhada por um cavalheiro com quem havia ajustado casamento.
A viagem seria dai a um mês; Paulo disse-me então que só se casaria na América Meridional, na primeira república em que pisássemos, ou no Brasil, e que então, logo depois no dia seguinte até, poderíamos levantar o vôo definitivo para cá. Concordei, não sem estranhar semelhantes exigências. Dentro de alguns dias partimos da Europa, depois de haver eu escrito aos meus amigos e conhecidos, participando-lhes que em breve me casaria no Brasil. E ainda nisso houve da parte de meu noivo alguma cousa que me fez desconfiar: Paulo exigiu que eu não declarasse o seu nome nas minhas participações...
— Oh! exclamou Gaspar, interessado vivamente pela história de Violante. E a senhora consentiu?
— Que remédio! explicou ela, eu estava em situação falsa: qualquer resistência podia provocar um rompimento, com o qual só eu tinha a perder. Assim, pensei na dependência em que me havia colocado, e concordei de cabeça baixa...
— Depois? perguntou Gaspar.
— Depois, partimos para o Brasil e, na véspera do dia em que haviamos de casar, Paulo desapareceu.
— Canalha!
— Fiz minhas malas, enxuguei minhas lágrimas, traguei em silêncio a minha cólera, e cá estou há cinco meses, sequiosa por efetuar meus planos de vingança!
— Ah! Tenciona tirar uma vingança de Paulo?...
— Decerto! Como sabiam que eu estava no Brasil e como me esperavam com impaciência, calculei o ridículo que me aguardava se me apresentasse ainda viúva, e tomei a resolução de mentir: disse que meu marido viria buscar-me para viajarmos, ou iria eu encontrar-me com ele fora de Montevidéu. O senhor é a única pessoa que sabe da verdade...
— Mas isso foi uma temeridade! exclamou Gaspar.
— Nem só uma temeridade, acrescentou Violante; como foi uma grande asneira: criando um marido imaginário, não me passou pela idéia que ia com isso dar uma nova direção ao inventário do primeiro...
— E agora?
— Agora, é que estava na situação que lhe acabei de pintar francamente, quando ontem li no jornal o seu nome na lista dos passageiros do Pacific Star. "Deve ser o filho do meu benfeitor!" disse eu comigo, e mais me convenci disso ao vê-lo à tarde no Prado com os seus companheiros de viagem, tal é a semelhança que existe entre o seu tipo e o de seu pai na idade em que me recolheu. Pois bem, imagine agora que hoje, ao voltar de um baile pela madrugada, os cavalos do meu carro se espantaram em certa rua; quis saber o que havia: o cocheiro disse-me que um homem estava estendido no chão e escapara de ser esmagado pelas rodas. O carro tinha parado, e ao lado das rodas estava com efeito um corpo inanimado. O cocheiro apeou-se, e com uma de suas lanternas iluminou-lhe o rosto. Soltei um grito — a fisionomia que eu tinha defronte dos olhos, era a do moço estrangeiro que encontrei no Prado, e justamente a mesma que se gravara há vinte anos em meu espírito, no dia em que morreu minha mãe; era a doce fisionomia do oficial brasileiro, que me recolhera da miséria. E, para poder o senhor julgar bem da impressão que recebi, basta ver este retrato...
E a oriental passou a Gaspar um de porte guerreiro, que tirou da algibeira.
— Oh! exclamou ele. Efetivamente é o retrato de meu pai há vinte anos! Quanto me pareço com ele! Tem toda a razão: isto é o seu retrato fardado de oficial.
— Desci do carro, prosseguiu Violante, e disse ao cocheiro que pousasse a lanterna no chão. Era aflitivo o meu estado, tendo assim defronte dos olhos o filho do meu benfeitor, ao qual Deus me enviava para socorrer. Havia em tudo aquilo um mistério, e a mim competia desvendá-lo, por gratidão, por dignidade, por cumprimento de dever. Aquele corpo tinha sofrido qualquer violência; procuramos descobrir-lhe uma ferida ou vestígio de algum veneno — nada! Todavia, não era um cadáver, porque o coração batia perfeitamente. Eu não sabia que partido tomar — abandonar ali aquele homem, era impossível, mas carregá-lo comigo, não era também tão fácil; não me animava a seguir ao lado de um desconhecido, e de um desconhecido em trajes menores... Fiquei perplexa! A rua estava deserta; não passava perto dali uma só carruagem... O cocheiro olhava-me com grande surpresa, eu ficava cada vez mais aflita. Ameaçava chuva, e daí a pouco amanheceria. Tomei afinal um partido e disse ao cocheiro: "Você conhece este homem?" O cocheiro olhou mais atentamente para o desfalecido, e respondeu que era a primeira vez que o via. "Pois imagine que este homem é o parente mais próximo que eu possuo aqui!" expliquei eu. "O que diz, minha senhora?!" perguntou-me espantado o cocheiro. "Olha como o diabo as armas e acrescentou: "E o caso é que os gatunos o deixaram em lastimável estado!" — Mas é preciso tomar uma resolução! disse-lhe eu impaciente. — Este homem não pode ficar aqui! Descanse minha senhora, eu o arranjarei cá na boléia". — Mas então mexa-se! que pode aparecer a polícia e atrapalhar-nos... O dia está quase aí! O corpo foi acomodado pelo melhor modo na boléia, e eu disse ao cocheiro: "Logo que chegarmos à casa, você chame o Jacó, e com ele trate de recolher este homem ao melhor aposento que se puder arranjar. É preciso que lhe não venha a faltar o mais insignificante cuidado."
E Violante, voltando-me mais para Gaspar, resumiu nestas palavras a sua narrativa:
— O senhor foi conduzido aqui por mão misteriosa, que o quis ligar aos meus segredos. Sua chegada a esta casa, não sei por que, diminuiu consideravelmente o sobressalto em que eu vivia. Sinto-me agora muito mais animada. O senhor inspira-me uma confiança inexplicável; só me falta saber se está disposto a auxiliar-me...
Gaspar levantou-se e segurou as mãos da oriental: — Pode contar comigo!
— Bem, disse ela, nesse caso o senhor principia por ser apresentado como meu marido; já é nesse estado que todos cá em casa o consideram. O senhor será em tudo, completamente em tudo, contrário do miserável que me colocou nesta situação. Ele era um marido de fato e não de direito, o senhor será...
— O marido das aparências, concluiu Gaspar de bom humor; mas confesso-lhe, se mo permite, que preferia o outro lado da medalha.
— Não zombe da minha triste situação.
— De forma alguma; mas, desde que me apossei do meu cargo de marido honorário, tenho ao menos o direito de falar mal do outro, do marido de fato.
— Espero que não nos havemos de arrepender do passo que vamos dar...
— Pelo meu lado, farei por isso; mas o diabo é que meu pai me espera, talvez ansioso pela minha presença...
— Para tudo há remédio neste mundo! Faça vir as suas malas; tranqüilize o seu bom velho com uma carta, e, para não ficar de braços cruzados, pode, como meu marido, negociar vantajosamente com os capitais que disponho...
— Mas...
— Por que não? Quando, porém, tivesse o senhor escrúpulos em especular com o capital que lhe franqueio na qualidade de sua esposa, poderia aceitá-lo, com juros, das minhas mãos de negociante. Hoje represento a antiga casa de meu defunto marido. Não tenho sócios, sou rica e posso dispor do que possuo como melhor entender...
— Bem, nesse caso, serei um simples empregado seu.
— Pois vá feito! contanto que, ao zelo pelo serviço, ligue sempre amigável interesse pela patroa. Amanhã o senhor será apresentado aos meus conhecidos como marido desta sua criada, e dentro de uma semana deixaremos Montevidéu.
— Para onde vamos?
— À toa! até encontrar o infame que zombou de mim.
— E o que dele pretende?
— Simplesmente matá-lo.
E Violante estendeu o braço e disse resolutamente:
—- Juro por meu filho que lhe darei a morte!