Gaspar, entretanto, ao perceber que Virgínia amarrava o lenço na janela, perguntou-lhe da rua:

— Então? O que decidiu teu marido?

— Vai! sempre vai! Não o pude convencer do contrário!

— Bem! disse o irmão.

E deitou a correr para o hotel. Temia já não encontrar Violante, mas, ao subir as escadas do Estaminet, viu luz nos aposentos da oriental; ficou mais tranqüilo e entrou no seu próprio quarto, fingindo a melhor calma que pôde.

— Boa noite, disse ele, em voz alta, para ser ouvido pela companheira.

— Boa noite, Gaspar, respondeu Violante, com a voz meiga. Supunha que se não recolhesse hoje...

— Ao contrário, estou caindo de sono...

— Divertiu-se?

— Fiz um passeio...

— À Olinda?

— Não. A Cachangá.

— Que tal?

— Bonito.

Você vai escrever?

— Não; Por quê?

— Por nada. É que precisei do seu tinteiro, e esqueci-me de levá-lo de novo para aí...

— Não preciso dele agora.

— Então boa noite.

— Até amanhã, minha amiga.

E cada um apagou a vela de seu quarto.

Violante fingiu que se preparava para dormir, enquanto Gaspar fazia, a cantarolar, justamente a mesma cousa.

Daí a meia hora, este obteve o que ambos desejavam conseguir: enganar o outro.

Eram três horas, pouco mais ou menos. Então, Violante, descalça e cheia de precauções, abriu imperceptivelmente a porta do seu quarto e, tateando nas trevas, alongou para fora um dos braços.

Mas, na ocasião em que ia sair, sentiu uma nervosa mão segurá-la pelo pulso.

— Onde vai? perguntou Gaspar.

— Deixe-me! impôs a oriental, com alvoroço na voz.

— Quero saber onde vai, minha senhora. Disse-lhe já quais são as intenções que tenho a seu respeito, e creio que elas me autorizam a semelhante exigência!

— Dir-lhe-ei tudo depois; agora não posso. Preciso sair imediatamente.

Não irá!

E Gaspar forçou Violante a entrar novamente para o quarto, e obstruiu a porta com o corpo.

— Com que direito se atreve o senhor a tanto?!

— Com o direito do homem, que tem sido publicamente seu marido; o homem, a quem a senhora prometeu a mão de esposa e a quem disse ser uma mulher honesta!

— Juro que não vou cometer nenhuma deslealdade; além disso, desisto dos votos que fiz, desisto de tudo! mas deixe-me passar, com todos os diabos!

Esta cena realizava-se no escuro. Gaspar deu volta à chave e, fechando com a oriental por dentro da alcova, riscou um fósforo e acendeu a vela.

— Não sairá daqui! já disse!

— Ah! que o senhor abusa! rosnou Violante com um olhar terrível.

— De que, minha senhora?

— De minha paciência!

E a oriental sacou o punhal do seio.

— Lembre-se de que, ao herdar este ferro, exclamou lívida de cólera, já ele tinha servido muitas vezes! Lembre-se de que com ele herdei igualmente o caráter de meu pai e o sangue de minha mãe! Afaste-se, ou eu abrirei caminho!

— Pode abrir! disse Gaspar, apresentando o peito. Já que vai matar o filho da mulher que lhe serviu de mãe, é justo que primeiro assassine o filho daquele que lhe serviu de pai... é muito razoável que os dois velhos se cubram de luto na mesma ocasião. Vamos! uma vez que tão depressa se apagou desse coração a memória do honrado militar que a recolheu um dia ao seu amor, não é muito que lhe roube a última consolação da velhice... Mate-me! Não me defenderei, porque não levanto mão contra quem amo!

Violante atirou para trás o punhal, caiu aos pés de Gaspar:

— Perdoa, meu amigo, meu esposo, meu senhor! Sei que sou má e que só mereço desdém e menosprezo dos homens sensatos, sei que és um moço generoso e leal, e que para mim só desejas o bem e a ventura; mas, deixa-me ir, por piedade! eu preciso descarregar do coração esta sede terrível, que se tem alimentado até hoje do meu próprio sangue; eu preciso arrancar da minha consciência o desespero de não haver cumprido o meu voto! Deixa-me seguir o destino da minha raça, deixa-me dar de beber ao meu ódio, e de mim farás depois o que entenderes! Poderás desprezar-me à vontade, e eu te beijarei os pés e te servirei como escrava! Mas deixa-me ir! o tempo urge! a hora da fortuna vai fugir! e amanhã o covarde sabe que quero matá-lo e esconde-se nos braços da mulher! Pelo amor que tens a teu pai, pelo respeito que te merece a memória de tua mãe, deixa-me passar, meu amigo, meu protetor!

Gaspar levantou-a do chão e amparou-a nos braços.

— Pois bem, vai disse ele; mas, antes deixa que te faça uma revelação suprema: Eu detesto Paulo Mostella; aborreci-o logo que me falaste dele, e abominei-o encarniçadamente quando o vi pela primeira vez. Até ai tinha por ele apenas um vago desprezo, mas ao vê-lo, moço forte, bonito e não repulsivo como o pintaste, odiei-o! odiei-o com ciúme, com inveja, com desespero! Lembrei-me que Paulo te gozou como eu nunca te gozarei, porque o miserável multiplicou os teus encantos com os mistérios do crime e com as alucinações do vício! Gozou-te pelo prisma do prazer pelo prazer, sem conseqüências, sem tédios, sem obrigações positivas; colheu com a boca, entre sorrisos, a flor do teu temperamento meridional, e deixou na haste os espinhos, para que eu neles sangrasse depois meu coração e meu lábios! Por isso o execrei com todo o ardor da minha vaidade de homem e do meu egoísmo de macho! Queria vê-lo cair aos golpes do teu punhal, porque a sua morte seria a minha vida; matando-o tu, eu te amaria muito mais! Porém não posso consentir em tal: esse homem que odeio, esse monstro que te enganou, é meu cunhado e é o marido de Virgínia, minha irmã mais moça! Matá-lo seria matar a mulher, porque ela o adora com todo o entusiasmo do primeiro amor e da primeira maternidade! E como posso eu ser cúmplice na viuvez de Virgínia, no luto de meu pai e no sacrifício de seu primeiro neto?!

E Gaspar, segurando a oriental pela cintura, acrescentou com a voz suplicante:

— Vê, reflete, minha doce amiga, minha estremecida companheira! Disse-te francamente os motivos por que não consinto que realizes os teus planos de vingança; confessei-te tudo, e peço-te agora com amor, com humilhação, que sacrifique ao bem de minha família alguma cousa da tua suposta ventura... Só no caso de não atenderes às súplicas de teu mal-aventurado amante, é que o irmão de Virgínia defenderá do teu punhal o marido de sua irmã!

— Não será preciso, respondeu Violante, afastando-se. Uma vez que Paulo Mostella é necessário à felicidade de teu pai, ele viverá. Minha mão jamais se levantará para o ferir. Podes ficar tranqüilo...

— Obrigado! obrigado! exclamou Gaspar, atirando-se aos pés da oriental. Bem sabia eu que em teu coração não tinha morrido ainda a idéia do bem e da justiça; obrigado! obrigado, minha amiga!

— Não me agradeças cousa alguma. Eu cumpro um destino...

E mudando de tom:

— Desce, vai à rua e dize ao homem que lá está à minha espera, que já não preciso dele. Dá-lhe dinheiro e ordena-lhe que nunca mais me apareça.

Gaspar desceu a escada a três e três degraus.

Ao voltar ao quarto de Violante, soltou um grito; a bela mulher estava estendida no tapete, aos pés do leito, e seu colo nadava em sangue.

Apunhalara-se.

— Perdoa-me! disse ela, ofegante, ao ver entrar Gaspar. Eu sou uma desgraçada! Reconheço que é mau tudo o que cometi, mas não estava em mim poder evitá-lo... Não sei odiar de outro modo. Meu ódio só se pode esvair em sangue... Estou agora mais aliviada... parece-me ver correr do próprio peito a cólera vermelha e ardente, que dentro dele se tinha acumulado... Ai! quanto me desafronta o sangue que derramo! Sinto-me melhor... mais propensa à piedade... Vou compreendendo toda a razão das tuas palavras, meu bom companheiro... Cerraram-se-me os olhos, desfaleço, como se adormecesse no elevamento de um amor ideal... Já vejo assomar além, por entre as névoas que me ensombram, o vulto singelo e casto de teu pai... Ele sorri para mim... envolve-me toda no seu olhar compassivo e doce... Não me despertes...

E a oriental deixou pender a cabeça, e desfaleceu. Gaspar correu aos aparelhos cirúrgicos e apressou-se a tomar-lhe a ferida. Mas a mão tremia-lhe, o coração saltava-lhe dentro com força, e as lágrimas corriam-lhe dos olhos em borbotão. Contudo, o médico operava, e Violante vivia.

No dia seguinte, ela abriu os olhos e recuperou a fala.

Suas primeiras palavras foram para pedir água. Gaspar negou-lha. A infeliz tinha a voz muito fraca, palidez mortal, e uma profunda melancolia espalhada por todo o semblante.

Gaspar estava ajoelhado à cabeceira da cama em que a depusera. O outro médico já se tinha retirado.

Os dois amantes ficaram longo tempo a se olharem com a mesma tristeza. Ela passou-lhe depois a mão pelos cabelos e chamou a cabeça dele para seu colo. Gaspar não podia articular uma palavra; as lágrimas corriam-lhe apressadas e quentes pela barba.

— Como tu és bom, meu amigo! como tu merecias ser feliz...

— Não estejas a falar, que isto te faz mal... observou Gaspar, no fim de alguns instantes. Vê se sossegas. Eu fico aqui, ao pé de ti...

— Sim, sim; mas preciso muito que me faças um grande favor; manda chamar um padre. Eu quero casar-me contigo antes de morrer.

— Tu não morrerás!...

— Sim, mas manda chamá-lo...

O padre veio e cumpriu-se a cerimônia. Depois Violante exigiu que se lavrasse um documento assinado por ela, declarando o modo pelo qual morria.

Ficou tudo feito. Era ela a que parecia menos aflita.

— Bem, disse quando viu que já não precisava dos estranhos, deixe-me agora com meu marido...

Ficaram a sós os dois.

— Vem cá, balbuciou ela, tomando as mãos de Gaspar, vem dar-me o teu primeiro beijo... Chega-te mais para mim!... Afaga-me! dize-me as ternuras que reservavas para a nossa noite de núpcias, fala-me do nosso pobre amor! Tu choras, meu amigo!... Então sempre é verdade que me amavas muito!... Sim! bem sei que era!... E teu amor foi sempre puro e consolador como uma boa ação. Não me repreendas; deixa-me conversar contigo!... Coloca teu braço debaixo da minha cabeça.... Assim! Mas a ferida começa a doer-me muito! Se me desse um pouco d’água! Tenho uma sede horrível! Ai quanto custa morrer!...

— Não te aflijas, Violante! Não fales em morrer! Havemos ambos de gozar ainda do nosso amor em plena exuberância da vida!

— Gaspar, disse ela, dá-me de sobre aquela cômoda uma caixinha de xarão que lá está. Bom! é isso mesmo. Toma esse leque para ti, é de sândalo: foi o único presente que fez Paulo, além da nossa desgraça... Fica-te com ele; conserve-o depois da minha morte, como uma lembrança de tua esposa... Agora, apanha o meu punhal e guarde-o bem para entregares a meu filho, logo que este se emancipe. Peço-te que a meu filho nunca desampares. Ele, coitado! desde que eu feche os olhos, só a ti terá no mundo; dá-lhe um pouco de teu coração, e cria aquela alma com a substância do teu amor e do teu caráter. Educa-o à tua semelhança, faze dele um homem honrado. Conta-lhe a história desse punhal, e ensina-lhe a não odiar a memória de sua mãe... Tu serás o pai de Gabriel... Ele é rico; incumbe-te de todos os seus interesse... nunca o abandones, continua nele a obra de teu pai em mim principiada e...

Mas Violante interrompeu-se com um grito agudo.

— Sinto-me convulsionada! exclamou ela. Meu Deus! já será a morte!... Gaspar! Gaspar! vê se me obténs mais um bocado de vida! Tu és médico! Então?! Mas o que? Choras desse modo?!

E Violante, com um novo grito, estirou-se em todo o comprimento da cama; entesou os braços, deixou cair para trás a cabeça, e deu um arranco surdo e muito prolongado, que se foi transformando em um gemido doloroso e profundo e lhe foi morrendo na garganta, lentamente...

Duas lágrimas, grossas e mornas, correram-lhe pelo mármore das faces, com os últimos restos da vida que a abandonava.

Gaspar dobrou os braços sobre a cômoda e abafou com as duas mãos os seus soluços.

Estava tudo consumado! De suas esperanças, de seu amor, de seus sonhos de felicidade, só restava ali aquele corpo inânime, que ia desaparecer para sempre!

— Pobre mulher! disse ele, ajoelhando-se ao lado do cadáver; pobre mulher, que amei sem possuir, e que possuí sem gozar! Tinha no teu sangue o veneno do ódio e todas as doçuras da dedicação e do sacrifício! Por que havia a porção má de estrangular a outra? Por que não fizeste vingar em proveito do nosso amor as açucenas da tua ternura?... por que as deixaste tão expostas ao fogo do teu temperamento?... E vais partir, minha pobre esposa! vais partir sem me teres dado o meu quinhão de felicidade a que tinha direito como teu marido! Partes, quando eu mais me ligava a ti pelo casamento, pelo dever, pela dignidade! O que fiz para merecer os tormentos que sofri a teu lado?... para que guardei eu à vista, com tanto empenho, o tesouro da tua beleza, se o guardava para a sensualidade do sepulcro?!...

E Gaspar deixou-se ficar abraçado ao cadáver de Violante, com a cabeça escondida no montão negro dos cabelos dela.

E assim ficou longamente, sem percepção do que se passava em torno, sem consciência do tempo, nem do lugar.

Só volveu a si quando alguém lhe tocou no ombro. Voltou-se com os olhos afogados em lágrimas. Defronte dele estava o coronel.

— Meu pai! Estaria sonhando?!

— Não, disse o velho. Abraça-me, depois explica-me o que tudo isso quer dizer...