— Eu sou o autor daquelas mofinas contra o coronel Pinto Leite... segredou o comendador, fechando a porta.
O Melo, por única resposta, deu um longo assovio e estalou os dedos no ar. O comendador aproximou-se mais dele e disse-lhe ao ouvido:
Precisamos esfregar em regra aquele sujeito!...
— Schit! fez Melo, cheio de movimentos misteriosos.
E, depois de uma pausa, o comendador contou uma história muito engenhosa a respeito de vícios, da maldade e da hipocrisia do pai de Gaspar.
— Ora, que tipo!... dizia de vez em quando o homem dos rolos de papel; e passava a lembrar planos soberbos e meios ardilosos de estigmatizar o coronel. Continue a atacá-lo pelo ridículo! Ataque-o pelo ridículo, e verá o efeito! Olhe! lembra-me até agora uma cousa. Caricaturas! Não seria mau caricaturar o birbante!...
— Não! não! vamos mesmo pela mofina. A caricatura é dar-lhe muita importância!... E você é quem me há de arranjar umas boas mofinas... Eu, confesso, estou esgotado! Dezessete anos de mofina não são nenhuma brincadeira!...
— Ora, se as arranjo! é o meu gênero! eu tenho a veia da sátira! Na piada de doer ninguém me leva à palma!
— Pois arranje, arranje, que você não será com isto prejudicado. E quando precisar de alguma cousa para as despesas, é dizer! que nós estamos neste mundo para servir uns aos outros...
— Deixe-o por minha conta!
— Mas...
E o comendador levou o indicador ao lábios:
— Nem pio!...
— Sou então alguma criança?... A alma do negócio é o segredo!...
— Pois ficamos entendidos... E vamos para a sala, que suponho já lá estar alguém.
E saíram do gabinete, a conversar disfarçadamente em outro assunto.
A mofina imediata a essa conversa foi terrível. O coronel ao lê-la, sentiu tal assomo de cólera que caiu prostrado em uma cadeira, da qual tiveram que o conduzir para a cama.
Gaspar havia poucos dias antes partira para Petrópolis, e só quem apareceu à noite em casa do doente foi o Alfredo Bessa, o empregado público demitido.
Entrou sinistramente, com o seu profundo ar de miséria; estava cada vez mais acabado, mais achacoso e mais triste.
— É você, meu genro?... perguntou-lhe da cama o pobre velho, ao vê-lo entrar. Seja bem aparecido... Eu estava muito só!...
E acrescentou, depois de um silêncio, meneando funebremente a cabeça:
— Não sei que diabo de terror a todos incute a idéia da sepultura!... À proporção que vai a gente se aproximando dela, vão rareando os companheiros e os amigos!...
Alfredo atravessou a sala com o seu passo discreto e medido, passou cuidadosamente o velho chapéu de copa alta sobre um traste, e foi colocar-se à cabeceira do coronel.
— Então, que história foi essa? perguntou ele ao doente, com um sorriso que pretendia animar, mas que só conseguia entristecer.
— Ora, o que há de ser? São aquelas malditas mofinas, que há tantos anos me perseguem, como se eu fosse algum malvado!
E possuindo-se de cólera:
— Com todos os diabos! será possível que tenha eu inspirado um ódio tão grande e tão rancoroso, que, ao cabo de tanto tempo, em vez de extinguir-se, recrudesça com mais fúria?! Mas, com milhão de metralhas! qual foi o meu delito? A quem prejudiquei em meu caminho? a quem tirei o pão? a quem roubei a honra? a quem procurei arrancar a vida?!
E voltando-se para o genro, exclamou, agoniado, e febril:
— Dou-te minha palavra de honra, meu bom amigo, que não me dói a consciência de haver feito mal a ninguém! Às vezes perco a noite a cogitar de quem será o dedo que trama na sombra esta luta implacável contra a minha tranqüilidade!... Não atino, não acerto! Ah! não poder eu descobrir, não poder esmagar nestas velhas mãos o réptil infame, que me rói as entranhas!
E o coronel repisou, com uma grande excitação:
— Esmagava-o! Juro que o esmagava!
— Está bom, está bom! não vale a pena exaltar-se... O caluniador há de ser descoberto! O que se faz neste mundo que não se venha a saber?...
— Palavras! e só palavras! Sinto que vou já resvalando para a cova, e que afinal rolarei por uma vez sem descobrir quem foi o infame que me amargurou os últimos anos de minha vida!
— Lá voltam as idéias tristes! observou Alfredo, com um gesto de reprovação. Conversemos noutra cousa. Veja se afasta do espírito semelhantes pensamentos...
O coronel continuou, sem fazer caso das palavras do genro:
— Pressinto debaixo dos pés a aridez pavorosa do meu próprio despojo... Já preciso olhar para trás, quando quero olhar para a vida. Sinto-me só e a solidão me aterra; procuro em torno de mim os afetos que me aqueceram e consolaram o coração noutros tempos mais felizes, e só vejo sombras, fugitivas e vaporosas... Onde estão meus rudes companheiros de trabalho?... onde estão meus amores da mocidade!... onde foram desabrochar os lírios que plantei no lar, contando com as amarguras da velhice!... Tudo falhou, tudo murchou, e tudo fugiu!...
E o coronel, possuído completamente do delírio da febre, levantou-se do leito, com o seu longo vulto amortalhado no cobertor.
Alfredo acompanhava-lhe os movimentos, piscando os olhos, com um ar de medo.
O coronel golpeou o quarto a passos largos e pesados.
Tinha a cabeça erguida, o olhar descomposto, a boca aberta, mostrando os dentes fulvos de tabaco. A fronte, larga e despojada, saía-lhe de uma nuvem de cabelos brancos.
No seu porte, na sua fisionomia, no seu olhar de águia velha, havia uma trágica expressão de loucura.
Foi entre o fumo das batalhas, exclamou ele estacando ao fundo do aposento e fitando o genro, que formei o meu caráter e o meu coração! Foi entre o fuzilar da metralha e o clamor dos moribundos, que se escoou a minha mocidade, limpa e vermelha, como o sangue de um justo! Nunca a mentira me anuviou o olhar, nunca a vergonha me desmaiou as faces! Fui reto e valente! Mil vezes arrisquei a vida pela pátria, mil vezes mergulhei no fogo, abraçado ao pavilhão brasileiro! Entretanto, em paga de tudo isso, ela, a pátria, só me dá o esquecimento! E a sociedade, a grande sociedade! só me dá, de quinze em quinze dias, uma inventiva pelo Jornal do Comércio! Maldito sejas tu, Brasil ingrato! Fui intrépido, leal e generoso, contudo irei para o fundo da terra isolado e crivado de insultos, como se fosse um bandido!
E avançando para Alfredo, bradou-lhe com uma voz terrível:
— Tu mesmo, desgraçado, não te lembrarias de fazer-me esta visita, se te sentisses menos infeliz! Vieste cá pela simpatia do desespero; entraste, porque és velho conhecido da negra miséria que cá está. Sabias que aqui pelo menos, não te cuspiriam nas costas, não te bateriam no chapéu, nem te voltariam enjoados o rosto! porém fizeste mal em vir! eu vou perfeitamente só para a sepultura. Volta por onde vieste, miserável! que já há por cá bastante mágoa, bastante agonia, bastante sofrimento! Vai exibir noutra parte a tua mingua, que ela mais me apoquenta e me irrita! Sai!
E o coronel apontou-lhe a porta:
— Anda! Sai!...
Alfredo obedeceu, de cabeça baixa; tomou o chapéu, e saiu humilde e silencioso, como um cão enxotado.
Mas, ao passar pela sala de jantar, chamou a criada, que dormia, e disse-lhe fosse ver o amo, que estava mal.
E, ao chegar à rua, abriu a soluçar, com uma grande aflição.
— Até este!... dizia ele; até este!... A moléstia fê-lo ficar como os outros!
E assentou-se à soleira de uma porta, para chorar mais à vontade.
Um pequeno que passava gritou-lhe:
— Ó Marmelada!